Kadu começou a competir com seu time de futebol, e isso acabou mudando nossa rotina. Ele estava sempre ocupado, o que significava que nossas tardes juntos depois da aula eram agora quase inexistentes. Por mais que sentisse falta dele, percebi que isso tinha um lado positivo: eu não precisava mais ir até a casa dele e enfrentar o ambiente pesado que aquele lugar havia se tornado.
Duas semanas se passaram desde o último contato com Marc. Resolvi arquivar nossa conversa para evitar a tentação de ler suas mensagens e me perder naquele ciclo doentio novamente. Talvez ele ainda estivesse tentando falar comigo, mas eu não queria saber. Era como se, ao arquivar aquelas mensagens, eu estivesse tentando arquivar também tudo o que ele representava na minha vida.
Na escola, a rotina continuava tranquila. Eu passava a maior parte do meu tempo com Nicholas depois das aulas. A gente jogava videogame, via filmes e se distraía. Ele era uma companhia incrível, sempre com piadas prontas e um jeito leve de ver a vida, mas nem isso conseguia afastar a ansiedade que começava a crescer dentro de mim.
O problema era maior do que saudade ou a tensão deixada por Marc. O dinheiro estava acabando. Em casa, as contas acumulavam, e minha mãe já começava a demonstrar preocupação. Medusa, minha única "conexão" nesse mundo sombrio, parecia ter sumido. Ela não havia me arranjado mais nenhum trabalho, e isso estava começando a me desesperar.
Sentado no sofá da sala de Nicholas, enquanto ele fazia uma busca incansável por novos filmes no catálogo de streaming, eu não conseguia me concentrar. Cada notificação no celular fazia meu coração disparar, mas era sempre algo banal: um grupo da escola, promoções de lojas que nunca visitei, mas nunca o que eu realmente precisava.
Finalmente, naquela noite, tomei uma decisão. Peguei o celular e digitei uma mensagem para Medusa:
"Preciso falar com você. Estarei na boate hoje à noite."
Ela demorou para responder, mas a mensagem veio, breve e enigmática, como sempre:
"Venha. Mas não espere ouvir o que você quer."
O dia passou rápido e quando vi já era noite e eu estava na boate.
A boate estava lotada, como sempre. As luzes pulsantes em tons de vermelho e roxo preenchiam o ambiente, enquanto a música alta fazia o chão vibrar sob meus pés. O cheiro de suor, perfume caro e álcool se misturava no ar. Um barman girava garrafas em movimentos quase acrobáticos, arrancando aplausos de quem estava no balcão.
Medusa era impossível de não notar, mesmo em meio a tanta gente. Ela estava no centro da pista, como uma estrela em seu próprio palco. Sua peruca loira platinada e volumosa brilhava sob as luzes de neon. Ela usava um vestido justo, coberto por lantejoulas douradas, que refletiam a iluminação de forma hipnotizante. Os saltos altíssimos faziam com que ela parecesse ainda mais imponente, e sua maquiagem estava impecável, como sempre: olhos dramáticos com delineado preto e lábios de um vermelho profundo.
Quando me viu, abriu um sorriso debochado, mas não se aproximou. Em vez disso, fez um sinal discreto para que eu a seguisse até o bar.
— Yago, querido... Que surpresa! Não imaginava que você ainda tivesse coragem de vir até aqui — disse ela, com o tom de quem já sabia exatamente o motivo da minha visita.
— Medusa, eu preciso de trabalho. Estou ficando sem dinheiro — falei, direto ao ponto, tentando ignorar o olhar avaliador dela.
— Trabalho? Meu bem, você está sem trabalho porque não responde mais ao seu... patrocinador — disse ela, enfatizando a última palavra com um sorriso malicioso.
— Que patrocinador? — perguntei, confuso, mas já sentindo um frio na espinha.
Ela revirou os olhos dramaticamente, como se fosse óbvio.
— Marc, querido. Todo o dinheiro que você tinha vinha dele. Quando você sumiu, ele mandou cortar tudo. Sem trabalho, sem "mimos". Não sei se você percebeu, mas nesse mundo, as coisas funcionam assim: ou você joga o jogo, ou você é descartado.
Aquelas palavras bateram em mim como um soco. Marc. Era sempre ele. Até quando eu tentava me afastar, ele encontrava uma forma de me prender.
— Então é isso? Tudo o que eu ganhei, tudo o que você me ofereceu... sempre foi por causa dele? — perguntei, tentando controlar a raiva e a humilhação que sentia.
— Claro que foi, docinho. Você acha que alguém aqui faz algo por caridade? — Medusa deu uma risada curta, mas havia algo sombrio em seu olhar. — Marc sempre teve o controle. E você, Yago, foi esperto o suficiente para se afastar, mas burro o bastante para achar que poderia sair ileso.
Fiquei em silêncio, encarando o copo de bebida que ela empurrou em minha direção. A raiva, a vergonha e o desespero se misturavam dentro de mim.
— Então o que eu faço agora? — perguntei, quase num sussurro.
— Ah, querido, isso é com você. Mas se quer minha opinião... — Medusa se inclinou, aproximando o rosto do meu. — Volte para Marc. Seja esperto. Faça ele achar que está no controle, mas encontre uma forma de sair dessa situação com algo mais do que dívidas e arrependimentos.
Ela se afastou, sorrindo com o ar enigmático que era sua marca registrada.
— Medusa... por que você ainda se importa? — perguntei, confuso com a aparente preocupação dela.
— Eu não me importo, meu bem. Só gosto de assistir o circo pegar fogo. — E com isso, ela se afastou, sumindo na multidão com a graça de quem dominava completamente aquele ambiente.
Eu fiquei ali, sentado no balcão, sentindo como se o peso do mundo tivesse dobrado sobre meus ombros. O que eu faria agora?
O álcool parecia uma solução fácil para tudo o que me consumia naquela noite. Comecei a beber devagar, mas a cada gole, a dor e a raiva pareciam diminuir. Ou talvez fosse apenas a embriaguez me anestesiando. Medusa havia sumido na multidão, e eu fiquei sozinho no balcão, sentindo o peso da conversa que acabáramos de ter.
O barulho da boate misturava risadas, músicas agitadas e luzes que piscavam freneticamente, criando um cenário quase surreal. Eu já não sabia distinguir o que era real ou fruto da minha mente confusa. Foi quando, ao me virar em direção à pista de dança, meu coração disparou.
Giovanna.
Ela estava ali, ou pelo menos parecia ser ela. Com os cabelos soltos e uma jaqueta de couro preta, sua silhueta dançava entre as luzes. Pisquei algumas vezes, tentando ter certeza, mas a cada segundo a sensação de que era ela crescia.
— Giovanna! — gritei, mas minha voz se perdeu no som ensurdecedor da música.
Ela virou o rosto por um instante, e nossos olhares se cruzaram. Sem pensar, me levantei e comecei a segui-la pela multidão. Ela parecia nervosa, apressando os passos a cada vez que me aproximava mais.
— Espera! — gritei novamente, mas ela não parava.
Ela se moveu em direção à saída lateral da boate, e eu continuei atrás dela. Do lado de fora, o ar fresco da madrugada me atingiu como um choque, mas Giovanna já não estava lá. Olhei em todas as direções, o coração martelando no peito.
— Giovanna? — murmurei, sem acreditar no que estava acontecendo.
Por mais que procurasse, não havia sinal dela. Será que eu estava imaginando coisas? Talvez o álcool e o estresse tivessem começado a mexer com minha cabeça. Com uma sensação de vazio e confusão, decidi voltar para casa.
Ao entrar em casa, fui recebido pelo som de soluços abafados. Minha mãe estava sentada no sofá da sala, com uma caixa de lenços ao lado e os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Mãe? — perguntei, assustado, correndo até ela. — O que aconteceu?
Ela demorou um pouco para responder, respirando fundo entre lágrimas. Então, me entregou um envelope cheio de papéis, que eu reconheci imediatamente como exames médicos.
— Eu fui ao médico hoje... — começou ela, a voz trêmula. — E os resultados chegaram.
Meu coração gelou. Peguei o envelope com cuidado e comecei a ler os papéis, mas, mesmo sem entender muito bem os termos técnicos, uma palavra chamou minha atenção: carcinoma.
— Não... — sussurrei, sentindo o chão se abrir. — Mãe, o que isso significa?
Ela assentiu lentamente, limpando as lágrimas.
— Câncer. Eles disseram que é no pulmão... e que não está no estágio inicial.
Aquelas palavras me atingiram como uma facada. O nó na garganta me impediu de falar por alguns segundos.
— Mas... e o tratamento? Eles falaram alguma coisa? — perguntei desesperado.
— Falaram que é possível, mas... — Ela hesitou, olhando para mim com um misto de medo e tristeza. — O custo é muito alto, Yago. Não temos condições.
Minha mente entrou em colapso. Tudo ao meu redor parecia girar, e as emoções que eu vinha reprimindo começaram a explodir.
— Não pode ser, mãe! A gente vai dar um jeito! — gritei, levantando-me e começando a andar de um lado para o outro. — Eu... eu vou conseguir esse dinheiro. De algum jeito, eu vou!
Ela tentou me acalmar, mas eu estava inconsolável.
— Não adianta se desesperar, filho. Vamos resolver isso juntos, um passo de cada vez.
Mas como eu podia ficar calmo? Não havia dinheiro, os trabalhos haviam desaparecido, e a única pessoa que tinha alguma influência — Medusa — já tinha deixado claro que não faria nada por mim.
Com as mãos tremendo, peguei o celular e comecei a digitar para Bia.
"Bia, foi tudo em vão? Você vai mesmo me deixar na mão agora? Me diz alguma coisa, pelo amor de Deus!"
As mensagens estavam sendo enviadas, mas nada de resposta. Ela lia cada uma delas e não respondia.
"Eu preciso de você! Bia, por favor! Foi tudo um erro? Você vai me ajudar ou não?"
A sensação de impotência me consumia. Eu não sabia mais o que fazer. Minha mãe estava doente, eu estava sem dinheiro, sem direção.
Quando percebi que não adiantava mais insistir, um pensamento que eu vinha evitando tomou forma. Marc. Ele era a única opção que restava.
Com um nó no estômago, digitei a mensagem:
"Precisamos conversar."
E enviei.
No quarto, o silêncio era sufocante. A escuridão engolia tudo, e o único som que quebrava o vazio era o das notificações que não chegavam. O celular, jogado na cama, era como uma bomba relógio, pronto para explodir meu coração a cada segundo em que não vibrava com uma resposta.
— Por que ninguém me responde?! — gritei, agarrando o travesseiro e o jogando contra a parede.
Minha cabeça estava um caos. As mensagens enviadas para Bia e Marc permaneciam sem resposta. Tudo parecia um ciclo infinito de desprezo e abandono. A mente me traía, preenchendo o silêncio com vozes. Vozes que me lembravam de cada erro, cada escolha errada, cada vez que me rebaixei para tentar sobreviver.
— Eu fiz tudo o que vocês pediram! — berrei, agora socando a cama.
Minhas mãos tremiam, o corpo inteiro pulsava com uma raiva misturada a desespero. As paredes pareciam se fechar ao meu redor, e o ar começava a faltar. Senti o peso de tudo esmagando meu peito, enquanto lágrimas quentes rolavam pelo meu rosto.
— Eu só queria... só queria um pouco de paz!
O celular vibrou e, por um momento, um fio de esperança me atingiu. Peguei o aparelho com pressa, mas, ao ver o nome na tela, desabei.
Kadu.
Atendi, soluçando.
— Yago? Amor, o que tá acontecendo? — perguntou ele, a voz carregada de preocupação.
— Eu... eu não aguento mais! — gritei, incapaz de conter o choro. — Eu tô sozinho, Kadu. Ninguém se importa comigo! Ninguém!
— Calma, amor. Fala comigo, o que aconteceu?
— Eu não sei... eu não sei o que fazer! — continuei, a voz falhando.
— Yago, eu vou aí, tá? — disse ele, mas antes que pudesse terminar, desliguei o telefone.
Olhei para o celular, ainda mais perdido. Por que eu desliguei? Por que eu sou assim? Passei as mãos pelos cabelos, puxando com força. A dor física parecia ser a única coisa que me mantinha ancorado.
"Eu tô sozinho. Ninguém se importa de verdade."
Meia hora depois, a campainha tocou. Minha mãe atendeu à porta.
— Oi, Kadu. Tá tudo bem? — ouvi a voz dela na sala.
— Oi, dona Bia. Eu vim ver o Yago. Ele tá aqui? — perguntou Kadu.
Foi a primeira vez que reparei que minha mãe e a dele tinham o mesmo nome, coincidência não?
— Tá... Pode subir...
Parei no alto da escada, ouvindo a conversa. Meus olhos estavam vermelhos, o rosto molhado pelas lágrimas secas na pele. Quando ele entrou e nossos olhares se encontraram, foi como se o tempo parasse.
— Amor... — ele disse, subindo os degraus rapidamente.
Minha mãe ficou observando, desconfiada, mas não falou nada. Kadu entrou no quarto, fechou a porta e se aproximou de mim devagar.
— O que tá acontecendo, Yago? — perguntou, com a voz cheia de carinho.
Desabei novamente.
— Eu não aguento mais, Kadu! — gritei, sentando-me na cama e escondendo o rosto entre as mãos. — Minha vida tá um inferno!
— Calma... calma. — Ele sentou ao meu lado, colocando uma mão delicada no meu ombro. — Me explica.
— Eu tô tentando de tudo! Fiz tudo o que pediram, mas nada muda. Ninguém me responde, ninguém se importa comigo! — falei, a voz engasgada.
— Eu me importo. Eu tô aqui, não tô? — disse ele, segurando meu rosto com as mãos, me obrigando a olhá-lo. — Você não tá sozinho, Yago.
— Tá, mas até quando? — perguntei, a voz cheia de dor. — Até quando você vai aguentar estar ao lado de alguém como eu?
Kadu me puxou para um abraço apertado. O calor dele era o único conforto que eu tinha naquele momento.
— Eu te amo, Yago. Não importa o que esteja acontecendo, eu tô aqui pra você.
Meus soluços começaram a diminuir, e a respiração dele, calma e constante, me ajudava a desacelerar.
— Eu não sei o que fazer... — murmurei contra o peito dele.
— A gente vai descobrir juntos, tá? Um passo de cada vez.
Fiquei em silêncio, apenas sentindo a presença dele, tentando absorver a segurança que ele transmitia. Por mais que o caos ainda existisse dentro de mim, pelo menos naquele momento, eu não estava sozinho.