Acordei com um som ensurdecedor de algo se espatifando. Meu corpo pulou de susto antes que minha mente pudesse acompanhar o que estava acontecendo. Era como se todo aquele breve momento de paz, que me senti protegido ao lado de Kadu, tivesse sido arrancado de mim.
Abri os olhos e notei que a luz do fim da tarde tingia o quarto em tons de dourado. Kadu também despertou, sobressaltado, sentado ao meu lado.
– O que foi isso? – ele perguntou, a voz rouca do sono.
Me sentei rapidamente, esfregando os olhos, tentando me situar.
– Não sei – respondi. – Parece que veio da sala.
Em um movimento rápido, Kadu levantou-se da cama e pegou a camiseta que estava jogada na cadeira. Fiz o mesmo, vestindo qualquer coisa que encontrasse. A adrenalina começou a tomar conta do meu corpo enquanto ouvíamos outro barulho, desta vez algo metálico caindo no chão.
– Vem – disse Kadu, me puxando pela mão.
Descemos as escadas com passos rápidos, e o cenário que encontramos na sala parecia saído de um pesadelo. Bia estava no centro da sala, o rosto contorcido em pura fúria, enquanto Marc, encostado na parede, parecia tentar se defender verbalmente. A sala estava um caos: objetos quebrados pelo chão, almofadas rasgadas, um vaso de cerâmica estilhaçado no canto.
– Eu não acredito que você fez isso! – gritou Marc, a voz cheia de indignação.
– Fez o quê? Internar a Giovanna? – Bia rebateu, a voz tão afiada quanto vidro quebrado. – Sim, eu fiz! E sabe por quê? Porque eu não aguento mais lidar com você e suas malditas mentiras, Marc!
Eu e Kadu paramos ao pé da escada, completamente imóveis. A intensidade daquela discussão nos deixou paralisados.
– Você é louca, Bia! – Marc retrucou, apontando para ela com o dedo. – Internar a própria filha? Você ultrapassou todos os limites!
– Louca? – Bia riu, mas era um riso carregado de amargura. – Louca sou eu por ter acreditado em você! Louca por ter achado que você poderia ser alguém decente, por ter me casado com você. Acorda, Marc! Você acabou com nossa família, sua filha estava fazendo programa.
— O que está acontecendo? — disse Kadu — Giovana virou atriz?
— Se toca, Kadu! Sua irmã é puta — gritou Marc
Eu observava cada palavra como se fossem flechas disparadas, atingindo ambos no peito. O coração batia acelerado, e meu instinto era de sair correndo, mas algo me mantinha ali, como se eu precisasse ouvir tudo.
Kadu olhou para mim, claramente sem entender. Eu também não sabia o que pensar. Era como assistir a um incêndio consumindo tudo, sem saber por onde começar a apagar as chamas.
– Eu só quero o que é meu! – Bia rebateu, aproximando-se de Marc. – E sabe o que mais? Eu faria tudo de novo se fosse preciso!
– Você não tem ideia de quem está enfrentando, Bia – Marc ameaçou, sua voz baixa, mas carregada de perigo.
Kadu deu um passo à frente.
– Ei, já chega! – ele gritou, sua voz ecoando pela sala. – Isso tá indo longe demais!
Os dois se calaram, mas o silêncio que se seguiu foi ainda mais sufocante. O silêncio na sala durou apenas segundos antes de ser quebrado por uma risada seca e amarga de Bia. Ela ajeitou a postura, o olhar faiscando com uma mistura de raiva e desprezo.
– Quer saber, Marc? Já chega. Tá na hora de contar a verdade. Todas as verdades secretas que você esconde.
Marc congelou, mas seu rosto demonstrava o início de um pânico reprimido. Eu fiquei parado ao lado de Kadu, sentindo meu coração disparar enquanto o clima na sala se tornava mais denso.
– Do que você tá falando, Bia? – ele tentou, mas sua voz vacilou.
Bia deu um passo à frente, encarando-o como se estivesse diante de um inimigo.
– Eu tô falando da nossa filha! – ela gritou, sua voz ecoando pela sala. – Giovanna tá perdida, Marc. Drogas, programas... E você? Você nunca fez nada pra ajudá-la!
Marc parecia prestes a rebater, mas Bia ergueu a mão, interrompendo-o.
– E isso nem é o pior – continuou ela, a voz tremendo de raiva. – O pior é que você é um desgraçado que se envolveu com o namorado do próprio filho!
O impacto das palavras dela foi como um soco no estômago. Meu corpo gelou, minha respiração falhou, e senti as pernas fraquejarem. Kadu deu um passo para trás, claramente chocado.
– Que porra é essa? – ele murmurou, olhando de mim para Marc, como se buscasse alguma explicação.
Eu tentei falar, mas minha garganta estava seca. O ar parecia pesar toneladas.
– Vai, Marc! Conta tudo! – Bia gritou, apontando para ele. – Conta pro seu filho o que você faz com o Yago! Conta como você destruiu esse garoto!
Marc explodiu.
– Cala a boca, Bia! – Ele avançou, os olhos cheios de ódio, a mão levantada como se fosse atingi-la.
Eu senti meu corpo começar a tremer. Era como se o ar ao meu redor estivesse sendo sugado. Meu peito apertava, e uma onda de pânico tomou conta de mim.
– P-para... por favor... – consegui balbuciar, minha visão começando a embaçar.
– Pai, o que é isso? – Kadu gritou, se colocando entre os dois. – Que merda você tá escondendo?
Marc ignorou Kadu e agarrou Bia pelo pescoço, empurrando-a contra a parede.
– Eu avisei pra você não se meter! – ele rugiu, os dedos apertando a garganta dela.
– Solta ela! – Kadu gritou, puxando Marc com toda a força.
Bia caiu no chão, tossindo e segurando o pescoço, mas logo se levantou e saiu correndo, batendo a porta com força enquanto ainda ofegava de raiva e medo. O silêncio que se seguiu foi devastador, pesado como chumbo. Meus olhos se voltaram para Marc, mas ele não parecia olhar para mim. Ele estava estático, os punhos cerrados, os olhos fixos em um ponto indefinido no chão.
De repente, ele deu um passo à frente. Sua expressão era algo entre desprezo e ódio absoluto. Ele olhou diretamente para Kadu, e o que saiu de sua boca fez o mundo ao meu redor desmoronar ainda mais.
– Tudo isso... – começou ele, a voz baixa e carregada de fúria. – Tudo isso é culpa sua.
Kadu recuou um passo, surpreso.
Marc deu uma risada fria, inclinando a cabeça para o lado.
– Desde o momento em que você nasceu, Kadu, tudo o que era pra ser meu, você roubou.
– Roubei? – Kadu repetiu, confuso, o tom começando a ganhar uma mistura de indignação e incredulidade. – Você tá ouvindo o que tá dizendo?
Marc deu mais um passo à frente, os olhos brilhando com um ódio que parecia impossível de conter.
– Meu nome, minha casa, minha reputação... – ele disse, sua voz subindo gradativamente. – Tudo que deveria ser meu, você tomou de mim. Você nasceu e virou o foco de tudo, o queridinho, o herdeiro. Ninguém mais olhava pra mim! Eu, Marc, me tornei invisível na minha própria vida!
Kadu parecia atônito, tentando absorver aquelas palavras.
– Isso é absurdo! Eu sou seu filho!
– Meu filho? – Marc gritou, rindo como se tivesse ouvido a maior piada de todas. – Você nunca foi só meu filho. Você é a sombra que eu nunca consegui me livrar!
Eu assistia a tudo, paralisado, enquanto meu coração disparava. Queria falar, mas o pânico me consumia, me impedindo de agir.
– E agora – continuou Marc, apontando para mim –, você ainda tenta roubar isso de mim também!
Kadu olhou para mim, confuso, procurando respostas.
– Yago? O que ele tá dizendo?
– Kadu, me escuta! – gritei, minha voz saindo em um tom de desespero absoluto. – Eu tentei tantas vezes te contar tudo, mas eu tinha medo! Medo do que ele poderia fazer comigo, com você!
Marc gargalhou, mas havia loucura em seu som.
– Medo? Você acha que isso é medo? – Ele olhou para Kadu, mas era como se estivesse falando para si mesmo. – Ele nunca amou você, porque na verdade é a mim que ele ama.
Kadu deu um passo para trás, como se o peso de tudo aquilo o atingisse de uma vez.
– Eu não sei... – murmurou ele, a voz embargada. – Eu não sei mais o que é verdade.
A sala ficou em silêncio por um momento. O único som era o das minhas respirações ofegantes e dos soluços que eu não conseguia conter.
– Kadu, por favor... – implorei, avançando em sua direção. – Eu nunca quis te machucar. Eu só não sabia como sair disso... Eu amo você!
Ele me olhou, mas a dor em seus olhos era insuportável.
Kadu ficou parado no centro da sala, olhando para mim e para Marc. Sua respiração estava pesada, como se cada palavra dita naquela discussão tivesse drenado o pouco de energia que ainda restava. Mas, ao invés de um olhar de tristeza ou confusão, havia algo diferente em seus olhos agora. Algo que eu nunca tinha visto antes: um ódio selvagem.
Marc ainda estava imóvel, seu peito subindo e descendo rapidamente, as mãos cerradas ao lado do corpo. O silêncio era quase ensurdecedor, e eu sabia que algo terrível estava prestes a acontecer.
De repente, Kadu explodiu.
Antes que qualquer um de nós pudesse reagir, ele pegou o abajur ao lado do sofá e o lançou contra a parede. O impacto fez o vidro estilhaçar em milhares de pedaços, espalhando cacos por todo o chão.
– Eu sempre tive você como uma inspiração de pai, e você é o que? Um filho de uma puta! – berrou, sua voz carregada de uma dor que eu nunca tinha imaginado que ele pudesse sentir.
Marc deu um passo à frente, mas Kadu apontou para ele, com o dedo trêmulo e os olhos faiscando de raiva.
– FICA LONGE DE MIM! – gritou ele, pegando uma cadeira e jogando-a com toda a força no chão.
O som da madeira se partindo ecoou pela sala. Marc hesitou, e por um momento pareceu quase assustado, mas sua expressão logo voltou ao normal, como se estivesse tentando retomar o controle da situação.
– Kadu, calma. - falei - deixa eu te explicar...
Ele avançou para a estante, puxando livros e objetos de decoração e os jogando no chão, um a um. Cada movimento dele era carregado de raiva e desespero, como se estivesse tentando destruir fisicamente tudo o que estava errado em sua vida.
– Tudo isso... – murmurou ele, a voz começando a embargar. – Tudo que eu vivi nessa casa foi uma mentira.
Eu tentei me aproximar, mas ele me lançou um olhar tão feroz que minhas pernas travaram.
– VOCÊ TAMBÉM, YAGO! – ele gritou, apontando para mim. – VOCÊ MENTIU PRA MIM! VOCÊ ME USOU!
As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto enquanto eu balbuciava:
– Kadu, por favor... Eu... Eu nunca quis te machucar.
Ele riu, mas era uma risada amarga, carregada de ironia.
– Nunca quis? E o que você acha que tá acontecendo agora, hein?
Kadu pegou uma mesa lateral e a virou com força, derrubando tudo o que estava em cima.
-Já que vocês se amam tanto assim, a casa é de vocês- disse ele me encarando enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto e caminhando em direção a saída.