Narrado por: Tenente Erick
Desde que me tornei amigo de Bia, muitos anos atrás, sempre confiei nela. Ela era o tipo de pessoa que parecia carregar o peso do mundo nas costas, mas ainda assim nunca reclamava. E Iago... bem, ele me parecia alguém que estava no limite. Um homem lutando para sobreviver a um oceano de caos. Mas havia algo errado. Desde que Yuri, meu marido, me alertou sobre algumas inconsistências, essas dúvidas começaram a me perseguir.
Eu estava no sofá da sala quando tudo começou. A noite estava quente, e Yuri, como sempre, estava sentado ao meu lado, com um olhar atento que me desmontava com facilidade. Ele parecia estar esperando o momento certo para falar, e eu sabia que algo estava vindo.
– Erick, posso te perguntar uma coisa? – ele disse, finalmente quebrando o silêncio.
– Claro, amor. O que foi?
Ele hesitou, passando os dedos pelo cabelo antes de me olhar diretamente nos olhos.
– Você confia na Bia?
A pergunta me pegou de surpresa.
– Claro que confio. Somos amigos há anos. Por que está perguntando isso?
Yuri suspirou, claramente desconfortável.
– Eu sei que você tem um laço forte com ela, mas... não acha estranho que só o Yago tenha procurado ajuda? Que ele tenha tido coragem de se expor enquanto a Bia ficou em silêncio por tanto tempo?
Pensei por um momento, mas balancei a cabeça.
– Ela deve ter seus motivos.
– E se os motivos dela não forem o que você pensa? – insistiu ele. – Erick, você sempre vê o melhor nas pessoas, mas às vezes isso te cega.
Eu queria responder, mas as palavras não vinham. Yuri tinha esse dom de me desarmar com sua lógica.
– Você não sente que o Yago é sincero? – continuou ele, se inclinando para frente. – Eu sinto. Quando ele fala, há uma verdade que é impossível ignorar. Ele está em perigo, Erick. E se a Bia tivesse terminado tudo isso antes? Por que ela não fez nada antes?
– Ela não sabia como agir...
– Ou ela sabia e escolheu não agir – cortou Yuri.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Yuri colocou a mão na minha, apertando-a com força.
– Eu só quero que você olhe para isso com mais atenção. Por mim, pelo Yago... por você mesmo.
...
A lembrança da conversa com Yuri me seguia enquanto eu dirigia pelas ruas escuras. Minha mente estava em um turbilhão. A mensagem de Yago no WhatsApp, enviada mais cedo, só havia tornado tudo mais urgente: “Alguém na polícia vazou a informação. Não conte a ninguém. Não sei mais em quem confiar.”
Eu já estava investigando Bia antes, mas agora a necessidade de respostas se tornava quase insuportável. Uma ligação de um dos meus contatos trouxe um ponto de partida: um hotel onde Bia poderia estar. Enquanto dirigia minha cabeça só pensava em tudo que Yuri havia me dito.
Voltei ao presente quando estacionei o carro em frente ao hotel abandonado. A informação viera de um dos meus contatos confiáveis: Bia poderia estar se escondendo ali. O local parecia vazio, mas algo não parecia certo.
Entrei no prédio com cautela, o cheiro de mofo e o silêncio absoluto aumentando minha tensão. Subi as escadas até o segundo andar, parando em frente à porta marcada como 208. Respirei fundo antes de empurrá-la.
A cena que encontrei me fez congelar por um segundo. Havia uma garota amarrada a uma cadeira no centro do quarto. Seus cabelos estavam desgrenhados, e suas roupas, sujas e rasgadas.
– Ei! – corri até ela, meu coração disparado.
Ajoelhei-me ao lado da cadeira, removendo a mordaça que cobria sua boca. Ela começou a chorar imediatamente, soluços sufocados escapando de seus lábios.
– Está tudo bem agora. Eu sou policial. Você está segura. Qual é o seu nome? – perguntei, tentando acalmá-la.
– A-Amanda... – ela conseguiu dizer entre lágrimas.
– Amanda, vou tirar você daqui, mas preciso que fique calma, tudo bem?
Ela assentiu freneticamente, ainda chorando. Cortei as cordas que prendiam suas mãos e pés, ajudando-a a se levantar. Amanda parecia fraca, como se estivesse ali há dias.
Segurei-a pelos ombros e a levei para fora do quarto, descendo as escadas o mais rápido possível. No carro, dei a ela uma garrafa d’água que sempre mantinha no porta-luvas. Ela bebeu com pressa, engasgando levemente.
– Amanda, quem fez isso com você? – perguntei, tentando não soar muito direto.
Ela olhou para mim, seus olhos grandes e cheios de medo.
Amanda começou a chorar, com o rosto afundado nas mãos. Os soluços ecoavam pelo carro, e minha paciência, normalmente inabalável, começou a se dissolver diante da cena. Tentei não pressioná-la, mas precisava de respostas.
– Amanda, quem fez isso com você? – perguntei, mantendo a voz o mais suave possível.
Ela ergueu os olhos, vermelhos e marejados. Sua voz saiu trêmula.
– Muitas pessoas... Primeiro o Marc... depois a Bia.
Minha mente parou por um instante. Aquilo não fazia sentido. Como assim Bia?
– Amanda, você pode me explicar melhor? – perguntei, sentindo a confusão crescer.
Ela balançou a cabeça rapidamente, como se tivesse medo até mesmo de falar.
– Eu... não sei mais em quem confiar. Eu tenho medo... muito medo.
– Você pode confiar em mim – garanti, tentando soar firme. – Vou te proteger, Amanda. Eu prometo.
Ela hesitou, mas assentiu levemente, embora suas mãos ainda tremessem. Decidi que o melhor seria tirá-la dali e levá-la para minha casa, onde ela estaria mais segura.
O silêncio no carro era opressor. Amanda mantinha o olhar fixo na janela, observando as ruas passarem, enquanto eu segurava firme no volante, tentando organizar meus pensamentos. A tensão estava em cada canto do veículo, quase palpável.
Chegamos em casa em menos de 20 minutos. Yuri abriu a porta para nós, sua expressão mudando para preocupação ao ver Amanda.
– O que aconteceu? – ele perguntou imediatamente.
– Longa história. Vamos dar um pouco de espaço para ela primeiro.
Amanda hesitou ao entrar, mas Yuri se adiantou, mostrando um sorriso gentil.
– Tá tudo bem agora. Você está segura aqui.
Eu e Yuri a conduzimos até o sofá da sala. Yuri foi buscar roupas limpas e toalhas para ela enquanto eu ligava o ar, percebendo que Amanda ainda estava suando.
– Aqui, vá tomar um banho gelado – Yuri sugeriu, entregando as roupas.
Amanda pegou os itens com mãos trêmulas e murmurou um "obrigada" quase inaudível antes de seguir para o banheiro.
Enquanto isso, a sala estava envolta em um silêncio estranho, até que ouvimos passos leves no corredor. Isa, nossa filha, apareceu esfregando os olhos sonolentos.
– Papai? Quem tá aqui?
A curiosidade inocente dela era desarmante. Amanda reapareceu na sala, com roupas folgadas de Yuri e cabelos úmidos, visivelmente mais relaxada após o banho. Isa correu até ela, encarando-a com seus grandes olhos curiosos.
– Quem é você? – Isa perguntou com um sorriso.
Amanda se abaixou ligeiramente, seus lábios formando um pequeno sorriso pela primeira vez.
– Eu sou a Amanda.
– Você quer brincar? – Isa perguntou, segurando um ursinho de pelúcia.
Amanda hesitou, mas acabou aceitando. Elas se sentaram no tapete e começaram a conversar e brincar. Aos poucos, a tensão em Amanda parecia diminuir, seu corpo ficando menos rígido.
Yuri me puxou para o canto da sala, sua voz baixa.
– E então?
Suspirei, ainda digerindo tudo.
– Algo tá errado, Yuri. Talvez você esteja certo sobre a Bia. Há mais nessa história do que ela contou.
Yuri assentiu, mas sugeriu:
– Vou levar a Isa para o quarto. Você pode conversar com Amanda com mais calma.
Concordei, e ele chamou Isa para dormir, deixando-me sozinho com Amanda. Ela estava sentada no sofá agora, abraçando o ursinho que Isa tinha dado.
– Amanda – comecei suavemente –, preciso que você me conte tudo.
Ela respirou fundo, mas logo sua voz saiu entrecortada.
– Alguns anos atrás, eu namorava o filho do Marc. Ele... ele começou a me seguir, me cercar. Marc é um psicopata, Erick. Ele me queria, e quando eu tentei terminar, ele me sequestrou.
Fechei as mãos em punho, tentando não reagir.
– Ele me levou para uma fazenda. Eu fiquei meses presa lá, mas consegui fugir. Achei que estava livre quando encontrei a Bia...
Ela começou a chorar novamente, mas continuou:
– Pensei que ela ia me ajudar, mas não. Ela só queria usar isso contra ele. Quando percebeu que eu queria contar tudo para a polícia, me prendeu de novo. Disse que eu era um trunfo para ela.
Amanda começou a hiperventilar, lágrimas caindo descontroladamente.
– Amanda, calma – interrompi, sentando ao lado dela. – Respira comigo, tá? Devagar.
Ela tentou acompanhar minha respiração. Aos poucos, se acalmou.
– Erick, eu... eu só quero que isso acabe. Não aguento mais.
– E vai acabar – prometi. – Agora você está segura, e eu vou cuidar disso.
Mas enquanto fazia essa promessa, não pude deixar de pensar: quantas mentiras ainda estavam escondidas nessa história?