Capítulo 10 – E toda jornada chega a um fim.
O fim de ano trouxe uma mistura agridoce para Rafa. Por um lado, ele não poderia estar mais orgulhoso de si mesmo. Suas notas estavam incríveis, e ele já era visto como uma referência acadêmica, sendo convidado para dar oficinas de metodologia científica durante as férias. Era uma honra que ele jamais teria alcançado sem a influência de Keila. Por outro lado, a casa estava vazia. Silenciosa demais.
Keila havia viajado para passar o Natal com a família. Antes de ir, deixou instruções claras: "Fotos de tudo o que você comer, mocinho. Nada de furar a dieta."
Ela também o sobrecarregou com materiais acadêmicos — seus resumos, listas de exercícios, e até alguns textos marcados com suas anotações afiadas.
— Aqui está tudo o que você precisa pra ser o aluno estrela de novo no próximo semestre. — disse ela, jogando o caderno em sua direção antes de sair. — Não me decepcione, Rafa.
Nos primeiros dias, Rafa seguiu cada ordem como uma máquina. A academia com Mau Mau foi um refúgio constante. Durante as sessões de treino, ele extravasava a energia acumulada e se mantinha focado, mas as noites eram mais difíceis. O vazio da casa parecia gritar, e ele sentia falta até mesmo das provocações mais irritantes de Keila.
No Natal, Rafa foi visitar a família. Ele evitava falar sobre Keila, mas não conseguia evitar pensar nela a cada momento. As mensagens que ela mandava não ajudavam.
— Tá feliz comendo essa farofa? Espero que tenha tirado foto antes de devorar. — brincava ela, enviando junto uma selfie com a ceia de sua família.
Durante a ausência de Keila, a casa parecia engolir Rafa em silêncio. Ele tentava se concentrar nos estudos, mas o som das páginas virando ou o leve eco de seus passos apenas ampliava a solidão. À noite, ele olhava para o quarto vazio dela e sentia um aperto estranho no peito, algo que nem os treinos mais intensos com Mau Mau conseguiam dissipar.
O tempo se arrastou. Finalmente veio o dia de buscar Keila no aeroporto. A ansiedade não permitia que ele percebesse o caos ao seu redor de um aeroporto internacional em pleno janeiro. Quando Keila finalmente apareceu no portão de desembarque, Rafa sentiu o ar escapar de seus pulmões. Ela parecia tão familiar, mas ao mesmo tempo diferente, como se a viagem tivesse colocado um peso invisível sobre seus ombros. O sorriso dela estava lá, mas algo no olhar sugeria que ela carregava mais do que as malas nas mãos.
— Sentiu minha falta? — perguntou ela, com um sorriso que não alcançou os olhos.
Rafa assentiu, pegando as malas dela enquanto tentava esconder a agitação. No carro, o silêncio entre eles era desconfortável. Keila parecia pensativa, e Rafa não sabia o que dizer. Quando chegaram em casa, ela pediu que ele fosse com ela ao banheiro. E mais uma vez rafa se refestelou com os sabores que só Keila podia lhe ofertar.
Era um fim de tarde quando Keila chamou Rafa para uma conversa. A casa estava mais silenciosa do que o habitual, e ele sentiu um aperto no peito ao ver o olhar sério dela. Ela o guiou até a sala, onde havia uma caixa pequena sobre a mesa. Dentro dela, estavam os pendrives e HDs que continham todos os vídeos e fotos que ela usara para controlá-lo.
— Senta aí, Rafa. — disse Keila, sua voz mais suave do que de costume.
Ele obedeceu, o estômago revirando com a sensação de que algo importante estava prestes a acontecer. Keila respirou fundo antes de começar.
— Tenho uma notícia. Passei em um processo seletivo para uma multinacional. Vou trabalhar no Nordeste, Rafa. É uma oportunidade incrível, e não podia recusar. — Ela fez uma pausa, observando a reação dele. — Isso significa que vou me mudar na próxima semana.
Rafa sentiu o coração despencar, mas ficou em silêncio, tentando processar as palavras. Keila deslizou a caixa pela mesa até ele.
— Aqui estão todos os vídeos, fotos, qualquer coisa que eu já tenha usado pra te controlar. São suas agora. Você está livre, Rafa. Livre pra fazer o que quiser com sua vida, sem mim. — Ela cruzou os braços, mas havia algo no tom dela, algo quase hesitante.
Ao olhar para a caixa sobre a mesa, Rafa sentiu como se estivesse perdendo o chão. Era mais do que pen drives e HDs. Era tudo o que ele havia se tornado nos últimos meses. Toda a estrutura que Keila havia criado para ele agora parecia desmoronar diante de seus olhos. Como poderia voltar a ser o mesmo sem ela?
— Livre? — Ele perguntou, a voz quase inaudível. — Você... está me deixando?
Keila riu suavemente, mas havia um toque de tristeza.
— Rafa, eu nunca planejei que isso fosse pra sempre. Eu brinquei com você porque podia. E sim, no processo, acho que fiz de você alguém melhor. Mas agora é hora de você seguir em frente, crescer por conta própria. — Ela deu de ombros, tentando soar casual, mas seus olhos denunciavam algo mais profundo. — Vai ser bom pra você.
Houve um longo silêncio antes que Rafa pegasse a caixa. Ele olhou para os pen drives e os HDs, sentindo o peso simbólico do que aquilo significava. Então, com um movimento repentino, ele empurrou a caixa de volta para ela.
— Não. — disse ele, firme.
Keila franziu a testa, surpresa.
— O quê?
Rafa respirou fundo, as palavras saindo em um rompante de pura sinceridade.
— Eu não quero isso. Não quero ficar sem você. — Ele olhou diretamente nos olhos dela, sua voz carregada de emoção. — Você me mudou, Keila. E não só porque me obrigou a fazer coisas. Você me fez enxergar quem eu podia ser. Me fez querer ser melhor. E agora você quer ir embora e me deixar aqui, sozinho, como se nada tivesse acontecido?
Keila ficou em silêncio, encarando-o, e pela primeira vez Rafa viu algo quebrar na postura dela. Ela parecia vulnerável, como se estivesse tentando esconder o impacto das palavras dele.
— Rafa... — começou ela, mas ele a interrompeu.
— Não. Se você está indo, eu vou com você. Recomeçar? Tudo bem. Mas eu não quero recomeçar sem você. Não quero uma vida onde você não esteja.
Keila desviou o olhar por um momento, tentando recompor a fachada de controle. Mas era impossível. As palavras de Rafa a atingiram em cheio, e ela sabia que ele estava sendo sincero.
— Você tem certeza disso? — Ela perguntou, sua voz mais baixa do que ele já ouvira.
Rafa assentiu, sem hesitar.
— Mais do que qualquer coisa.
Keila riu, uma risada curta e nervosa, antes de balançar a cabeça.
— Você é um idiota, sabia disso? Um idiota que eu não sei como, mas... acabou entrando no meu coração.
Ela se levantou, caminhando até ele, e pela primeira vez, tocou o rosto dele com uma ternura que ele nunca havia sentido antes.
— Tudo bem, Rafa. Se você está disposto a começar do zero, comigo, eu aceito. Mas quero deixar uma coisa bem clara. — Ela sorriu, aquele brilho malicioso voltando aos olhos. — Eu ainda mando em você. Sempre. Teremos regras novas assim que chegarmos no Recife...
Rafa riu, sentindo uma mistura de alívio e felicidade que ele nunca imaginou ser possível.
— Sempre, Keila. Sempre.
Enquanto ajudava Keila a organizar as malas para a mudança, Rafa não conseguia evitar imaginar como seria a vida deles em Recife. Novas rotinas, novos desafios, e, claro, novas regras. Mas, pela primeira vez, ele não sentia medo. Sentia apenas a certeza de que, onde quer que Keila estivesse, era exatamente onde ele deveria estar.