Estava deitado de bruços na cama, o cansaço começando a me vencer, quando senti o colchão afundar levemente ao meu lado e o calor familiar de Kadu. Seu toque foi suave, enquanto ele se inclinava para deixar um beijo delicado no meu pescoço, trazendo um arrepio que me tirou da sonolência.
— Demorei muito? — perguntou, deitando-se ao meu lado e acariciando meus cabelos com cuidado, como se quisesse me acalmar.
— Tranquilo, fiquei aqui sonolento — respondi, deixando escapar mais uma mentira.
Por dentro, meu peito estava pesado. Eu não podia contar que, enquanto ele estava fora, eu tinha estado no escritório do pai dele, envolvido em algo que ele jamais entenderia. Queria acreditar que tudo acabaria em breve, como Bia havia prometido, mas até lá, o peso das mentiras me esmagava.
Virei-me de lado, encarando a parede para evitar o olhar de Kadu. Ele continuou acariciando meus cabelos, sem pressa, como se soubesse que eu precisava de conforto, mesmo que eu não dissesse nada. O carinho dele era uma constante, como um lembrete silencioso de que eu não estava sozinho.
— Kadu... — falei, hesitante, querendo mudar o rumo dos meus pensamentos. — Você já namorou antes? Já amou alguém?
A pergunta pareceu pegá-lo de surpresa. Senti sua mão parar por um instante, e ele ficou em silêncio, como se estivesse organizando os pensamentos antes de responder.
— Já sim... — disse, enfim, com a voz serena, mas carregada de uma certa nostalgia.
— Como foi? — perguntei, virando-me para olhá-lo.
Kadu desviou o olhar por um momento, encarando o teto. Era claro que o assunto mexia com ele, mas sua expressão não carregava raiva ou mágoa, apenas um pouco de tristeza.
— Eu namorei uma menina no ano passado. O nome dela era Amanda. No começo, era incrível. Nós nos dávamos super bem, nos divertíamos, tínhamos nossos momentos... — Ele deu um sorriso fraco, que desapareceu rápido. — Mas, com o tempo, algo mudou. Ela ficou distante, como se estivesse escondendo algo de mim. A gente começou a brigar e, um dia, ela simplesmente... desapareceu.
— Desapareceu? — repeti, sentindo um frio na espinha.
— Sim. Ela mandou uma mensagem para a mãe dizendo que ia a uma festa com as amigas, mas nunca chegou lá. Ninguém a viu de novo. — Ele suspirou e esfregou os olhos, como se quisesse afastar a memória. — Meu pai até contratou investigadores para tentar encontrar pistas, mas nada. É como se ela tivesse sumido do mundo.
Fiquei em silêncio, sentindo o peso das palavras de Kadu. Ele olhou para mim, como se procurasse algum tipo de resposta ou consolo, mas eu não sabia o que dizer.
— Deve ter sido horrível passar por isso... — murmurei, acariciando o braço dele.
— Foi. — Ele sorriu tristemente. — Mas a vida seguiu. E aí eu conheci você.
Havia tanta sinceridade no olhar dele, tanta ternura, que eu senti uma pontada de culpa no peito. Kadu não merecia estar no meio de toda essa confusão.
— Você não sabe o quanto isso significa para mim — falei, com um nó na garganta.
— Não precisa dizer nada. Só quero que saiba que estou aqui para você, sempre.
Ele me puxou para um abraço, e eu deixei minha cabeça descansar em seu peito, ouvindo as batidas do seu coração. Naquele momento, desejei com todas as forças que eu pudesse ser sincero com ele, mas o peso das mentiras era grande demais para ser desfeito tão facilmente.
Kadu continuou acariciando meus cabelos até que o cansaço finalmente me venceu. Ele se ajeitou ao meu lado, abraçando-me de forma protetora, e logo ambos estávamos mergulhados no silêncio reconfortante da noite. Dormir ao lado dele era sempre assim: simples, tranquilo, e, por mais que minha mente estivesse em caos, o corpo dele perto do meu era como um escudo contra as incertezas que me cercavam.
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O sol já estava alto quando acordei, sentindo o calor do dia penetrando pelas frestas da cortina. O som abafado de conversas na casa começou a me trazer à realidade. Olhei para o lado e vi Kadu ainda dormindo, o braço jogado sobre minha cintura. Por um momento, fiquei ali observando-o, tentando guardar cada detalhe daquele rosto relaxado. Era difícil conciliar o quanto eu o amava com tudo que estava acontecendo.
— Bom dia, preguiçoso — murmurei, tocando de leve seu rosto.
Ele abriu os olhos devagar, piscando contra a luz que invadia o quarto. Um sorriso sonolento surgiu em seus lábios.
— Bom dia, meu amor — respondeu, puxando-me para um beijo preguiçoso, mas cheio de carinho.
— Acho que já passamos da hora do café da manhã.
— Tudo bem, vamos direto pro almoço. Minha mãe deve estar esperando.
Levantamos devagar, e Kadu fez questão de me puxar para mais alguns beijos enquanto nos arrumávamos. Ele sempre tinha um jeito de fazer o tempo desacelerar quando estávamos juntos, mesmo que eu soubesse que lá embaixo o ambiente seria muito mais tenso.
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Na sala de jantar, a mesa estava posta com um banquete simples, mas apetitoso: arroz, feijão, salada, carnes grelhadas, e uma jarra de suco de laranja. Bia estava sentada na ponta da mesa, com seu semblante sempre elegante e calculado. Marc ocupava a outra ponta, exibindo seu ar confiante e quase cínico. Giovanna estava ao lado de Bia, mexendo no celular de forma inquieta, enquanto Kadu e eu nos sentamos juntos do outro lado da mesa.
O clima estava estranho desde o início. Bia e Marc mal se olhavam, mas as farpas começaram logo após a primeira troca de palavras.
— Fiquei sabendo que você passou no escritório ontem, Marc — disse Bia, casual, mas com um tom afiado.
Marc ergueu os olhos do prato e deu um sorriso curto, quase desdenhoso.
— Você sabe como é, sempre ocupado resolvendo problemas que ninguém mais consegue lidar.
— Ah, claro, sua especialidade, resolver problemas que você mesmo cria.
Marc estreitou os olhos, mas manteve o sorriso no rosto.
— Cuidado, Bia, suas provocações começam a soar como inveja.
Kadu cortou o clima ao mudar de assunto, perguntando a Giovanna como estavam as coisas na turma dela, mas ela parecia alheia a tudo, deslizando o dedo pela tela do celular.
— Gio, tá tudo bem? — perguntei, observando como ela evitava o contato visual.
Ela levantou os olhos rapidamente, os movimentos ligeiramente descoordenados.
— Tá, claro. É só... semana de provas, sabe como é.
— Achei que você nem ligava pra provas — comentou Kadu, desconfiado, mas com o tom leve.
— Eu ligo sim. Vocês que ficam achando coisas de mim.
Bia olhou para a filha com um olhar demorado, como se tentasse ler além das palavras.
— Giovanna, você não comeu nada. Está mesmo bem?
— Tô ótima, mãe. Dá pra parar de me encher?
A resposta ríspida chamou a atenção de todos, e o silêncio se instalou por alguns segundos.
Marc riu baixinho, balançando a cabeça.
— Parece que o talento para criar drama é de família.
Bia o encarou com um olhar gélido.
— Antes drama do que o talento para destruir tudo que toca.
Kadu soltou um suspiro, claramente desconfortável com o clima.
— Gente, dá pra pelo menos uma vez almoçarmos sem briga?
— Não é briga, filho, é só que seu pai adora testar meus limites — respondeu Bia, com um sorriso forçado.
Giovanna levantou-se abruptamente, pegando o celular e a bolsa.
— Já terminei. Vou pro meu quarto.
— Gio, volta aqui — chamou Kadu, mas ela já tinha saído, deixando um clima ainda mais tenso no ar.
Eu queria falar algo, mas me contive. O olhar de Bia cruzou o meu rapidamente, carregado de significado. Algo estava errado com Giovanna, e eu sabia que ela não deixaria aquilo passar despercebido por muito tempo.
Kadu, tentando aliviar a tensão que pairava sobre a mesa, deslizou sua mão por cima da minha de maneira discreta. Quando nossos dedos se entrelaçaram, senti um calor familiar me reconfortar, como se o simples toque dele pudesse me proteger de tudo o que acontecia ao nosso redor. Olhei para ele, e ele sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno, que dizia "estou aqui".
Marc notou o gesto. Seus olhos se estreitaram por um breve momento antes de ele disfarçar com um gole no copo de vinho, o maxilar visivelmente tenso. A sala parecia ficar mais pesada, e então ele quebrou o silêncio com um tom frio e calculado.
— Isso é ridículo. Vocês têm que aprender a respeitar a família. Essas demonstrações públicas... Não são apropriadas.
O comentário dele caiu como uma bomba na mesa. Kadu, que normalmente mantinha a calma, apertou minha mão com mais força, e eu soube que ele não deixaria aquilo passar.
— Respeitar a família? — respondeu Kadu, olhando diretamente para Marc. — Eu acho que o senhor deveria começar dando o exemplo.
Marc arqueou uma sobrancelha, claramente incomodado com o tom desafiador de Kadu.
— Isso não é sobre mim, garoto. É sobre você entender que nem tudo precisa ser exposto dessa forma. Há limites.
— Limites? — Kadu soltou uma risada incrédula, mas seus olhos estavam cheios de indignação. — Amar e demonstrar carinho é o que incomoda? Ou é só o fato de ser com um homem?
— Kadu, chega. Não precisa — tentei intervir, mas minha voz saiu quase num sussurro, minha ansiedade começando a tomar conta.
Bia, que havia permanecido em silêncio até então, bateu o garfo na mesa, atraindo os olhares de todos.
— Marc, se tem alguém que precisa aprender a respeitar esta família, é você. E, sinceramente, se o amor do nosso filho o incomoda tanto, talvez você devesse repensar o que está fazendo aqui.
Marc riu de canto, mas o sorriso era cheio de sarcasmo.
— Claro, a defensora da moral agora. Bia, você não entende o que estou dizendo. Isso não é sobre amor, é sobre aparência, sobre como isso reflete nos outros.
— Eu entendo muito bem, Marc. Entendo que você está projetando seus preconceitos e sua incapacidade de aceitar o próprio filho.
— Não é questão de aceitar. É questão de ter noção. Há um tempo e um lugar para tudo.
— E este é o lugar, porque esta é a casa dele! — rebateu Bia, sua voz firme.
Kadu se levantou, sua paciência finalmente esgotada.
— Vamos, Yago. Não precisamos ouvir mais nada disso.
— Filho, você não pode simplesmente... — começou Marc, mas Kadu já estava me puxando para fora da sala.
Enquanto nos afastávamos, ouvi a voz de Bia novamente, cortante como uma lâmina:
— É melhor você pensar bem no que acabou de dizer, Marc. Porque aqui, quem não respeita o amor do meu filho não tem lugar.
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Subimos para o quarto em silêncio. Assim que Kadu fechou a porta atrás de nós, me sentei na cama e segurei o rosto com as mãos. O peso de tudo começou a desabar sobre mim.
— Amor, tá tudo bem? — perguntou Kadu, ajoelhando-se à minha frente.
Eu tentei responder, mas as palavras não saíram. Meu peito parecia apertado, e as lágrimas começaram a escorrer antes que eu pudesse contê-las.
— Ei, calma... — disse ele, subindo na cama ao meu lado e me puxando para um abraço. — Eu estou aqui, tá? Você não precisa enfrentar isso sozinho.
— Kadu... Eu... Eu não sei mais o que fazer — falei, a voz embargada, mas ainda assim incapaz de dizer a verdade.
— Olha pra mim — pediu ele, segurando meu rosto com as mãos. — Seja o que for, você não precisa carregar sozinho. Eu te amo, Yago. E vou te apoiar em tudo, mas você precisa confiar em mim.
Eu queria dizer tudo. Queria contar sobre Marc, sobre o plano, sobre os segredos que estavam me consumindo. Mas as palavras ficaram presas na garganta, e eu apenas o abracei com força.
— Eu confio em você — menti, fechando os olhos e tentando absorver o calor do abraço dele, como se isso pudesse apagar tudo o que estava errado.
Kadu não insistiu. Ele apenas ficou ali, segurando-me, enquanto eu chorava em silêncio.