Como foi o Natal? Espero que tenha sido ótimo. Só passando pra agradecer as visualizações. Os leitores da Casa do Conto como sempre fieis. Só queria pedir para você que está gostando da história comentasse e indicasse para os seus amigos leitores. Segue o capítulo:
Lá estávamos nós, na Argentina. Ainda era difícil acreditar que eu realmente estava perseguindo o sonho do meu pai. Cada quilômetro percorrido parecia trazer um pedaço dele de volta para mim, como se estivesse presente em cada paisagem e experiência. A viagem já era especial por si só, mas a entrada do Beto e do Piccolo tornaram tudo mais divertido e imprevisível.
Naquela manhã gelada, acordei sentindo o ar frio invadindo o Leopoldo, mesmo com o aquecedor ligado. Espiei pela janela e vi o Beto caminhando com o Piccolo. Ele tinha adotado o hábito de levar o gato para passeios matutinos, algo que me fazia rir só de pensar. Piccolo, com seu porte majestoso e olhar altivo, parecia inspecionar e julgar cada atitude nossa. É aquela máxima: o gato arranha e julga.
Enquanto fazia café da manhã, meus olhos não conseguiam evitar acompanhar os dois lá fora. O Beto estava de jaqueta e cachecol, e o Piccolo, em sua guia, andava ao seu lado como se fosse um cachorro. A visão era tão incomum quanto encantadora.
Foi quando ouvi a voz do Benê às minhas costas, me tirando do devaneio:
— Tá secando o bofe, é?
Quase derrubei o café no chão.
— Idiota! — reclamei, tentando me recompor. — Vou colocar sal no teu café, fica vendo.
— Tô brincando, maninho. — ele deu um risinho e encostou a cabeça no meu ombro. — Mas, ó, te digo uma coisa: acho que o piá tá afim também. Ontem, quando você tava 'morrendo', o Betão ficou todo preocupado. Foi uma luta fazer o guri me acompanhar no mercado.
Tentei conter a revirada de olhos, mas foi impossível.
— Benê, só porque somos gays não significa que a gente tem que ficar junto, ok?
Ele deu de ombros, como se não tivesse ouvido minha tentativa de encerrar a conversa.
— Você que sabe. — E, com sua típica leveza, foi até a cama e se jogou nela. — Vou sentir falta de você, caminha. Quando vocês dois se apaixonarem, vou ser expulso pra dormir na cama do Beto, ao lado daquele gato demoníaco.
— Dramático. — murmurei, concentrado em mexer no café.
Benê ignorou meu comentário e abriu o celular, rolando pela tela. De repente, ele soltou um grito.
— CARALHO!
O susto me fez derrubar um pouco de café na bancada.
— O que foi agora? — perguntei, limpando a sujeira e indo até ele.
Benê me estendeu o celular com uma expressão que misturava incredulidade e entusiasmo.
— Olha isso!
Na tela, o vídeo que havíamos gravado da nossa chegada à Argentina tinha atingido 200 mil visualizações. Fiquei paralisado por alguns segundos, sem acreditar. Sentei no chão do motorhome e abri a página de análises do canal. Aquele vídeo tinha nos levado a um marco: 100 mil inscritos.
— O que isso significa? — perguntei, meio perdido.
Benê levantou da cama como se tivesse sido eletrocutado.
— QUE SOMOS FAMOSOS, PORRA!
Ele começou a pular pela cabine, comemorando como se tivesse ganhado na loteria. Fiquei rindo, ainda processando o que estava acontecendo. Nós, famosos? Era surreal.
— Isso é só o começo! — ele continuou, apontando para mim. — Vai ter meet and greet, patrocínio, parcerias... e sabe o que mais? Vou contratar um segurança pra cuidar do Piccolo.
Revirei os olhos, mas não consegui segurar o sorriso.
— Calma, Benê, vamos com calma. — tentei trazer um pouco de racionalidade.
— Calma nada, maninho! Isso aqui é um sonho se realizando.
E, pela primeira vez, eu não conseguia discordar dele. O frio da Argentina parecia menos intenso agora, substituído por uma empolgação quente que começava a aquecer o Leopoldo e nossos corações.
Assim que contamos a novidade dos 100 mil inscritos para o Beto, ele ficou radiante. Pegou o celular e começou a assistir ao vídeo enquanto lia os comentários. Muitos elogiavam as imagens e a nossa energia, mas, como sempre, o Piccolo era o verdadeiro destaque.
— Esse gato já tá mais famoso que nós! — brinquei, tentando disfarçar o nervosismo que ainda sentia com toda aquela repercussão.
Beto riu, balançando a cabeça.
— É o que dizem: nunca trabalhe com crianças ou animais, eles sempre roubam a cena.
Depois da euforia, veio a preparação para mais um momento especial: a festa que aconteceria à noite. O camping tinha um banheiro amplo e confortável, e aproveitei para me preparar. Afinal, eu tinha uma meta bem clara para aquele dia: conhecer alguém interessante e transar.
Entrei no box privativo e comecei uma depilação rápida. Não que eu achasse essencial, mas, vamos lá, eu conhecia bem a comunidade gay e suas peculiaridades. Apesar de gostar de pelos – na verdade, achar homens peludos extremamente atraentes – sabia que muitos caras eram exigentes.
Enquanto terminava de me ajeitar, comecei a ouvir vozes no banheiro. A acústica do lugar era ótima, e a conversa soava clara, mesmo abafada pela porta do box. Reconheci a voz do Beto. Ele estava falando com alguém no celular.
— Eu tô tri bem, Nessa. Não quero uma pila deste homem, bah, guria, não te preocupa. Sim, o Piccolo também tá tri bem. Não fala pra eles, por favor. Eu não quero voltar, estou decidido. Esse povo só sabe chiar, não quero mais me atacunar!
Fiquei imóvel. O tom do Beto era firme, mas com uma pontada de vulnerabilidade. "Nessa"... deve ser alguma parente, pensei. Talvez uma irmã ou uma prima. A conversa parecia pessoal, e, bem, eu estava literalmente em cima da privada, tentando não fazer barulho para não ser descoberto. Então, tive a brilhante ideia de apoiar minhas mãos na porta.
O que ele estava enfrentando? Eu não sabia muito sobre a família dele, mas era óbvio que havia algo complicado ali. Meu coração apertou ao pensar na possibilidade de ele estar fugindo de um ambiente hostil. Eu era um dos sortudos que receberam apoio incondicional dos pais ao se assumirem. Saber que outros não tinham a mesma sorte me deixava inquieto.
Porém, minha reflexão foi interrompida de forma desastrosa. O trinco da porta, aparentemente mal encaixado, não aguentou meu peso. A porta se abriu de repente, e eu caí de cara no chão do banheiro. Pelado.
Acho que meu grito foi tão alto quanto meu desejo de desaparecer naquele momento.
— Bah, guri! Tá todo esgualepado aí, ouvindo a minha conversa? — Beto largou o celular e correu para me ajudar.
Queria me enfiar em um buraco. Ele, no entanto, parecia mais divertido do que irritado. Pegou sua própria toalha e cobriu meu corpo.
— Desculpa, eu... eu não tava tentando ouvir! Foi sem querer, juro!
— Sei, sei... — e/le deu um sorriso, mas o tom era brincalhão. — Tá bom, Sherlock. Vamos te levantar antes que alguém mais entre.
Beto me ajudou a ficar de pé, ainda sorrindo. Minhas bochechas queimavam de vergonha.
— Tudo bem, guri. Pra tua informação, eu tava falando com a minha irmã, a Vanessa. Parece que alguém viu os vídeos de vocês e contou pra minha família que eu tô aqui.
Fiquei em pânico.
— Meu Deus, e agora?
— Agora? Seguimos viagem. — Ele deu de ombros, com uma expressão decidida. — Nada mais me prende no Rio Grande do Sul, guri. Essa viagem tá sendo a melhor coisa da minha vida. Não vou deixar ninguém me segurando.
Eu o encarei, admirado com a determinação.
— Você é incrível, sabia? — disse antes de pensar.
Ele riu, desviando o olhar, talvez envergonhado.
— Bah, para de ser tri besta e vamos banhar.
Banho tomado, roupas prontas, e lá estávamos nós, um trio nada discreto a caminho da boate Amerika. O prédio não parecia em nada uma casa noturna. Era mais como um quartel de bombeiros, com seus tijolos laranjas expostos, mas isso não intimidou o Benê, que já havia garantido os ingressos online. O tema da festa era Anos 80, e ele fez questão de nos lembrar disso ao montar nossos looks: misturas de peças minhas e dele, porque, claro, o Beto era o "modelo" da noite, desfilando com estilo.
Ao entrar, o som nostálgico de "Last Dance", da Donna Summer, já nos recebia, mas, antes de pisar na pista, fomos direto para o bar. A música estava alta, e meu aplicativo de encontros começou a vibrar no bolso. Ignorei. A conversa entre nós três estava leve e engraçada.
— Piá, tu nunca ficou com um guri? — Beto perguntou para Benê, o sotaque gaúcho forte, evidenciando o efeito do álcool que já fazia efeito.
— Claro que já! — Benê respondeu, com a naturalidade de quem conta o final de uma novela.
Minha bebida quase foi cuspida.
— O quê?! Desde quando?
— Ah, Quim, não faz drama. Aquela velha história: garoto conhece garoto. Garoto acha que é gay. Amigo do garoto dá uma ajudinha... — Benê simula sexo oral com o copo. — E aí garoto descobre que não era pra ele. — Benê deu de ombros, rindo e terminando sua bebida. — Agora chega de DR! Vamos a bailar, guapos!
Ele desapareceu na pista, deixando Beto e eu rindo. Era impossível não se contagiar com a energia do Benê.
Alguns drinks depois, enquanto eles dançavam, decidi dar uma olhada no aplicativo. Uma mensagem apareceu. "Próximo ao banheiro." A foto anexada era promissora. Pedi licença e fui conferir.
E lá estava ele. Mais bonito ainda ao vivo. Trocamos olhares, depois beijos, e rapidamente seguimos para o darkroom. Foi intenso, rápido e... libertador. Quando saí, esbarrei diretamente no Beto, que segurava a mão de outro cara. Ele me deu um sorriso sem graça e acenou antes de desaparecer pela multidão.
Meu peito apertou. Ciúmes? Não. Não é isso. Não pode ser isso. Pedi um shot arco-íris no bar — um drink com as cores da bandeira LGBTQIAP+.
— Ciúmes, né? — Benê surgiu do nada, como sempre.
— Que mané ciúmes, Benê. Ele é livre. Pode fazer o que quiser.
— Hmmm, sei. E quantos caras ele já beijou hoje? — perguntou, tomando um gole do meu drink sem nem pedir.
— Sei lá. Quantos?
— Uns quatro, no mínimo. Ele tá com a agenda cheia. — O tom de fofoca dele me arrancou uma risada.
— E você, hein? Que história é essa do Leonardo Santos? Ele te mamou mesmo? — provoquei.
Benê virou o rosto, ofendido. — Ensino médio, Quim! Deixa o passado em paz!
— Meu Deus, Leonardo Santos... Não acredito! — Saboreei o azul do shot arco-íris.
— Vou ter que te carregar pra casa, né? Sempre sobra pra mim. — Ele suspirou teatralmente, mas o sorriso entregava que ele estava se divertindo.
— E aí, piás! — exclamou Beto, totalmente, bêbado.
— Meu gaúcho gatão! — disse Benê. — Não some mais, eu fico tristinho.
De repente, as notas iniciais de 'Girls Just Want Have Fun', da Cyndi Lauper, começaram a sair pelo sistema de som. O Benê nos arrastou para a pista de dança. No embalo da música, o meu corpo suado se encontrou com o do Beto. Estávamos tão perto que conseguia sentir os batimentos cardíacos dele.
E que rosto. Puta merda. O rosto do Beto possuía traços marcantes, daqueles que prendem o olhar sem esforço. Sua pele estava suada e lisa, resultado do barbear recente.
Por causa do jogo de luzes, seus olhos castanhos pareciam ganhar vida como se acendessem chamas. O maxilar dele era uma obra de arte por si só: bem definido, com ângulos que criavam uma sombra sutil na luz, acentuando ainda mais sua masculinidade.
Cada linha e curva transmitiam a ideia de alguém que sabia o que queria, mas ainda guardava uma suavidade nas feições, como se houvesse uma gentileza implícita por trás de toda aquela imponência.
Sério, por pouco eu não o beijei. Enfim, apesar de bêbado eu não tinha perdido o juízo. Estava me divertindo e aproveitando esse momento entre amigos.
E então tudo ficou frio. Muito frio. A música e a voz do Benê começaram a se dissolver como tinta na água. Depois, o escuro.
Quando acordei, o cheiro de café fresco me trouxe de volta à realidade. Estava deitado no motorhome, só de cueca, congelando. Levantei e fui direto para a geladeira, onde detonei um litro de água sem pensar duas vezes.
— Como viemos parar aqui? — perguntei, ainda grogue.
— Nem me pergunte. — Benê ofereceu uma xícara de café, com a expressão tão acabada quanto a minha.
— Foi tão ruim assim?
— Gaúcho, de zero a dez, qual é a nota do desastre? — Benê perguntou para Beto, que ainda estava largado na cama, com Piccolo, nosso mascote, deitado em cima dele.
— Mil. — Beto respondeu com o sotaque arrastado e uma risada que parecia dolorida.
A noite anterior era um borrão, e o consenso foi enterrar tudo no saco do esquecimento. Certas histórias não precisam ser recontadas. Exceto, talvez, o sexo maravilhoso... Mas isso fica só comigo.