Deixamos Curitiba com o Leopoldo ronronando como um gato velho e satisfeito depois dos reparos na funilaria. A chuva tinha dado uma trégua, mas o frio, ah, o frio... esse parecia decidido a nos acompanhar.
No caminho, Benê e eu nos permitimos fazer pequenas paradas em cidades que despertavam nossa curiosidade. Em Rincão, compramos pão de queijo quentinho numa padaria de beira de estrada, e Benê insistiu em fotografar uma igreja antiga que mal se sustentava em pé. Pedra Branca do Araraquara era tão pequena que quase passou despercebida, mas lá encontramos uma feirinha de artesanato e comprei um chaveiro para a nossa crescente coleção de lembranças da viagem.
— Você ainda acha que vai ter espaço pra tudo isso no Leopoldo? — Benê provocou, observando o chaveiro balançar na minha mão.
— Memórias não ocupam espaço, mané. — retruquei, guardando o chaveiro no bolso.
Passamos por Garuva e Rio Bonito, onde o frio começou a mostrar a que veio. Benê, claro, estava adorando. Ele dirigia com as janelas abertas, deixando o vento gelado entrar, enquanto eu me encolhia no banco do passageiro, agarrado a um cobertor.
— Você devia estar agradecendo por esse frio. Muito melhor do que calor. — ele zombou.
— Frio é bom... na TV. — respondi, cerrando os dentes.
Em Joinville, paramos para explorar a cidade, aproveitando que o dia estava ensolarado, embora o vento cortante nos lembrasse de que o inverno estava cada vez mais próximo. Visitamos o Mirante, o Pórtico e o Moinho da XV, além da Catedral de São Francisco Xavier. Benê fazia vídeo de tudo e de todos, enquanto eu preferia observar e, em momentos de folga, editar os vídeos da viagem para postar nas redes sociais.
— E aí, quantas visualizações? — Benê perguntou, espiando meu notebook enquanto estávamos estacionados perto de uma praça.
— Por enquanto, só a galera da família. — respondi. — Tia Neide comentou que o Leopoldo parece com um carro da década passada.
— Melhor que nada. Espera só até chegarmos na Argentina. Vamos viralizar. — ele piscou, cheio de confiança.
Como de costume, não resisti e comprei ímãs com os pontos turísticos de Joinville para minha coleção. Benê fez cara de desgosto, mas não disse nada.
Depois de explorar a cidade, meu irmão insistiu para irmos até Pomerode, a cerca de uma hora dali. Ele tinha lido sobre o Parque Vila Encantada, com dinossauros gigantes inspirados no Jurassic Park, e estava empolgado como uma criança.
— É longe. E vai estar cheio de pirralhos. — reclamei, mas cedi. Era impossível dizer não ao entusiasmo do meu irmão.
O parque estava, de fato, lotado de crianças, mas Benê parecia ser a maior delas. Ele corria de um lado para o outro, tirando fotos de dinossauros, escalando brinquedos e até brincando em um labirinto temático.
Enquanto ele ria e se divertia, me peguei observando-o com um sorriso discreto. Apesar de tudo — as saudades de casa, o frio, as dores nas costas de dormir no Leopoldo —, eu sabia que éramos sortudos.
Benê era meu alicerce. Mesmo com a morte dos nossos pais, ele nunca deixou o otimismo morrer. Aquela alegria contagiante dele, até em situações banais como brincar num parque de dinossauros, era o que tornava cada quilômetro dessa viagem mais suportável.
"Obrigado por ser meu irmão", pensei, mas guardei para mim. Não era do meu feitio verbalizar essas coisas, mas, enquanto eu filmava Benê correndo atrás de um dinossauro de plástico, sabia que não precisava dizer. Ele sentia. Sempre sentiu.
Na volta para o Leopoldo, ele mostrou as fotos que tirou, comentando cada detalhe como se tivesse acabado de voltar de uma expedição arqueológica.
— Um dia, você vai agradecer por ter deixado eu te arrastar pra essas coisas. — disse, com um sorriso convencido. — Fora que você me escolheu como ministro da diversão.
— Eu não usei essas palavras, Benedito! — exclamei, jogando uma bolinha de papel na direção dele.
Eu ri e balancei a cabeça. Talvez ele estivesse certo.
O frio apertava, mas o calor humano que Benê trazia era suficiente para manter o coração aquecido.
Mas sabe um calor bom? O que saía do forno enquanto Benê preparava o jantar. Ele fazia maravilhas por mim. Depois de mais um dia enfrentando o frio crescente do sul, o aroma de bife e arroz preenchia o interior do Leopoldo, e pela primeira vez eu sentia meu corpo relaxar completamente.
— Amanhã é minha vez de cozinhar de novo, né? — Benê perguntou, enquanto mexia o arroz com um ar distraído.
— Você está gostando muito de fugir da louça, isso sim. — provoquei, ajeitando a câmera e o notebook sobre a mesinha improvisada.
Ele riu e me mostrou a língua antes de voltar à tarefa.
Enquanto ele cozinhava, aproveitei para editar os vídeos da viagem. A maior parte era tranquila, mas um clipe específico exigia atenção especial. Aquele flagra de Benê no Rainbow Bar, filmando minha completa decadência depois de encher a cara, precisava de uma censura pesada. Cortei a maior parte, deixando apenas as partes engraçadas e inofensivas. Com o trabalho finalizado, segui para o banheiro.
Tomar banho naquela temperatura era um tormento. Infelizmente, não conseguimos colocar um sistema de água quente no Leopoldo, então a estratégia que encontramos foi - ferver um pouco de água e jogar dentro da caixa. Ajudava? Um pouco, mas era melhor que nada.
— Saudades do meu chuveiro elétrico. — reclamei, após sair do banho, mas o meu irmão já estava dormindo. Ele não estava usando o cobertor. — Idiota. — o cobri.
Deitei ao lado do Benê e o colchão já não me incomodava mais. Acabei me acostumando, inclusive, estava fazendo maravilhas pelas minhas costas. Usei o cobertor e um edredom, mas a baixa temperatura continuava me castigando.
— Dois graus? — questionei ao olhar o visor do celular. — Eu vou congelar até a Argentina.
No dia seguinte, o frio parecia ter dobrado de intensidade. Decidi que não dava mais para adiar: precisava de um aquecedor. Dirigi até uma loja especializada em camping, onde um homem chamado Omar, dono do estabelecimento, nos recebeu com entusiasmo.
— Vocês estão indo para onde? — perguntou, enquanto organizava alguns itens de exposição.
— Ushuaia. — respondi, tentando não tremer enquanto mexia no casaco.
Omar soltou uma risada curta. A sua voz grossa me atingiu como um raio. Fiquei com tesão.
— Ushuaia, hein? Muitos tentam e desistem. O frio no "fim do mundo" não é brincadeira. Vocês vão precisar de mais do que um aquecedor.
Ele nos mostrou roupas térmicas e peças 'corta vento', cobertores especiais e, claro, um bom aquecedor portátil. Enquanto explicava os detalhes de cada item, ele me olhou de cima a baixo com curiosidade.
— Você é fotógrafo? — perguntou, apontando para a câmera pendurada no meu pescoço.
— Sou. — confirmei, com um sorriso breve.
Omar se animou.
— E se você fizesse umas fotos da minha loja? Algo legal, para eu usar no site e nas redes sociais. Em troca, dou um bom desconto nas roupas.
A ideia era boa, e eu não tinha muito a perder. Corri até o Leopoldo para pegar as lentes certas e, em questão de minutos, estava fotografando o interior da loja sob o olhar atento de Omar.
— Essas ficaram incríveis. — ele comentou, analisando as fotos no visor da câmera. — Você tem um talento raro.
Enquanto isso, Benê decidiu explorar a cidade. Saiu com sua câmera para visitar uma igreja que tinha visto no dia anterior e prometeu voltar com material para o canal.
Omar, por outro lado, continuava próximo. Perto demais. Percebi suas intenções quando ele começou a me elogiar de forma mais incisiva, falando de minha aparência e do "fascínio" pela minha dedicação à fotografia. Eu ri sem jeito, tentando desconversar, mas ele era persistente.
Antes que percebesse, estávamos na sala dos fundos da loja. Omar era direto e confiante, e, por mais que tentasse resistir, acabei cedendo. Havia algo no contraste entre o frio lá fora e o calor daquele momento que tornava tudo mais intenso.
O chão era duro e frio, mas não importava. Entre risos abafados e conversas sobre encontros inusitados, me peguei refletindo sobre como a vida na estrada era cheia de surpresas.
— Você acha que alguém já transou no meio das roupas térmicas? — Omar brincou, rindo enquanto se levantava.
— Se não, agora já marcaram território. — retruquei, rindo também.
O clima leve foi interrompido por batidas insistentes na porta da loja.
— Joaquim! Você está aí? — Benê gritava do lado de fora.
Omar e eu trocamos olhares alarmados. Estávamos completamente nus, espalhados entre caixas de mercadorias.
— Droga. — murmurei, enquanto procurava minhas roupas às pressas.
— Está fechado! — Omar gritou, tentando ganhar tempo.
Benê, claro, não desistiu. Ele olhou através do vidro e viu os meus materiais.
— Por que está trancado? Joaquim, eu vi sua câmera aqui! Abre essa porta!
Enquanto me vestia o mais rápido possível, tentei conter o riso nervoso.
— Não se preocupe, eu cuido disso. — Omar disse, ajustando a camisa.
Eu respirei fundo, tentando parecer o mais normal possível antes de sair. A última coisa que precisava era de Benê fazendo perguntas.
E, claro, ele perguntou.
— O que estava rolando aí dentro?
— Só um trabalho fotográfico. — menti, fingindo despreocupação.
Mas o olhar desconfiado de Benê deixou claro que ele sabia que havia mais naquela história.
Voltei para o motorhome com o corpo ainda quente — em todos os sentidos. As roupas térmicas e o aquecedor que comprei na loja de Omar eram um alívio para o frio intenso que vinha enfrentando, mas o calor do momento que havia acabado de viver ainda vibrava em mim. Tomei um banho rápido e quase me masturbei lembrando o que vivi na loja.
Benê me olhou assim que saí do banheiro, já com aquela expressão curiosa que ele adorava usar quando achava que algo estava fora do comum.
— Até que enfim! Achei que ia morar lá dentro. — ele provocou, arrumando a bagunça que havia feito no pequeno espaço do Leopoldo.
— Tive um longo dia. — respondi, tentando parecer casual enquanto jogava a sacola as roupas sujas em um cesto.
Benê ergueu uma sobrancelha.
— Sei. Lembrando do Omar, né? Tudo bem, Quim, eu também bato uma rapidinha pra aliviar a tensão.
Revirei os olhos, ignorando o tom malicioso, e liguei o aquecedor. O calor tomou conta do ambiente em minutos, e me permiti relaxar um pouco.
— Vamos voltar para a BR-116 amanhã de manhã. — comentei, desviando o assunto.
Benê não se deu por vencido.
— Sei lá, hein, Joaquim. Você tá meio estranho. Omar tem alguma coisa a ver com isso?
— Dá um tempo, Benê. — retruquei, cortando o papo.
Ele riu, claramente satisfeito por ter cutucado o suficiente.
No dia seguinte, pegamos a estrada novamente. O plano era seguir para o sul, com destino ao Chuí, a última cidade brasileira antes do Uruguai. No caminho, passamos por cidades que pareciam ter nomes de um filme de comédia, como Residência Fuck, Lascadinha, Fraiburgo e Passa Bois. Cada placa de entrada era motivo de piada, e Benê, claro, não perdeu a oportunidade de filmar tudo para o canal.
— Acho que em Lascadinha você ia se sentir em casa depois de ontem. — ele soltou, gargalhando enquanto segurava a câmera. Lascadinha foi uma das cidades na qual visitamos no trajeto para a fronteira.
— Benê, se você não calar a boca, vou largar você aqui. — ameacei, mas a verdade é que estava me divertindo tanto quanto ele.
Paramos em Monte Carlo para passar a noite. O frio era intenso, mas o aquecedor fazia milagres, deixando o interior do Leopoldo confortável e acolhedor. Benê cozinhou um macarrão improvisado, e nós nos sentamos para conversar sobre os próximos passos da viagem.
— O Uruguai vai ser interessante. — ele disse, animado. — Mas o Chuí é só o começo. Quero ver você enfrentar o frio da Argentina.
— Com esse aquecedor, eu enfrento até o Polo Sul. — respondi, rindo.
Mas Benê não deixava passar.
— Só espero que você não encontre outro Omar pelo caminho. Senão o Leopoldo vai virar cenário de filme adulto.
Dessa vez, eu ri junto. Apesar das provocações constantes, a companhia de Benê era um alívio. Entre as piadas e os momentos sérios, ele conseguia tornar tudo mais leve, mesmo nos dias mais frios e cansativos.
Nosso próximo desafio era atravessar o Rio Grande do Sul até o Chuí. A cada quilômetro, ficávamos mais perto do fim do mundo — e eu sentia que essa viagem estava apenas começando.