Estou confuso, não sei exatamente porque beijei o Dan, ele é meu melhor amigo e sempre o enxerguei como um irmão, mas quando o vi tão vulnerável e triste não consegui me conter e o beijei, não devia ter feito isso, não sou gay, não fico com caras — fiz uma merda muito grandes dessa vez — e agora preciso pensar muito bem no que vou falar para ele depois disso para não magoá-lo.
Amo tanto esse moleque que nem pensei direito, Raylan — meu outro melhor amigo — tem razão gosto tanto do Dan que as vezes nem penso direito nas coisas, mas certamente o que sinto por ele é o mesmo que sinto pelo Raylan um profundo amor de irmão, coço a cabeça pensando em como vou sair dessa sem perder a amizade dele.
Uma vez vi um cara falar num filme que ele tinha a sindrome de heroi, é tipo uma vontade imensa dentro de si de proteger e ajudar todo mundo e que nada era mais desafiador do que o sentimento de impotência, isso me pegou muito forte na época e ainda hoje ficou gravado na minha mente, meu pai é um cara com problemas, ele bebe muito e desconta na minha mãe e em mim também algumas vezes.
Ele já agrediu minha mãe de muitas formas diferente, uma dessas vezes ele acertou um tapa tão forte que ela quase desmaiou, foi quando algo dentro de mim despertou, uma força e uma vontade de protegê-la, o problema é que ainda era muito novo, meu pai me amarrou e me bateu de cinto, com minhas mãos presas não consegue aparar seus golpes, mas mesmo assim, mesmo tomando todas as porradas só conseguia pensar em uma coisa “não é minha mãe quem está apanhando”.
Deste dia em diante comecei a ser o filho rebelde para meu pai assim sua raiva ficava direcionada principalmente para mim e não para ela, não quer dizer que ele não batia nela também, porém numa frequência bem menor e a cada surra que levava em seu lugar me sinto mais satisfeito por salvá-la.
Quando conheci Dan percebi de cara que ele era um garoto frágil e muito gentil, o acolheu de imediato, ele era um alvo fácil na escola até meu amigo Raylan implicava com ele, então naturalmente fui me tornando seu defensor e melhor amigo — e único — claro que com o tempo fui percebendo que ele era diferente, Raylan e os outros já ficavam com as meninas e não vou negar tinha meus esquemas também, mas com Dan não era assim, tentei muito fazê-lo perder a vergonha e até a virgindade, mas o cara parecia ter medo de mulher.
Mas parei de tentar quando entendi que mulher não era mesmo sua praia, nosso ciclo de amigos não era nem um pouco seguro para que ele explorasse sua sexualidade, então resolvi só esperar até que ele se sentisse à vontade para me contar do que gostava, só que tamanha foi minha surpresa quando ele disse que curtia caras, ou melhor que ele curtia um cara especifico, eu.
Ser um cara legal não quer dizer que você acerta sempre, tipo fiquei tão perdido quando o vi chorando, para um heroi não existe nada pior do que uma pessoa que não posso ajudar, e foi aí que fiz, o beijei, não foi ruim, senti algo durante o beijo, nunca tinha beijado um cara antes, mas sua boca carnuda e delicada sei lá, por um segundo parecia que estava beijando uma mina, mas não era uma gata, era meu irmãozinho e isso ficou estranho para cacete depois que sai da sua casa, estou muito confuso e fodido, precisei de um tempo vagando pelo bairro sem rumo para tentar chegar em uma conclusão, mas hoje também é aniversário dele então tive que voltar para casa para me arrumar.
— Ricardo! — Ouço meu pai me chamar no segundo que entrou em casa.
— Oi pai — mal consigo responder antes que ele me acerte um soco no estômago seguido de outro no rosto que me leva ao chão, minha mão corre para tentar me ajudar, mas meu pai a afasta com um empurrão brusco.
— VOCÊ É VIADO PORRA! — Ele grita, mas estou tão preocupado com minha mãe que levo meio segundo para entender o motivo de está apanhando.
— Não, eu não sou — antes que consiga responder ele me acerta um chute nas costelas que me tira o ar.
— NÃO ME RESPONDE SEU MERDA, AQUELA VAGABUNDINHA VEI NA PORRA DO BAR DIZER QUE MEU FILHO TAVA COMENDO A BIXA IRMÃO DELA — Minha cabeça está girando, ele me bate a anos, mas nunca com tanto odio assim, suas palavras não fazem o menor sentindo para mim, mas sei que quando mais tentar argumentar com ele agora vai ser pior, então só me encolho e recebo seus chutes e tapas em silecio tentando entender o que está acontecendo e principalmente tentando ser seu único alvo.
Ele só parou de me bater quando se cansou, depois saiu de casa como se nada tivesse acontecido, fiquei no chão da sala chorando e gemendo de dor, meu pai havia me espancado por algo que não fiz, Isabel mentiu para o meu pai, não consigo entender o que a motivou a falar isso, mas a dor não me deixa pensar sobre isso agora, meu pai é muito homofobico, a simples mensão já é sulficiente para irrita-lo de verdade, imagina alguem chamando seu filho de viado ainda mais na frente de seus amigos, mesmo sem acreditar isso já é motivo para espancar seu filho, pois é isso que os covardes fazem, eles maltratam aqueles que deveriam proteger.
Minha mãe está desesperada, mas chamar a polícia ou me levar para o pronto socorro é algo proibido nessa casa, meu pai mata ela se contarmos para alguém sobre o que rola aqui dentro — não que os vizinhos não saibam — até hoje ninguém nunca o denunciou, a essa altura minha mãe tem tanto medo dele que ela trava só de pensar em procurar um policial, então ela fez o que pode, me ajudou a ir para o quarto e cuidou das minhas feridas.
Perdi o aniversário do meu amigo, para variar fiquei preso no meu quarto, sem telefone e sem contato com qualquer um, nem minha mãe tinha autorização de entrar no quarto — mesmo assim ela entrava para me dar comida escondido quando ele não estava — quando me recuperei da surra que levei cheguei a achar que as coisas tinham se acalmado, mas não, na verdade minha vida nunca mais seria a mesma.
— Junta tuas coisas Ricardo — meu pai entra no quarto de forma brusca e me dando essa ordem.
— Não faz isso João — minha mãe implora se ajoelhando aos seus pés
— O senhor vai me expulsar de casa? — Estou atonito.
— Para o bairro todo ficar falando que meu filho é gay? — Ele tomou isso como uma verdade sem ser — vou te levar para bem longe daqui para que ninguém saiba a vergonha de filho que você é — suas palavras duras magoam mais que seus tapas.
— Mãe, para onde eu vou? — Meu corpo inteiro treme, estou com medo de que ele vá me matar, nunca o vi tão possuido de odio assim.
— Arruma suas coisas filho da puta, não me faz repetir — minha mãe vem me ajudar, mas ele a puxa pelos cabelos — ele vai arrumar sozinho.
Começo a jogar minhas coisas de qualquer jeito mesmo dentro da mochila, afinal não quero deixá-lo ainda mais irritado e perto da minha mãe, não consigo pegar tudo, precisaria de uma mala, mas acredito que não estou em posição de pedir algo assim, quando finalizo ele me puxa pela camisa e me arrasta até seu carro, minha mãe está chorando e implorando por tudo que é mais sagrado que ele não faça isso.
— Mãe tudo bem, vai ficar tudo bem — me esforço para tranquilizá-la, mesmo não acreditando que vai ficar tudo bem.
É cedo e quase não tem ninguém na rua, meu pai olha de forma ameaçadora para minha mãe e nem a deixa se despedir de mim, entramos no carro só eu e ele e assim tudo que conheço até essa fase da vida fica para trás, pouco a pouco toda a minha vida fica para trás, ele dirigiu por horas sem trocar uma única palavra comigo, até quando fez uma parada comprou água só para ele, estou com fome e com sede, não faço a minima ideia de para onde estamos indo, só sei que ainda estamos no mesmo estado por conta das placas.
Já é fim de tarde quando chegamos até uma cidadezinha do interior, meu pai para o carro perto de uma rodoviária, pela placa que passamos só sei que estamos em um lugar chamado Granja — que é um interior do estado — meu pai desce do carro e um homem que nunca vi na vida se aproxima dele, os dois se abraçam e começam, mas não consigo escutar o que estão conversando.
— Vem aqui Ricardo — só com sua autorização é que desço do carro — esse aqui é o Ramon, esse é o meu moleque primo.
— E aí — comprimento esse primo do meu pai que só estou sabendo da existência agora.
— Ele é a cara da Diana primo — ele se refere a minha mãe.
— Pois é — meu pai diz meio sem paciência — primo ele vai ficar com vocês até aprender a virar homem, pode colocar ele pra trabalhar, tem moleza para ele entendeu.
— Pode deixar primo, avó já tá num felicidade só porque vai conhecer o bisneto — esse cara é um pouco parecido com meu pai, tem uma pele morena assim como ele, porém seu rosto tem marcas de trabalho árduo debaixo de sol, típico cara que nasceu e se criou trabalhando.
Meu pai se despede do primo e me ignora completamente, depois entra no carro e vai embora, ele prefere enfrentar mais algumas horas na estrada do que ficar mais um segundo perto de mim, só espero que minha mãe não sofra quando ele chegar cansado, Ramon me encara por uns segundos e então me chama.
— Vamo Ricardo, temos que chegar em casa antes que fique mais escuro.
— Você não mora na cidade?
— Não, o sítio fica mais afastado.
Ramon não mentiu, o Sítio Porteira aberta fica a quarenta minutos da cidade e não tem um poste de luz a quilômetros, nenhum mesmo, meu primeiro choque foi perceber que não existe energia elétrica aqui, meu pai me trouxe para o local mais remoto que conseguiu, aqui vou ficar cercado de mato, sem energia e sem contato algum com qualquer pessoa que não seja da família, Ramon contou ainda que o único transporte da família é essa Honda CG 125 76’ vermelha — com muita ferrugem — que ele usou para me buscar na cidade.
— Mãe chegamos — Ramon foi criado pela minha bisa por isso chama ela de mãe.
— Oh meu filho, graças a Deus — uma senhorinha magrinha vem nos receber, ela é pequena e aparentemente frágil, mesmo assim parece saudável e lúcida para a idade que tem.
— Oi sou Ricardo — me apresento, mas ela me puxa para um abraço.
— Você é a cara da sua mãe rapaz, só vi ela em foto, mas dá para ver como são parecidos — ela arruma seus grandes óculos.
— Essa é sua bisa, o nome dela é Graça, ela é mãe do pai do seu pai — Ramon explica nosso grau de parentesco.
A família do meu pai é morena pois eles tem raízes no interior do Ceará que é a bisa e taus e temos outra raiz no Rio de Janeiro, mas puxei a genética angolana da minha mãe, sou preto de pele retinta, tenho um corpo magro, porém sou bem alto o que me destaca um pouco mais no meio da multidão, por ser retinto as pessoas costumam dizer que sou a cara da minha mãe, mas passado pela visão do racismo velado e estrutural tenho muito mais traços do meu pai do que dela.
— Só moram vocês dois aqui? — Pergunto.
— Sim, mas o primo Gustavo mora no terreno junto com a esposa Dalva e os gêmeos Luis e Leone.
A bisa — ela amou que estou chamando ela assim — me serviu um prato de comida delicioso, depois me levou até um quartinho no quintal, ela disse que posso ficar com ele, ainda tem uns tralhas aqui, já que era uma espécie de quarto da bagunça, mas que amanhã de manhã o primo Ramon vai me ajudar a organizar tudo, como eles ficaram sabendo meio que de última hora que estava vindo não deu para arrumar antes, porém ela me arruma uma rede limpa, toalha e até uma escova de dentes, ela me lembra minha mãe, é uma mulher muito cuidadosa e amorosa.
Eu tenho uma vela, um banheiro esterno que vou dividir com meu primo já que o banheiro dentro da casa é só da bisa, o quarto é pequeno, frio, solitário e muito escuro, lágrimas escorrem pelo meu rosto agora que estou sozinho, não por mim mas pela minha mãe, nunca me senti tão impotente, quem vai protegê-la agora? Nem telefone eu tenho, Ramon diz que sinal aqui é muito difícil de se conseguir e só ele e o primo Gustavo tem celular para variar.
Com os dias vou conhecendo melhor esses parente e tenho que dizer meu pai é o único babaca da família, primeiro que o primo Ramon quando bebe só quer saber de dormir, o primo Gustavo é crente junto com a mulher e os filhos então nem beber ele bebe e por mais incrível que pareça eles são os crentes mais mente aberta que já conheci.
Vamos por partes, a bisa tem 73 anos, casou cedo e teve quatro filhos todos homens e o único vivo mora no Rio atualmente, ela criou o primo Ramon desde que nasceu, a mãe dele era mulher da vida — como a bisa mesmo fala — hoje ele tem 33, nunca se casou, mas é raparigueiro como seu pai era e até o momento não tem nenhum filho, talvez uma perdido pelo mundo, mas que ele saiba mesmo não tem.
Primo Gustavo morava no Rio, mas quando perdeu o trabalho resolveu se mudar, meu pai já tinha feito essa viagem e ele resolveu seguir os passos do meu coroa, só que ele não foi para capital, preferiu vir para o interior direto onde conheceu a Dalva, casaram logo de cara, a bisa deu um pedaço do terreno e ele junto com Ramon construíram a casa que ele mora atualmente, ele tem 40 e a esposa tem 38, os gêmeos têm sete, ou seja não tem ninguém da minha idade aqui.
Logo nos meus primeiros dias a bisa mandou logo o primo Gustavo me matricular na mesma escola, como tem ônibus da prefeitura que pega os alunos da zona rural para estudarem na cidade não ia ser problema ir para escola e de quebra uma das minhas tarefas passou a ser levar os gêmeos e trazê los da escola, para Dalva nem tinha mais distinção de quem eram seus filhos, era como se tivesse me tornado irmão dos gêmeos — eles até me chamam de irmão já — a bisa virou uma mãe também, ela é mãezona de todo mundo aqui, o primo Gustavo aos poucos foi ocupando a espaço de pai para mim enquanto o primo Ramon se tornou um irmão mais velho que me levava para farra.
Sempre que dava falava com minha mãe por telefone e ela veio me visitar algumas vezes, meu pai foi que nunca apareceu, mas a certa altura da vida Gustavo já era mais meu pai do que ele, numa dessas visitas da minha mãe consegui falar com Raylan, porra estava com muita saudade do meu moleque, ele quase chorou quando ouviu minha voz, só não consegui mais falar com o Dan, mas fiz o Raylan prometer que cuidaria dele.
Embora tenha mudado para um lugar sem energia elétrica e com muito trabalho para fazer, consegui estudar e me adaptar com a vida no campo, também pude pensar muito sobre o beijo que dei no Dan, quando você não tem nada para fazer a noite sua mente costuma viajar bastante, foi assim que acabei entendo que gostava de caras e de meninas, foi complicado no começo, mas tive umas aventuras no ensino médio, com caras e minas, nada sério, mas deu para descobrir algumas coisas, só que quando se mora em um interior guarda segredo é algo muito difícil e o pai Gustavo ficou sabendo sobre meus gostos antes que estivesse me sentindo pronto para compartilhar com ele.
— Ricardo podemos conversar? — Ele veio até meu quarto uma certa noite.
— Pode entrar pai — estava estudando para fazer o enem, ele entrou e se sentou numa cadeira ao meu lado.
— Tem alguma coisa que você queria me contar? — Sua expressão não era rígida nem nada, mas tive medo, medo que ele me desse o mesmo tratamento que meu pai.
— Sobre o que pai? — Meu corpo todo entrou em estado de alerta.
— Ricardo, você está crescendo e virando um homem, você é bonito filho e as meninas dão muito em cima de você, sua mãe então só recebe elogios quando vai na cidade — ele se refere a Dalva que virou uma segunda mãe para mim.
— Pai — minha voz falha, ele já sabia de tudo.
— Filho nunca te obrigamos a ir para a igreja e mesmo assim você foi às vezes quando se sentiu à vontade, o cuidado que você sempre teve com os gêmeos, isso sem contar no tanto que você ajuda aqui no sítio, não vou te recriminar meu filho — suas palavras me emocionam.
— Desculpa pai.
— Ei não precisa disso menino, vem aqui — um pai que abraça seu filho parece algo normal, mas para mim nunca foi, seu abraço é o lugar mais seguro do mundo para mim — Ricardo a fé de um homem não está nisso, você amar alguém não é pecado, lembre disso viu.
— O senhor não está decepcionado?
— Quando o João disse que ia te mandar para morar com a gente ele me contou.
— O senhor sabia esse tempo todo e nunca me disse nada.
— Isso não muda o que sentimos por você Ricardo, somos uma família, a vó é louca por você desde que você chegou, o Ramon também nem preciso falar né, inclusive temos que conversar sobre vocês andando bêbados nessa moto na estrada a noite, Dalva quase não dormi na última que vocês aprontaram.
— Não faço mais prometo — estou tão feliz, meu pai tentou me punir, mas ao invés disso ele me deu o maior presente que a vida podia me dar.