O Cleiton estava se sentindo culpado.
Me contou que o Daniel tinha traído a Aline diversas vezes, desde a época do namoro, e ele sempre encobriu, nunca nos contou nada por conta da amizade entre os dois.
Mas agora até ele estava achando que Daniel passou dos limites: Além das prostitutas, do assedio à Fernanda e da estagiária, desde que virou chefe ele estava tratando mal os seus subordinados, que estavam reclamando de assédio moral.
Eu nunca fui boa com palavras, mas naquela momento eu sabia que precisava usá-las para enfrentar a verdade. Minha garganta estava seca, e o peso do que eu precisava dizer parecia me esmagar. Mas eu não podia mais adiar. Ele precisava saber!
Me aproximei devagar e sentei ao lado dele. Cleiton ergueu os olhos, percebendo a seriedade no meu rosto.
- Eu me sinto culpado – disse ele com vergonha – se eu tivesse contado antes sobre essas traições do Daniel, talvez eu tivesse evitado que a Aline fosse exposta a esse risco da AIDS
Respirei fundo, tentando encontrar coragem. Como dizer a ele que a nossa vida, nossa história, nunca foi tão simples quanto ele imaginava?
– Cleiton... eu preciso te dizer que não há inocentes nessa história, todos nós temos alguma culpa. E é sério. Preciso que me escute até o fim antes de reagir, tá bom?
Eu pude ver a preocupação crescendo nos olhos dele.
– O que aconteceu? – perguntou, agora com a voz mais grave.
Meus dedos tremiam, e eu os entrelacei para tentar disfarçar. Olhei para as minhas mãos por um momento antes de encará-lo novamente.
– É sobre... o que você me contou. Sobre o Daniel, essa prostituta ... a Samantha... e sobre a possibilidade de... de AIDS.
O rosto de Cleiton endureceu. Ele assentiu lentamente, como se me incentivasse a continuar.
– Eu sei que preciso falar com a Aline... pra prevenir ela. Mas antes de qualquer coisa, você precisa saber que... – engoli em seco, sentindo meu coração disparar – que eu e a Aline... nós estamos tendo um caso.
O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Cleiton arregalou os olhos, ficou olhando para o nada durante alguns segundos, como se tentasse absorver as palavras.
– Como é que é? – ele finalmente murmurou, a voz baixa, mas carregada de incredulidade.
– É isso que você ouviu – continuei, tentando manter a calma, mesmo com a culpa esmagando meu peito. – Eu e ela... temos um relacionamento. Não é recente, Cleiton. Isso já acontece há algum tempo. E... se o Daniel passou alguma coisa pra Aline, pode ser que ela tenha passado pra mim. E... – pausei, sentindo as palavras ficarem presas na garganta – pode ser que eu tenha passado pra você.
Ele recuou no sofá, como se precisasse de espaço para processar. A mão dele foi até o rosto, cobrindo os olhos por um momento, enquanto ele balançava a cabeça.
– Você tá me dizendo que... além de tudo, eu posso estar com essa porcaria de doença? Por sua causa?
– Cleiton, eu sei que errei. Eu sei! – Minha voz falhou, e lágrimas começaram a escorrer antes que eu pudesse contê-las. – Mas você precisava saber.. Mas agora isso não é mais só sobre a gente. É sobre saúde, é sobre...
Ele se levantou abruptamente, andando de um lado para o outro na sala. Eu sabia que ele estava tentando conter a explosão de emoções.
– Você tem ideia do que tá me dizendo, Adriane? Eu confiei em você! Eu... – Ele parou, respirando fundo, antes de apontar para mim. – Isso muda tudo. Absolutamente tudo.
Eu me levantei também, encarando-o com lágrimas nos olhos.
– Cleiton, eu não tô pedindo desculpas esperando que você me perdoe agora. Eu só precisava ser honesta. Pela primeira vez em muito tempo, eu precisava ser honesta.
Ele me olhou, dividido entre a raiva e a dor. Finalmente, balançou a cabeça e suspirou profundamente.
– Eu não sei como processar isso agora. Mas uma coisa eu sei: a gente precisa fazer os exames. Todos nós. E depois... depois a gente vê como lidar com isso.
Assenti, mesmo que as palavras dele doessem mais do que qualquer coisa. Eu sabia que podia perder tudo. Mas, pelo menos, finalmente, a verdade estava à tona.
No dia seguinte eu fui até o escritório, falei com meu chefe que não estava em condições de trabalhar, e que precisava resolver problemas pessoais.
Eu ainda tinha um período de 10 dias de férias, e meu chefe concordou que o usufruísse. Eu sempre fui uma excelente funcionária, e agora que estava precisando, ele colaborou comigo.
Saindo de lá, fui direto ao apartamento da Aline, seria uma outra conversa difícil!
Aline sempre foi tão segura de si, tão inabalável. Mas enquanto eu me dirigia ao apartamento, eu sabia que ia quebrar algo dentro dela – algo que talvez nunca pudesse ser consertado.
Eu interfonei e subi até o apartamento, ela já estava na porta me esperando, vi o sorriso que iluminava o rosto dela desaparecendo ao ver a seriedade no meu.
– O que houve, Adriane? Você tá com uma cara... – Ela abriu espaço para eu entrar, mas não conseguiu terminar a frase.
Eu passei pela porta e me sentei no sofá, sentindo as palavras se acumularem na minha garganta como pedras. Ela sentou ao meu lado, preocupada.
– Aline, a gente precisa conversar. É sério. – Minhas mãos estavam entrelaçadas no meu colo, o nervosismo evidente.
Ela franziu a testa, inclinando-se um pouco para frente, os olhos atentos.
– Tá me assustando. Fala logo.
Respirei fundo, tentando organizar a bagunça na minha mente. Mas como organizar o caos?
– É sobre o Daniel – comecei, sentindo o impacto imediato das palavras. Ela ficou tensa, mas não disse nada, esperando que eu continuasse. – Eu descobri que ele teve... um caso.
Aline piscou, como se tivesse ouvido errado.
– O quê? Do que você tá falando?
– Ele teve um caso, Aline. Um caso não é bem a palavra, ele foi num puteiro e comeu uma garota de programa chamada Samantha. E... – hesitei, mas sabia que precisava ser direta – ele descobriu que ela tem AIDS.
Ela recuou no sofá, como se minhas palavras fossem golpes físicos. Seus olhos se arregalaram, e a cor começou a sumir do rosto dela.
– Não... – Ela balançou a cabeça, como se estivesse tentando afastar a ideia. – Isso não pode ser verdade.
– É verdade, Aline. E... eu precisei contar sobre nós para o Cleiton. Eu... achei que ele tinha o direito de saber, porque... – minha voz vacilou, e eu desviei o olhar por um momento – porque isso pode nos afetar também.
O silêncio que se seguiu foi esmagador. Eu podia ver o impacto das minhas palavras nos olhos dela, que agora estavam marejados.
– Você contou... sobre nós? Pro Cleiton?
Assenti lentamente, tentando ignorar a culpa que me consumia.
– Eu não podia mais mentir. Aline, ele precisava saber. Ainda mais com essa situação...
Ela se levantou, andando de um lado para o outro, as mãos nos cabelos, o rosto marcado pela angústia.
– Adriane, você tem ideia do que fez? – A voz dela estava quebrada, quase um sussurro. – Você expôs tudo.
Me levantei também, me aproximando, mas ela recuou, levantando a mão como se pedisse distância.
– Eu não tinha escolha, Aline. Não depois do que aconteceu. Eu não podia mais viver nessa mentira. E você também não pode ignorar o que tá acontecendo. O Daniel... ele pode ter passado isso pra você.
Ela se virou para mim, os olhos agora cheios de lágrimas que começaram a escorrer sem controle.
– E se ele passou? – A voz dela estava repleta de amargura. – Isso significa que eu posso ter passado pra você. Que você pode ter passado pro Cleiton. Meu Deus... o que a gente fez?
– Eu não sei, Aline – confessei, minha voz embargada. – Mas o que eu sei é que a gente precisa encarar isso. Precisamos nos cuidar.
Ela se sentou novamente no sofá, as mãos no rosto, os ombros sacudindo enquanto ela chorava baixinho. Me sentei ao lado dela, mas não ousei tocá-la.
– Aline... eu sinto muito – sussurrei, mas sabia que minhas palavras não tinham peso nenhum naquele momento.
Ela não respondeu. Ficou ali, perdida nos próprios pensamentos, o rosto ainda coberto pelas mãos. Mas a verdade já não podia mais ser escondida.
Mesmo a Aline estando naquela situação eu precisava prosseguir: Contei que o Daniel assediou a nova funcionária, que ele realmente teve um caso com a estagiária, que ele já a havia traído várias vezes e que estava com o rei na barriga desde que virou chefe, maltratando os funcionários da equipe.
Aline chorou muito!
- Fui culpa minha ... desde que eu comecei a namorar o Daniel ele já dava sinais de ser mulherengo, agressivo, e ele fazia aquelas piadinhas homofóbicas e eu sempre relevei. O Daniel sempre foi muito ambicioso e prepotente, eu que optei por não ver isso! E o nosso caso, nós erramos também, não deveríamos ter escondido nada!
E naquele instante, vendo-a tão vulnerável, entendi que nossas escolhas nos trouxeram até ali. E, mais do que nunca, nós precisávamos assumir as consequências, por mais devastadoras que fossem.
Depois de alguns minutos vi que ele se recuperou e comecei a tratar de questões práticas.
Eu estava recebendo acompanhamento médico porque estava tentando engravidar e não conseguia. Liguei para a clínica expliquei a situação e marquei uma consulta de emergência para logo após o almoço.
Fui com a Aline na consulta e o médico passou os procedimentos para que eu, a Aline e o Cleiton fizéssemos os exames necessários.
Quando saímos da clínica a Aline viu que no prédio em frente havia apartamentos para alugar por dia. Normalmente os clientes eram turistas, que iriam ficar alguns dias na cidade e que preferiam apartamentos em vez de hotel.
Como a Aline estava disposta a iniciar o processo de divórcio e estava desempregada, resolveu se mudar para um daqueles apartamentos, afinal não poderia alugar uma casa do jeito convencional, pois não comprovava renda. Ela disse que não iria morar com seus pais na praia, pois a cidade era muito pequena ... e lá em casa não tinha como ela ficar.
Ajudei a Aline a alugar o apartamento por 30 dias, os quais foram pagos adiantados. No dia seguinte ela já poderia se mudar.
Me despedi da Aline e fui para casa. Tinha sido um dos dias mais pesados da minha vida, e ainda não tinha acabado, eu iria chegar em casa e conversar com o Cleiton. E a Aline iria confrontar o Daniel e falar sobre a sua decisão de divórcio.
O Cleiton chegou em casa com a cara fechada, nunca o tinha visto daquele jeito. Passei para ele as instruções do médico e quais exames deveríamos fazer. Ele foi monossilábico, disse que iria fazer os exames, depois jantou, tomou banho e foi dormir, não conversou mais nada comigo.
Perto da meia noite meu telefone vibrou, quando viu o nome de Aline piscando na tela, imediatamente atendi:
— Aline? O que houve? — perguntei
Do outro lado da linha, o som de soluços abafados foi a primeira resposta. Fiquei alerta, o coração disparado.
— Aline, fala comigo! O que aconteceu?
— Adriane… — começou Aline, a voz trêmula, quase irreconhecível. — Eu… eu não aguento mais… tudo está desmoronando…
— Calma, respira. O que aconteceu? Foi o Daniel?
O choro de Aline intensificou-se, e ela levou alguns segundos para conseguir falar. Quando finalmente o fez, as palavras saíram atropeladas:
— Ele… ele tava gritando comigo. Disse coisas horríveis! Eu confrontei ele sobre… sobre a garota de programa, sobre os casos que você me contou. Ele não negou, Adriane! Ele não negou nada!
Fechei os olhos, apertando o celular com força contra o ouvido. Sentiu um nó na garganta.
— Ai, Aline, eu… eu sinto tanto. O que ele disse exatamente?
— Ele… — Aline engasgou com as palavras. — Ele disse que eu era a culpada por tudo! Que se procurasse bem, encontraria motivos em mim pra ele fazer o que fez! Ele gritou tanto, Adriane… tanto. Acho que todo mundo no prédio ouviu.
Tentei manter a calma, mas não consegui disfarçar a indignação.
— Ele te culpou?! Depois de tudo o que ele fez? O que mais ele disse?
— Ele ficou furioso quando eu pedi o divórcio. Jogou coisas no chão, quebrou um copo, bateu na mesa… parecia um… um estranho. Depois, quando a síndica ligou no interfone pedindo silêncio, ele ficou ainda pior. Me ameaçou, Adriane. Disse que eu ia me arrepender se chamasse a polícia.
— Ele te ameaçou? — perguntei carregada de preocupação. — Você está bem? Ele te machucou?
— Não, ele não encostou em mim… Mas eu fiquei com tanto medo. Disse pra ele que ia chamar a polícia se ele não saísse. E aí ele saiu. Pegou as chaves e bateu a porta. Nem sei onde ele está agora…
O silêncio que se seguiu foi pesado. Segurei as lágrimas, mas minha voz saiu embargada.
— Amiga, você fez o certo. Ele não tinha o direito de te tratar assim. Você não está sozinha, tá bom? Você quer que eu vá aí?
— Eu não sei… não sei o que fazer. Não sei nem o que pensar… — Aline fungou. — Ele pode ter me passado… Adriane, e se eu estiver com… com isso também?
O peso do medo na voz de Aline era insuportável. Senti as lágrimas correrem por seu rosto.
— Aline, escuta. Nós vamos descobrir isso juntas, tá bom? Amanhã mesmo vamos fazer os exames. Você está segura, ele não está aí. Você quer que eu vá pra sua casa agora?
— Por favor… eu preciso de você.
— Estou indo. Não faça nada até eu chegar, tá bom? Tranca todas as portas e tenta descansar. Estou a caminho.
Aline murmurou um “obrigada” entre os soluços. Desliguei já pegando as chaves do carro, determinada a não deixar Aline amiga sozinha naquele momento sombrio.
Acordei o Cleiton para avisar que ia passar a noite no apartamento da Aline, mas expliquei bem os motivos, que era somente porque ela estava muito abalada e porque Daniel a tinha ameaçado.
Ela não falou nada, apenas acenou com a cabeça concordando.
Passei a noite com a Aline, estávamos muito abaladas, quase não dormimos.
Como ela estava muito certa do divórcio, perguntei se ela não pensava em voltar a trabalhar na concessionária ou na loja de roupas, ela saiu de ambos os empregos com as portas abertas para voltar.
Ela me disse que em 6 meses conseguiria se tornar corretora de imóveis e que os pais dela iriam emprestar um dinheiro para ela se manter durante esse tempo e que depois ela devolveria.
No dia seguinte fomos fazer os exames. O Cleiton fez os dele as 8h da manha e foi para a fábrica trabalhar. Eu e a Aline fizemos os nossos as 9h. Depois fomos até a consulta com a advogada para tratar do divórcio e por último fomos até o apartamento da Aline, para que ela pegasse algumas roupas e objetos pessoais par se mudar.
Quando nós estávamos indo embora, entramos no elevador e demos de cara com a Rosa, a vizinha fofoqueira:
- Bom dia Aline! Soube que está se separando! Eu ouvi a discussão de você com o Daniel!
Eu e a Aline estávamos tão cansadas e de baixo astral, que nem respondemos. A Aline apenas se abraçou comigo, estava murcha. Mas mesmo assim Dona Rosa continuou:
- Na minha época o casamento era para sempre! Não é que nem hoje, que trocam de marido como quem troca de camisa!
Novamente não respondemos, graças a Deus abriu a porta do elevador e fomos embora!
Fomos até o apartamento que a Aline alugou e finalmente pudemos parar um pouco e descansar:
- Esses dias foram terríveis – disse eu sentando em uma cadeira do apartamento – tudo que tínhamos para fazer, já fizemos. Agora é só aguardar.
- Já fizemos os exames, agora é só esperar o resultado. E a advogada vai dar entrada no divórcio – respondeu Aline.
- E agora eu só preciso me acertar com meu marido!
Aline me deu um abraço:
- Muito obrigada Adriane – disse ela emocionada – tenho certeza que você vai se acertar com o Cleiton. Eu vou sair da sua vida, para que você possa reconstruir seu casamento com o Cleiton!
- Eu sou apaixonada por você dois! Se dependesse de mim ficava com os dois, como um trisal, sabe?
- Infelizmente não podemos ter tudo. Mas como consolo acho que tudo de ruim que tinha para acontecer, já aconteceu, né?
- Eu acho que sim! Deus me livre acontecer mais coisa ruim. Mas também, o que mais de ruim poderia acontecer?
Nesse momento toca o meu celular. Era da fábrica, avisando que o Cleiton estava sendo internado num hospital!
Continua ...
“Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar”
Música: Meu mundo caiu - Maysa