Lembrando o final do relato anterior:
“— Ana… — comecei, a voz um pouco embargada. — Eu preciso te contar algo.
Ela me encarou, curiosa, mas sem a leveza de antes.
— Meus pais têm um plano — continuei, escolhendo as palavras com cuidado. — Um plano que pode mudar tudo, para que finalmente o Pedrão pague por tudo, tudo mesmo…mas você é fundamental para que ele funcione.
Expliquei a ideia, minhas mãos inquietas tentando segurar o nervosismo. Para minha surpresa, ela ouviu tudo sem interromper, apenas assentindo vez ou outra. Quando terminei, ela respirou fundo, desviando o olhar por um instante.
— Eu preciso pensar — respondeu, sem rodeios.
Ter que ir para aquela luta sem uma resposta concreta, foi duro, mas não tinha mais volta. Porém, como vocês devem imaginar, no dia da luta, no intervalo entre o quarto e o quinto rounds, foi Ana quem apareceu. E ela não estava sozinha. Trouxe junto toda a companhia que seria a peça final para acabar com Pedrão de uma vez.”
……
Antes de continuar esta parte, gostaria de informar que trarei algumas passagens da conversa que tive com Ana sobre o que aconteceu. Optei por não descrever toda a conversa por respeito a ela e ao que passou. Vocês, meus filhos, com certeza conhecerão a tia Ana, uma das minhas melhores amigas e madrinha de casamento, além de também ser madrinha de um de vocês.
……
Voltando ao relato…
*segunda-feira, semana da luta*
Como mencionei anteriormente, marquei uma reunião com Valdão e Bruninho logo pela manhã. Não foi exatamente uma escolha minha; eles insistiram em entender melhor as mensagens que mandei sobre a possibilidade de executar o plano arquitetado pelos meus pais.
Nos encontramos na academia onde treinávamos Muay Thai. O lugar tinha o cheiro característico de suor impregnado nos sacos de pancada e nos tatames, misturado ao leve odor de produtos de limpeza que tentavam mascarar a realidade de um espaço tão utilizado. O som abafado de golpes contra o saco de areia, vindo de outros alunos, a maioria crianças, que treinavam ao fundo, criava um clima de tensão ainda maior.
Bruninho e Valdão estavam sentados ao meu lado no banco próximo ao ringue. Valdão mexia nos punhos das bandagens como se estivesse tentando aliviar a inquietação, enquanto Bruninho tamborilava os dedos nervosamente sobre o joelho.
— Zeca, você tem certeza disso? — Bruninho começou, franzindo o cenho enquanto me encarava. A preocupação transparecia tanto na sua voz quanto no gesto involuntário de ajeitar os cabelos. — Seu pai realmente consegue lidar com a outra parte desse plano maluco?
Eu respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos, mas antes que pudesse responder, Valdão entrou na conversa.
— Mano, já é uma maluquice imaginar você, um frango, no ringue com o Pedrão... — disse ele, apoiando-se no banco e estalando os dedos. A tentativa de soar provocativo era uma fachada frágil para sua inquietação. — Mas se entregar nas mãos dele? Isso é loucura.
Ele cruzou os braços, mas seus olhos me examinavam como se esperasse que eu mudasse de ideia ali mesmo.
— Precisa ser eu... e precisa ser dessa forma. — Minha voz saiu firme no começo, mas eu senti a tensão tomar conta conforme continuei. — Primeiro, porque vai manter o Pedrão ocupado, o suficiente pra não suspeitar das movimentações que meu pai fará. Segundo, porque isso vai ser mais do que uma luta; vai ser uma história que exploda nos jornais.
Bruninho parou de tamborilar os dedos, enquanto Valdão descruzava os braços e inclinava o corpo levemente na minha direção. Eu continuei, aproveitando o silêncio deles:
— Pensa bem: “O namorado ameaçado por um cara mais velho que nunca se formou, mesmo estando há quase uma década na faculdade. Que usava o cargo no DCE pra cooptar calouras, algumas menores de idade. Que seduzia essas meninas e depois chantageava elas e suas famílias”. É disso que estamos falando!
Minha voz começou a falhar. Olhei para o chão por um momento, sentindo o peso do que estava dizendo.
— Precisa ser eu. Tem que ser uma derrota... com muita pancada, o suficiente pra me mandarem pro hospital.
O barulho de um chute forte contra o saco de areia ecoou pela sala, arrancando Valdão de seus pensamentos. Ele balançou a cabeça, apertando as mãos como se segurasse algo invisível. Bruninho esfregou o rosto, bagunçando ainda mais os cabelos.
— Você tá ouvindo o que tá dizendo, cara? — Bruninho perguntou, a voz embargada. — Você quer levar uma surra monumental... por causa de um plano?
Levantei os olhos para encará-los.
— Não é só um plano. É a única maneira de acabar com ele.
O silêncio que se seguiu foi cortante. Até os sons dos golpes na sala ao fundo pareciam distantes. Valdão, finalmente, se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Se você vai fazer isso... então é bom que dê certo, Zeca. Porque, senão...
Ele deixou a frase no ar, mas o significado era claro. Nós todos sabíamos o que estava em jogo.
Naquela segunda-feira, o dia começou cedo e intenso. A academia de muay thai estava mergulhada no cheiro forte de suor e resina dos equipamentos de treino, misturado ao som ritmado de socos e chutes contra os sacos de pancada. O ambiente estava carregado, quase sufocante, como se o peso que eu sentia na alma tivesse se impregnado nas paredes. E foi ali que passei pelo dia mais exaustivo da minha vida.
Por horas, deixei meu corpo ser levado ao limite. Cada golpe que eu dava parecia não ser suficiente para apagar a sensação que me corroía por dentro. Agora, anos depois, consigo reconhecer o que era: culpa. Uma culpa que parecia se alimentar de mim, uma sensação silenciosa, mas poderosa, que me consumia sem que eu percebesse.
Lembro-me claramente do que me atormentava. As histórias nojentas que Pedrão contava, como se fossem troféus de sua monstruosidade, ecoavam na minha mente. Ele falava com um orgulho perturbador, sem se importar com quem o ouvia. Eu estava lá, escutando tudo, mas nunca fiz nada. E isso me marcava. Algumas histórias eram tão gráficas que me causavam náuseas, mas mesmo assim, eu permaneci em silêncio. Um silêncio que, agora, parecia ter sido cúmplice.
Houve o primeiro episódio, quando ele destruiu meu relacionamento. Ele usou de manipulações e humilhações públicas para acabar com tudo, e eu... eu fiquei quieto, inerte. Mas foi só quando tudo aconteceu com Amanda, e pior ainda, com Ana, que finalmente tomei uma atitude. Só que essa reação veio tarde demais, e o peso disso me esmagava.
Naquele dia, o saco de pancadas virou meu confidente. Cada golpe que eu desferia era uma tentativa de me livrar da sensação de impotência que me aprisionava. Mas não adiantava. Eu me sentia fraco, inútil. Era como se minha falta de ação no passado tivesse me roubado qualquer direito de me poupar de sofrimento no presente.
Não merecia alívio, conforto ou compaixão. No fundo, acreditava que só a dor e o cansaço poderiam me redimir, poderiam fazer com que eu me sentisse menos indigno. Então continuei, batendo, chutando, enquanto a academia vibrava com os ecos das pancadas, o cheiro metálico do suor aumentando e o som das cordas do ringue rangendo ao fundo.
Naquele momento, mais do que nunca, eu não estava lutando contra um saco de pancadas ou me preparando para Pedrão. Eu estava lutando contra mim mesmo. Contra a sombra do meu silêncio e a culpa que ela carregava.
Já era no período da tarde, acho que 15:00 ou 16:00, quando Gustavao, o líder da academia, me chamou em sua sala. Não irei descrever novamente a sala, já fiz isso anteriormente.
Seus treinadores me contaram sobre seu plano. Você tem certeza que quer fazer isso? - perguntou, enquanto já comia sua marmita, após oferecer uma outra.
- Eu… eu… preciso - respondi, com uma dificuldade maior que a habitual.
- Muito bem. Saiba que essa luta e esse plano de vingança não é só seu. Não vou deixar você estragar tudo por que se sente culpado.
Naquele momento, minha reação foi de surpresa. Ele tinha conseguido me ler muito melhor do que eu mesmo.
- Falei com seu pai, ele também está preocupado. Eu passei alguns contatos de algumas vítimas do Pedrão. Eu sei o que ele pretende e o apoio.
A determinação nos olhos de Gustavao me deixou abismado. Ele não parecia ter dúvidas... ele entraria cem por cento no plano contra Pedrão, mesmo não tendo nada pessoal contra ele.
- Um lema que temos nesta academia é “mexeu com um, mexeu com todos!”. E ele não mexeu apenas com você, lembre-se disso.
Eu fiquei sem resposta. Segurei o pensamento, pensando que estava sendo egoísta e egocêntrico por achar que apenas eu faria o trabalho de acabar com Pedrão.
Como já sabem, Gustavao assumiu meus treinos, e no restante da semana fizemos treinos de recuperação e preparação para a luta, porém, sem me desgastar mais do que o necessário.
Ele me deu o toque de que Pedrão viria pegar suas coisas e que era para deixar ele me humilhar e me ameaçar. Alguém estaria gravando tudo. Descobri que foi mais uma ideia de meus pais.
O resto da semana e o dia da luta aconteceram como falei anteriormente. Eu não consegui mais contato com Ana, falei um dia com meu pai e ele me deixou tranquilo. Já tinha falado inclusive com os pais dela.
Fiquei sabendo que ele seguiu direitinho o que precisava fazer. Fez contatos com todas as vítimas e seus familiares, alguns pais dessas alunas inclusive eram membros da diretoria de seus cursos. Ele fez uma reclamação formal, na sexta-feira (véspera da luta), para a reitoria da faculdade, com a assinatura de todos esses pais, e as alunas que se dispuseram.
Conseguiu gravar a conversa com o assessor da reitora, que foi meio ríspido e disse que a reitoria da faculdade não iria contra alunos da faculdade, principalmente representantes do DCE, que era um órgão de representação autônoma dos alunos.
Meu pai saiu satisfeito da reunião. Ele soube que muitas alunas tinham feito reclamações nos últimos anos, mas essas reclamações sempre eram abafadas. Isso facilitaria muito a aceitação de uma punição severa para Pedrão, referente à faculdade, e uma possível revisão dos benefícios que estudantes que não iam para faculdade para estudar, mas sim, fazer parte da política da faculdade, através de seus centros acadêmicos e, principalmente, do DCE.
Ele mapeou todos os apartamentos pagos pela faculdade para os alunos que o DCE indicava e tudo isso fez parte de uma investigação, já no ministério público, encabeçada por um promotor que era tio e padrinho de uma das vítimas de Pedrão.
Realmente só faltava a confirmação da Ana para que todo o plano se consolidasse e que Pedrão pagasse em todas as esferas.
Todas as vítimas e seus pais ainda decidiram entrar com uma indenização contra o próprio e a reitoria da faculdade, o que com certeza daria ainda mais pressão para que a atual reitoria e sua diretoria renunciassem aos seus cargos.
Como foi arquitetado pelos meus pais, com a luta ainda em andamento, mas já no fim, eles entraram na academia, com alguns jornalistas que iriam ter a sorte de ter o furo de reportagem, a equipe do promotor que já estava no caso, junto com uma delegada da delegacia de defesa da mulher de referência daquela região. Todas as vítimas de Pedrão, inclusive com a jovem, que tinha acabado de completar 18 anos, e que foi brutalmente violentada por Pedrão e mais de 10 alunos, a maioria veteranos da faculdade.
Logicamente que tudo teria que ser rápido, para que ele não fugisse. Por isso, e também por causa da repercussão da imprensa, eu teria que deixar o filho da puta “ocupado” o suficiente para que não percebesse toda a movimentação fora do ringue.
……
*Segunda-feira, dois dias após a luta*
Acordei com o corpo todo doendo, especialmente a cabeça. A dor era lenta, como se algo estivesse pressionando meu crânio de dentro para fora, e a sensação era contínua, uma pressão pesada que não me deixava escapar.
Abri os olhos e me assustei ao perceber onde estava. Estava em uma cama, em um quarto com pouca luz, iluminado de forma tênue pela luz filtrada que entrava pela janela, coberta por uma persiana. A sensação era abafada, como se eu estivesse em um lugar isolado do mundo lá fora.
Tentei me levantar, mas a dor de cabeça me impediu. Além disso, senti a presença de um acesso venoso no meu braço esquerdo, onde uma infusão de medicamento estava sendo administrada.
Foi quando olhei para o lado e vi Fabi. Ela estava ali, ao meu lado, a pessoa que eu mais queria ver naquele momento. Sua presença, mesmo silenciosa, trouxe um alívio imediato.
Fabi se assustou com o gemido que dei e rapidamente se levantou, segurando minha mão direita. Sua pele macia e quente fez uma onda de emoção surgir dentro de mim, e sem conseguir evitar, comecei a chorar. Foi algo espontâneo, um choro profundo e liberador.
-Me desculpa por esconder tudo de você. Eu... eu precisava. - eu mal consegui falar, o peso da culpa transbordando.
Antes que eu pudesse continuar, ela se jogou na cama ao meu lado, encaixando-se perfeitamente no meu peito. Seus olhos estavam marejados, e em um impulso, me deu um beijo rápido, mas com uma carga emocional que eu senti intensamente.
-Eu sei que você precisava fazer isso. Eu sei… Eu estou aqui por você, fica tranquilo. - disse ela com a voz suave, tentando me acalmar.
Eu não consegui dizer mais nada, apenas a abracei com força, usando o braço direito. O esquerdo estava preso pela infusão, e ela mesma evitou que eu o movimentasse. O silêncio que se seguiu foi confortável, mas logo Fabi quebrou o momento.
- É verdade que você convenceu a Ana com uma versão pagodeira de "Carry On"? - perguntou ela, com uma risada contida, mas logo a seriedade tomou conta de seu rosto.
Por um momento, ri com ela, timidamente, mas logo a risada se dissipou, e a realidade do que estávamos falando voltou.
- Fabi, o que aquela garota me contou… O modo como usaram o medo dela, a ameaça com a prima trancada no quarto, foi monstruoso. - a voz me falhou enquanto eu tentava processar as palavras.
Fabi imediatamente fechou o rosto, uma sombra de dor passou por seus olhos. Ela tentou dizer algo, mas eu a interrompi.
- Se eu tivesse agido antes, se não tivesse tido medo… Se eu não tivesse deixado minha mente achar que tudo aquilo era normal… - a culpa me consumia. A frase não estava completa quando Fabi me interrompeu, segurando meu queixo e me olhando profundamente nos olhos.
- Não. Não faça isso. Você já sofreu demais. Não fique com essa culpa. Se fizer isso, o Pedrão sempre vai te vencer. Isso nunca vai acabar. - sua seriedade me fez tremer, e eu sabia que ela estava certa. Mas a culpa ainda estava lá, me corroendo.
Fabi tinha razão, mas não consegui deixar aquilo ir. Mais de 8 anos depois, os pesadelos ainda me assombram.
Esse episódio deixou uma marca profunda na minha vida, assim como na vida de Amanda (mãe de vocês) e de todos os outros envolvidos.
Saí do hospital apenas na quinta-feira. No final de semana, fui visitar Amanda em Londrina, como havia prometido.
Fabi foi comigo, e aquele foi o começo de um novo capítulo na minha vida. Ela conseguiu convencer os pais a deixá-la fazer faculdade nos EUA, mas em um estado distante de onde Marcus e eu ficamos.
Infelizmente, ou talvez felizmente, nossa relação esfriou com o tempo, e acabamos perdendo todo contato. Posso dizer que até hoje penso nela, mas a vida tomou outro rumo. E, de certa forma, isso foi bom, pois, se estivéssemos juntos, vocês não estariam aqui, neste berço, comigo e sua mãe, observando vocês dormir, como crianças maravilhadas abobalhadas com a beleza da vida.
Sobre o restante destes 8 anos…muitas coisas aconteceram e, logicamente, contaremos para vocês nos próximos relatos.
Continua….
Obs: FICA PROIBIDO A COPIA, EXIBIÇÃO OU REPRODUÇÃO DESTE CONTEÚDO FORA DESTE SITE SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO AUTOR.
Obs: me dei o direito de não relatar o ocorrido com a personagem Ana. Poderia ser um trecho de uma carga erótica, que sei está em falta nesta série, mas eu não iria e nunca irei contra meus princípios.
Infelizmente esse começo tive que relatar cenas de relações abusivas e violentas, tanto psicológicas, como físicas…mas nunca faria uma descrição de algo tão monstruoso como uma cena de violência sexual. Sinto muito aos que se excitam com esse tipo de coisa, mas não será de mim que terão esses textos.
Quero também agradecer a quem acompanhou até aqui, por favor continuem comentando, principalmente se for críticas…irá me ajudar a melhorar e isso será bom para todos!
Eu resolvi não postar mais essa série no site. Quem quiser a história inteira, deixem o email para contato. Será cobrado um valor irrisório, apenas para justificar o tempo perdido escrevendo para minha esposa, mas logicamente só acontecerá se a terminar. Peço um prazo para a conclusão, irei informar no email de quem quiser.
E….sei que vao perguntar…eu vou tentar terminar a outra série, mas talvez só no início próximo ano, iremos viajar agora e se ficar no celular ou no notebook escrevendo histórias para o site eu serei expulso de casa…e pior que nem consegui trabalhar estou conseguindo. Kkk
Obrigado a todos!!!
Um ótimo final de ano para todos!!
Embora ainda ficarei enchendo o saco dos outros escritores nos comentários neste final de ano. Kkkk
Fiquem com Deus.