Acordei no dia seguinte com o travesseiro impregnado do cheiro de Gustavo. No início, pensei que fosse só coisa da minha cabeça, uma ilusão do quanto eu desejava que as coisas voltassem ao normal entre nós. Mas anos depois, numa das nossas conversas já adultos, ele confessou que, toda vez que brigávamos, ele dormia na minha cama enquanto eu estava desmaiado de cansaço. Disse que a respiração dele, ali, bem próxima da minha nuca, parecia acalmar meu sono.
Escrever isso agora traz um peso agridoce no coração. Na época, eu não fazia ideia de que ele fazia essas coisas por mim, silenciosamente. É algo tão Gustavo, tão cheio de gestos que só descobri muito depois. E, mesmo achando doce essa lembrança, ele me revelou isso num momento de dor, no meio de uma das suas grandes crises — mas acho que ainda não é hora de mergulhar nessa parte da história. Estou tentando manter tudo em ordem, contar as coisas no tempo certo, mesmo que minha memória insista em me puxar para frente e para trás.
Aquele dia, no entanto, ficou gravado de uma forma diferente. Não foi apenas pelo desconforto ou pela sensação de que algo entre nós estava mudando. Foi um dia cheio, repleto de momentos que marcaram a minha memória: a crise da Lara, a situação com o Miguel e, claro, a briga dos meus irmãos, que parecia ter me colocado no meio de algo que eu ainda não compreendia completamente.
A crise da Lara foi a primeira coisa que aconteceu naquele dia, mas não antes de uma manhã aparentemente tranquila. Eu lembro de ter levantado cedo, tomado café com Gustavo e Eduardo, e por um momento, tudo parecia em ordem. Gustavo tentava puxar assunto comigo, mas eu ainda estava preso aos meus próprios pensamentos. Respondia de maneira curta, sem me aprofundar muito. Eduardo, por sua vez, parecia mais próximo do que nunca, me abraçando sempre que tinha chance e perguntando, com um sorriso, se eu queria dar uma volta com ele mais tarde.
Enquanto terminávamos o café, com a mesa repleta de pães quentinhos, manteiga, geleia, leite e frutas que minha mãe havia deixado separadas, Eduardo perguntou casualmente:
— Você tem algum plano hoje depois da escola?
— Tenho um trabalho pra fazer — respondi, evitando contato visual.
— Trabalho com quem? — ele insistiu, mordendo um pedaço de pão enquanto me observava com curiosidade.
— Um garoto da minha sala — murmurei, sentindo o olhar dele pesar em mim.
— Qual garoto? — Dessa vez, foi Gustavo quem entrou na conversa, me encarando com as sobrancelhas franzidas.
Eu suspirei, irritado com o interrogatório, e finalmente respondi:
— Miguel.
Gustavo largou o copo de leite na mesa com um baque surdo.
— Miguel? Aquele garoto que te perturba desde o começo do ano?
— Não interessa, Gustavo. Eu preciso fazer o trabalho, só isso.
Ele me olhou com aquela expressão que eu odiava: uma mistura de preocupação e desconfiança. Sem dizer nada, fechou a cara e cruzou os braços, mas não insistiu. Eduardo também pareceu desconfortável, mas decidiu não comentar.
Saímos juntos para a escola, e o silêncio entre Gustavo e eu se prolongou durante boa parte do caminho. Quando finalmente chegamos à porta da escola, ele parou de repente, me segurou pelo braço e disse:
— Léo, se você precisar de qualquer coisa... você sabe que pode contar comigo, né? Acima de tudo, somos irmãos.
Antes que eu pudesse responder, ele me puxou para um abraço apertado. Fiquei imóvel por um instante, sentindo o calor do corpo dele e o cheiro familiar de sua camisa, uma mistura de sabonete fresco e algo que só podia ser descrito como "Gustavo". Respirei fundo, quase involuntariamente, e uma onda de tranquilidade me envolveu, como se o mundo pudesse ser menos complicado com ele por perto.
Ele me soltou com um sorriso e foi em direção à sua sala. Eu, ainda meio perdido naquela sensação, segui meu caminho até a entrada. Foi quando encontrei Lara.
Lara estava comendo algumas uvas enquanto andava, como sempre fazia. Ela tinha um jeito único de se concentrar em pequenos detalhes, e as uvas pareciam ser o foco daquele momento. Estava tudo bem até que uma garota da escola, com aquele ar de superioridade que alguns adolescentes adoram exibir, pegou o pote de frutas da mão dela.
— Que bonitinho, suas uvinhas! — zombou a garota, apertando algumas uvas com força até que se desfizessem em sua mão.
Foi o suficiente para desencadear algo em Lara. Ela começou a repetir, com a voz cada vez mais alta:
— Não pode tocar minhas frutas! Não pode tocar minhas frutas!
A garota riu, continuando a provocar, e Lara entrou em crise. Começou a bater na própria cabeça, os movimentos fortes e rápidos demais. Fiquei paralisado por um segundo, entre querer enfrentar a garota ou ajudar Lara, que agora parecia perdida em um ciclo de dor e desespero.
— Ei, pare com isso! — gritei para a garota, mas ela apenas deu de ombros e saiu rindo.
Voltei minha atenção para Lara, tentando segurar suas mãos para impedir que ela continuasse se machucando.
— Lara, calma, sou eu, o Léo. Tá tudo bem. Não precisa se machucar.
Ela lutou contra mim, sua força surpreendente para alguém tão pequena. Minha mente estava em um turbilhão, sem saber exatamente o que fazer, mas algo me dizia que precisava continuar tentando. Finalmente, a abracei com força, pressionando minha testa contra a dela.
— Eu tô aqui com você. Vamos comprar outras frutas, tá? Tá tudo bem agora.
Repeti essas palavras várias vezes, até que sua respiração começou a desacelerar e ela se deixou relaxar nos meus braços.
Hoje, com 28 anos, penso que Lara foi uma das pessoas que mais me ensinaram sobre a importância da inclusão. É por causa dela que me tornei professor, que escolhi essa área, porque ela me mostrou o quanto o mundo pode ser cruel com quem é diferente. Hoje eu sei como agir em situações como essa, mas naquela época, eu só tinha força de vontade e uma amizade inabalável.
As crianças podem ser cruéis. Não por maldade intencional, mas porque, muitas vezes, não entendem o impacto das próprias ações. Elas testam limites, brincam com o que não compreendem, exploram as fragilidades dos outros como se fossem brinquedos. Mas o que, para algumas, é só uma brincadeira passageira, para outras pode se tornar uma marca eterna, um peso que carregam por toda a vida.
Eu vejo isso com clareza agora, aos 28 anos, olhando para trás, para as cenas que vivi e que ainda ecoam dentro de mim. Naquele dia, quando a Lara entrou em crise, foi como se uma parte dela estivesse implorando por ajuda, enquanto o mundo ao redor apenas ria e ignorava. E eu fiquei ali, no meio disso tudo, tentando ser uma âncora em um mar revolto, mas sentindo que meu esforço era pequeno diante da imensidão do problema.
A sociedade não sabe como lidar com o que é diferente. Pessoas típicas têm suas próprias batalhas, eu sei disso. Mas e aqueles que precisam de cuidados especiais? Aqueles que vivem num mundo onde as regras são feitas para os outros, onde o olhar que recebem não é de empatia, mas de julgamento? Eles não só enfrentam o peso da própria condição, mas também a crueldade de um sistema que não os abraça.
A Lara sempre foi um exemplo disso. Eu não entendia na época, mas ela vivia em constante batalha. Batalha contra os olhares de desprezo, as risadas abafadas, os comentários maldosos. Batalha contra um mundo que não fazia esforço para entendê-la. E ainda assim, ela seguia. Era incrível, na verdade. Mesmo depois das crises, ela se levantava, ajustava os óculos, limpava as lágrimas, e seguia em frente, como se fosse indestrutível.
Mas ninguém é indestrutível. Nem ela, nem eu. Porque, ao vê-la sofrer, algo dentro de mim também quebrava. Eu pensava em como era difícil para mim ser só o "garoto tímido", que às vezes não conseguia se encaixar nas rodas da escola. Mas para ela era muito mais. Era como viver num campo minado, onde qualquer palavra ou gesto errado podia desencadear uma explosão emocional.
E o pior de tudo é que o sofrimento dela nunca foi algo que escolheu. Era imposto. Pela biologia, pelas circunstâncias, e, principalmente, pela falta de compreensão das pessoas ao redor. Não era só a garota que apertou as uvas naquela manhã. Era o olhar da professora que não sabia o que fazer e, por isso, ignorou a situação. Eram os outros alunos que preferiram rir em vez de intervir. Era um sistema inteiro que falhou com ela, que falha todos os dias com tantas outras pessoas.
O que mais dói é saber que eu também não sabia o que fazer. Naquele momento, a única coisa que eu tinha era a vontade de ajudá-la, de protegê-la. Mas será que foi o suficiente? Hoje, com mais conhecimento e maturidade, sei que teria feito diferente. Sei que teria ido até a professora, que teria exigido que algo fosse feito, que teria ensinado aqueles alunos que o diferente não é errado, só é diferente.
Mas a verdade é que, na época, eu não sabia. Eu era só um garoto tentando entender o mundo. E Lara era minha amiga. Talvez a pessoa mais forte que eu já conheci, mas que também precisou enfrentar mais do que qualquer um deveria.
Hoje, como professor, vejo crianças como a Lara todos os dias. Vejo como elas brilham em suas peculiaridades, mas também vejo como o mundo tenta apagar esse brilho. E eu faço o que posso, tento ser a voz que as defende, o apoio que elas precisam. Porque, se há algo que Lara me ensinou, é que ninguém deveria enfrentar o mundo sozinho.
E, às vezes, me pergunto: quantas Laras existem por aí? Quantas estão sofrendo em silêncio, se sentindo invisíveis ou inadequadas? Quantas precisam de alguém que simplesmente diga: "Eu estou aqui com você"?
Hoje, enquanto escrevo essa história, não tenho mais minha amiga Lara ao meu lado, não posso mais dizer isso para ela pois ela se foi alguns anos depois, por isso, eu queria poder voltar no tempo e dizer isso a ela com mais frequência. Queria ter feito mais. Queria ter sido mais.
Mas, mesmo assim, espero que ela saiba que o que eu fazia vinha do fundo do meu coração. Porque, no final, Lara não era só minha amiga. Ela foi, e sempre será, uma parte de mim.
Quem puder, vote nessa história no Wattpad ♥️