O dia começava devagar, como se o tempo tivesse desacelerado apenas para nós. O ar estava fresco, uma brisa leve entrava pelas frestas da janela entreaberta, trazendo consigo o cheiro de terra molhada. Devia ter chovido durante a noite. O quarto, ainda mergulhado em penumbra, era um refúgio seguro, distante do caos que havíamos enfrentado.
Os lençóis estavam meio bagunçados, metade cobrindo Gustavo, enquanto eu me aconchegava mais perto dele. Ele vestia uma camiseta preta, velha e desbotada, uma que eu lembrava de tê-lo usado anos atrás. O tecido fino marcava os contornos de seu corpo que, finalmente, começava a ganhar vida novamente.
Por um momento, fiquei apenas observando. Os cabelos dele, um pouco mais longos do que de costume, caíam levemente sobre a testa. A barba estava cheia, mas bem cuidada, diferente de quando ele chegou, abatido e sem forças para se importar com nada. O rosto dele parecia mais cheio, com cor, como se a vitalidade estivesse lentamente retornando. Era o mesmo Gustavo que conheci quando eu ainda era um garoto — forte, confiante, mas agora marcado por tudo que passamos.
Respirei fundo, sentindo o peso das últimas semanas ainda em meus ombros, mas havia algo diferente naquela manhã. Algo mais leve. Não era apenas ele que estava mudando; eu também estava.
Passei os dedos devagar pelo rosto dele, sentindo a textura da barba, como se quisesse me certificar de que ele estava realmente ali. Ele se mexeu levemente, murmurando algo que não entendi.
– Você está acordado? – perguntei, quase em um sussurro.
– Não exatamente – ele respondeu, a voz rouca de sono, sem abrir os olhos.
Sorri, mas não respondi. Em vez disso, continuei observando-o, deixando que aquele momento se gravasse na minha memória.
Lembrei-me de quando o levei ao médico. Foi uma batalha convencê-lo a ir, mas ver o sorriso do doutor ao dizer que ele estava melhorando tornou tudo mais fácil. A dentista até brincou sobre ele finalmente recuperar o sorriso que tantos admiravam. Cada pequeno avanço era uma vitória para nós dois.
Gustavo abriu os olhos lentamente, me encontrando ainda o observando.
– Você não cansa disso? – ele perguntou, com um sorriso preguiçoso.
– Disso o quê?
– De me olhar como se eu fosse a única coisa no mundo.
– Talvez porque você seja – respondi, e não era brincadeira.
Ele esticou a mão, segurando a minha com firmeza.
– Você é brega – disse ele, mas o sorriso em seus lábios contradizia as palavras.
– Só com você.
O riso dele preencheu o quarto, um som que há tempos eu não ouvia e que agora parecia ser o som mais bonito do mundo. Ele me puxou para mais perto, nossos corpos ainda protegidos pelo calor dos lençóis.
– Vem cá – ele disse, puxando-me pela nuca.
Nosso beijo foi lento, quase tímido no início, mas rapidamente se tornou mais intenso, carregado de tudo o que não conseguíamos colocar em palavras. Era como se, naquele momento, todas as dores, os medos e as incertezas desaparecessem.
O toque dele era firme, mas cuidadoso. Ele deslizou os dedos pelas minhas costas, como se precisasse se certificar de que eu estava ali, de que tudo aquilo era real. E eu fazia o mesmo, segurando o rosto dele com ambas as mãos, sentindo sua barba contra minha pele.
Quando nos afastamos, ele encostou a testa na minha, respirando fundo.
– Obrigado, Léo – ele disse, com a voz baixa e cheia de emoção.
– Não precisa me agradecer, Gustavo. Eu faria tudo de novo por você.
– Eu sei, mas você nunca desistiu de mim. E eu nem sei como te agradecer por isso.
Toquei o rosto dele, passando os polegares pelas maçãs de seu rosto.
– Só me prometa que vai continuar tentando.
Ele assentiu, e o silêncio que se seguiu foi confortável, como um abrigo contra tudo o que estava lá fora.
Olhei pela janela e vi que o céu começava a se abrir, com os primeiros raios de sol atravessando as nuvens cinzentas. O mundo lá fora parecia mais calmo, mas nada se comparava à tranquilidade que eu sentia ao lado dele.
Ficamos ali, deitados, sem pressa de começar o dia, apenas aproveitando o momento. Naquele instante, eu soube que estávamos no caminho certo, e, pela primeira vez em muito tempo, senti esperança de verdade.
O dia parecia estar desenhado para ser nosso. Após o café, Gustavo e eu voltamos para o quarto. A ideia era simples: passar o resto do sábado como sempre, juntos, abraçados, matando a saudade de todo o tempo que fomos obrigados a viver longe um do outro. O ambiente do quarto estava impregnado com a serenidade de um lar: lençóis macios, a janela aberta deixando o sol entrar e um perfume de roupas limpas misturado ao aroma distante das flores do jardim.
Eu me deitei ao lado dele, observando cada traço do seu rosto. Gustavo parecia mais vivo a cada dia. Seu rosto não estava mais tão marcado, sua pele ganhara cor novamente, e seu corpo, antes tão frágil, começava a recuperar a forma. Ele era lindo, e vê-lo assim me preenchia de esperança.
Enquanto eu acariciava os cabelos dele, o som do meu celular cortou o silêncio. Suspirei, relutante, mas atendi.
– Fala, Eduardo – respondi, tentando manter a voz leve.
– Bom dia pra você também, sumido – ele brincou, mas logo mudou o tom. – A vó está lúcida hoje, Léo. Ela perguntou de você.
Olhei para Gustavo, que ergueu o olhar curioso.
– Quem é? – ele sussurrou.
– Eduardo. Ele disse que a vó está lúcida – expliquei, ainda tentando processar as palavras do meu irmão.
Os olhos de Gustavo brilharam de imediato, e um sorriso tímido surgiu em seu rosto. Era o tipo de sorriso que revelava um misto de alegria e emoção.
– Ela está bem? – perguntei ao Eduardo, mas minha mente já estava começando a fazer planos.
– Sim, tá até conversando bastante. Achei que você ia querer vir com o Gustavo.
– Claro que sim. Estamos indo – respondi, desligando em seguida.
Quando olhei para Gustavo novamente, ele estava visivelmente emocionado.
– Ela perguntou de você? – ele perguntou, quase sem acreditar.
– Sim. Vamos ver a vó – confirmei, tocando sua mão.
Gustavo ficou em silêncio por alguns segundos, mas eu sabia que a mente dele estava a mil. A última vez que ele a viu foi durante sua reabilitação, e ela não o reconheceu. O Alzheimer roubara dela as memórias de quase toda a família. Ver que, mesmo que por um dia, ela voltara a se lembrar era como um presente inesperado.
Gustavo foi direto para o armário, escolhendo uma camisa azul clara que realçava a cor dos olhos dele e uma calça jeans escura. Ele sempre tinha um cuidado especial ao se arrumar, mas hoje havia algo diferente: era como se ele quisesse que sua avó o visse em sua melhor forma, como o neto que ela um dia conheceu.
Enquanto ele se vestia, me virei para o espelho, ajustando minha camiseta branca e conferindo o cabelo. Um sábado como esse merecia simplicidade, mas também um toque de cuidado.
Ao sairmos, o calor do sol nos envolveu. O céu continuava claro, e a brisa leve carregava o cheiro de terra molhada, lembrança de uma chuva da noite anterior. Entramos no carro, e eu assumi o volante. Gustavo colocou a mão sobre a minha na marcha, um gesto simples, mas cheio de significado.
A estrada até a casa da nossa avó era ladeada por árvores que projetavam sombras dançantes na pista. Gustavo olhava pela janela, distraído, perdido em seus próprios pensamentos.
– Você lembra da última vez que a gente foi pra casa da vó? – ele perguntou de repente, com a voz baixa.
– Como esquecer? – respondi, sem desviar os olhos da estrada.
– Eu estava destruído – ele continuou, sua voz quebrando levemente. – O que aquele monstro fez comigo...
Meu peito apertou. Gustavo estava se referindo ao dia em que fugimos para a casa dela depois que ele foi brutalmente espancado pelo pai. Eu me lembrava de cada detalhe: o sangue, os hematomas, a dor no rosto dele e no meu coração.
– Você estava tão machucado – sussurrei.
– E você ficou do meu lado. Mesmo sendo tão jovem... Você cuidou de mim como ninguém jamais cuidou.
Eu não disse nada. O nó na minha garganta me impediu.
– Sabe, Léo, às vezes eu acho que você é mais forte do que eu jamais vou ser.
Olhei para ele de relance e vi as lágrimas escorrendo por seu rosto. Ele tentou disfarçar, enxugando o rosto com a manga da camisa, mas o sofrimento era evidente.
– Ei, olha pra mim – pedi, parando o carro no acostamento.
Ele me encarou, os olhos marejados.
– Você é a pessoa mais forte que eu conheço, Gustavo. Você enfrentou coisas que teriam destruído qualquer um. E olha só onde você está agora.
Ele soluçou, tentando segurar o choro, mas desabou. Eu desci do carro e fui até ele, abrindo a porta do passageiro. Ele caiu nos meus braços, e eu o abracei com força, sentindo seu corpo tremendo contra o meu.
– Eu só queria que as coisas fossem diferentes, Léo – ele murmurou.
– Eu sei, meu amor. Mas estamos aqui, juntos. E isso é o que importa agora.
Ficamos assim por alguns minutos, até que ele respirou fundo e se recompôs.
– Vamos? – ele perguntou, a voz ainda rouca.
– Vamos.
Voltamos para o carro, e o restante do caminho foi preenchido por um silêncio confortável, com a música do rádio tocando baixinho ao fundo. O destino nos esperava, e eu sabia que aquele dia seria mais um marco em nossa história.
Por mais que o carro estivesse mergulhado em um silêncio quase absoluto, minha cabeça era um turbilhão de memórias, todas voltando ao mesmo dia. Eu não conseguia esquecer. A força da nossa avó naquele momento, a maneira como ela nos arrancou daquele inferno, como nos aceitou e nos protegeu, ainda me deixava atônito.
Lembrei-me de como, naquele dia, após ela pegar todas as nossas coisas, entramos no carro do nosso tio. Ele estava parado na porta da casa, como uma estátua. Não moveu um dedo para ajudar, sequer fez um esforço para nos defender. Seus olhos evitavam encontrar os nossos, como se carregar aquela culpa fosse um peso grande demais para ele. Mas, sinceramente, não precisávamos daquele homem patético. Nossa avó, com seus 70 anos, tinha mais força e coragem do que ele jamais teria.
Quando digo forte, não me refiro apenas à força física. A força da nossa avó era algo que transcendia. Ela era uma mulher que havia enfrentado o mundo de cabeça erguida, criada em uma época que exigia das mulheres uma resistência implacável. Ela cuidou de três irmãos mais novos e, depois, de dois filhos. Sempre trabalhou duro, mesmo nas piores condições. Minha mãe costumava contar como foi a infância difícil que teve, mas também falava de como, apesar de tudo, nossa avó nunca deixou faltar nada para os filhos.
– Muitas vezes, sua avó ficava sem comer pra gente ter um prato na mesa – minha mãe dizia, com a voz cheia de respeito e admiração. – E mesmo assim, ela não deixava que a gente saísse de casa de qualquer jeito. Íamos para a escola sempre limpos, arrumados e com os cadernos impecáveis.
Eu me lembrei de uma das histórias que minha mãe costumava repetir. Nossa avó passava boa parte da vida limpando casas de vizinhos para sustentar a família. Uma vez, enquanto ela estava fazendo faxina na casa de uma patroa, minha mãe estava sentada na cozinha, estudando. A patroa chegou, olhou para a cena e perguntou:
– Por que você não coloca sua filha pra te ajudar? Termina mais rápido.
Minha avó, com a calma e firmeza que sempre carregou na voz, respondeu sem hesitar:
– Filho meu não vai pegar em vassoura, vai pegar em livro.
Essa frase marcou minha mãe profundamente. Foi isso que a fez se dedicar aos estudos e trabalhar incansavelmente para dar uma vida melhor para a nossa avó.
Nossa avó com toda certeza era um anjo, me lembro quando chegamos à casa dela, no dia em que o Gustavo apanhou. Lembro-me dela pegar o telefone e ligar para a minha mãe. Ela segurava o aparelho com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. A voz dela era um misto de autoridade e indignação.
– Se você não se separar daquele homem, seus filhos nunca mais voltam para casa – ela disse com firmeza. – Eles vão morar comigo.
Sua postura era inabalável, como se tivesse decidido que nada no mundo a faria ceder. Era uma mistura de proteção feroz e amor absoluto. Naquele momento, ela se tornou a nossa fortaleza.
– Vocês nunca mais vão voltar pra lá, ouviram? Nunca.
A voz dela carregava uma promessa que me deu a segurança que eu não sentia há anos. Naquele dia, Gustavo e eu passamos a entender o significado de proteção verdadeira. Ela nos deu mais do que um teto. Ela nos deu um lar, um lugar onde poderíamos recomeçar.
Essas memórias pesavam sobre mim enquanto dirigia. Gustavo estava ao meu lado, olhando pela janela, mas seus olhos brilhavam com uma mistura de tristeza e esperança. Ele estava quieto, mas sabia que estava perdido nas próprias lembranças, talvez revisitando a mesma cena.
Quando finalmente chegamos, tudo aprecia igual. À casa da minha avó era um lugar de memórias. Pequena, com paredes amareladas pelo tempo e móveis antigos, ela guardava histórias em cada canto. Os quadros na parede, as fotografias em preto e branco, as prateleiras repletas de bibelôs de porcelana… tudo ali tinha uma vida própria. E o cheiro – um misto de ervas e pomada – me remetia imediatamente à infância.
Eu e Eduardo entramos primeiro. O quarto dela era iluminado pela luz fraca que atravessava as cortinas pesadas. Minha avó estava deitada na cama, envolta em um cobertor de crochê colorido que ela mesma tinha feito há anos. Seus cabelos brancos estavam presos em um coque frouxo, e, apesar do rosto cansado, os olhos dela ainda brilhavam com aquele amor que parecia transbordar para quem estivesse perto.
— Léo, meu menino! — a voz dela, mesmo fraca, carregava uma ternura que me desarmava. — Venha aqui, deixa eu olhar pra você. Está tão bonito… mas tão magro! Você não anda comendo direito, né?
Me aproximei, segurando as mãos dela. Estavam quentes, frágeis, mas ainda passavam aquela segurança que só ela sabia transmitir.
— Estou bem, vó. Mas e a senhora? Como está se sentindo hoje?
Ela suspirou e se ajeitou nos travesseiros.
— Ah, meu neto... Com dor. Sempre com dor. Eu já não aguento mais ficar aqui deitada, presa. Acho que já deu a minha hora, sabe?
Aquelas palavras apertaram meu peito. Segurei as mãos dela com mais força e balancei a cabeça, tentando afastar aquele pensamento.
— Não fale isso, vó. A senhora é a melhor parte da nossa vida. Ainda precisamos muito de você aqui.
Ela riu de leve, aquele riso que sempre vinha acompanhado de um brilho nos olhos, mesmo em meio às dificuldades.
— Você sempre foi bom com as palavras, Léo. Sempre soube cuidar de todo mundo, meu menino.
Nesse momento, Eduardo entrou no quarto. Minha avó abriu um sorriso ao vê-lo, o mesmo sorriso acolhedor que sempre nos dava quando éramos crianças.
— Eduardo, meu filho! Está cuidando do seu irmão teimoso?
— Tentando, vó. Mas ele não facilita — respondeu Eduardo, jogando um olhar brincalhão na minha direção.
Eu respirei fundo, sentindo que aquele era o momento certo. Ajoelhei ao lado da cama dela e segurei suas mãos novamente.
— Vó, eu trouxe uma surpresa pra senhora.
Ela arqueou as sobrancelhas, desconfiada.
— Surpresa? O que você aprontou agora, menino?
Antes que ela pudesse perguntar mais, Gustavo apareceu na porta. Ele estava hesitante, segurando a moldura como se precisasse de apoio. Seus olhos brilhavam, e o peso da emoção estava claro em cada movimento dele.
— Oi, vó. Lembra de mim?
Por um instante, o quarto ficou em silêncio. O tempo pareceu parar. Eu vi quando os olhos dela se arregalaram, as lágrimas começando a escorrer. Ela levou uma mão trêmula à boca, claramente tomada pela surpresa.
— Gustavo? É você mesmo, meu menino?
Ele assentiu, e a emoção explodiu nos olhos dele também.
— Sou eu, vó. Estou aqui.
Ela começou a chorar de verdade, soluçando como se todos os anos de saudade tivessem desabado naquele instante.
— Meu Deus... Gustavo, você está tão bonito! Engordou, está forte de novo… Seus olhos… — ela fungou, tentando recuperar o fôlego. — Ainda são os olhos mais lindos que eu já vi, desde quando você era criança.
Eu não consegui segurar as lágrimas. Ajoelhei ao lado de Gustavo, e juntos nos aproximamos da cama, enquanto ela nos puxava para um abraço apertado. Aquele momento era tudo que eu precisava.
— Vocês dois... sempre foram o meu orgulho.
Depois de um tempo em silêncio, ela nos afastou delicadamente. Seus olhos, agora mais calmos, voltaram-se para mim.
— Léo, querido, faz um favor pra sua vó?
— Claro, vó. O que a senhora quiser.
— Abra aquele armário ali no canto. Tem uma caixa escondida lá em cima, atrás das outras coisas. Pegue pra mim.
Fiz o que ela pediu, mesmo sem entender direito. O armário rangeu quando abri as portas, revelando várias caixas velhas empilhadas. Subi em uma cadeira para alcançar o fundo, e lá estava a tal caixa. Era pequena, de madeira, com detalhes entalhados à mão.
Quando entreguei a ela, minha avó segurou a caixa como se fosse um tesouro. Seus olhos marejaram de novo enquanto ela a abria.
— No dia que o pai do Gustavo esteve aqui… no dia que ele morreu — começou ela, com a voz embargada —, eu tinha comprado isso pra vocês. Mas nunca tive a chance de entregar. Guardei todos esses anos, esperando o momento certo.
Dentro da caixa estavam dois colares. Cada um tinha metade de um coração como pingente. Quando as metades se aproximavam, formavam um coração completo.
— Quero que fiquem com isso. O amor que vocês têm um pelo outro… é algo que ninguém pode quebrar. Nem a dor, nem a distância. Desde pequenos, eu sabia que não dava pra lutar contra isso.
Ela nos olhou com os olhos cheios de lágrimas e completou:
— Vocês nunca desistiram de si mesmos, e eu sou tão orgulhosa por isso. Desculpem se alguma vez eu não fui boa o suficiente, se deixei faltar algo.
Eu não consegui mais segurar. Abracei ela de novo, apertando com toda a força que eu tinha.
— Não diga isso, vó. Foi por sua causa que tivemos paz. Se não fosse pela senhora, não estaríamos aqui.
Gustavo também a abraçou, e ficamos ali, os três juntos, com a certeza de que o amor era mais forte que qualquer dor. O peso do passado parecia um pouco mais leve naquele momento.
Ficamos ali, abraçados por longos minutos, enquanto o peso do silêncio carregava mais palavras do que qualquer conversa poderia expressar. O calor do abraço dela era diferente, como se fosse um último refúgio, uma despedida silenciosa que nem ela queria admitir. Quando finalmente nos afastamos, seus olhos estavam marejados, mas havia um brilho neles, uma espécie de paz que eu não via há muito tempo.
— Vocês sempre foram minha maior alegria. Nunca se esqueçam disso — ela disse, com a voz baixa, mas carregada de sentimento. — Mesmo quando a vida foi dura, mesmo quando tudo parecia perdido… vocês dois sempre foram a luz que me manteve de pé.
Olhei para Gustavo, e nossos olhares se cruzaram. Ele parecia tão emocionado quanto eu, os olhos brilhando com lágrimas que ele tentava segurar. Em algum momento, percebi que não estávamos apenas chorando pela emoção do presente, mas pelo que aquela cena significava. Minha avó estava nos entregando algo mais do que os colares. Ela estava nos entregando uma parte dela, uma parte que, no fundo, sabia que não ficaria aqui por muito mais tempo.
— Vó, não diga essas coisas como se estivesse se despedindo… — minha voz saiu embargada, quase um sussurro.
Ela sorriu, aquele sorriso tão característico dela, e colocou uma mão trêmula sobre a minha.
— Meu menino, chega um momento na vida em que a gente entende que fez o que podia. Eu já vivi o suficiente pra saber que vocês vão ficar bem. E isso me basta.
O nó na minha garganta ficou mais apertado, mas eu sabia que ela estava falando de coração. Mesmo assim, era difícil aceitar. Eu não estava pronto para deixá-la ir. Nunca estaria.
Gustavo se aproximou novamente, segurando uma das mãos dela. Ele parecia buscar forças para falar, para dizer algo que ainda estava preso dentro dele.
— A senhora sabe que tudo o que eu sou… tudo o que eu consegui ser… foi por sua causa, né? — ele disse, a voz falhando no final. — Eu nunca vou esquecer o que a senhora fez por mim. Por nós.
Ela levantou a outra mão com esforço, acariciando o rosto dele como fazia quando éramos crianças. O gesto foi tão cheio de amor que era impossível não se emocionar.
— Você sempre foi forte, Gustavo. Mesmo quando achava que não era. E agora eu vejo o homem que você se tornou… Eu sabia que você seria incrível, meu querido.
Os soluços de Gustavo romperam o silêncio, e ele abaixou a cabeça, deixando as lágrimas caírem. Eu o puxei para um abraço, tentando transmitir a força que ele precisava naquele momento, mas sabia que estávamos todos no limite. Era um momento de despedida, mesmo que nenhum de nós quisesse admitir isso em voz alta.
— Vocês têm um ao outro — continuou ela, com um tom mais firme, mas ainda assim repleto de ternura. — Nunca esqueçam disso. O amor de vocês é raro, especial. Cuidem um do outro, sempre.
Os colares ainda estavam em nossas mãos, e eu percebi que eles simbolizavam muito mais do que um presente. Eram a prova de que ela acreditava em nós, no que tínhamos. Um gesto simples, mas carregado de um significado profundo.
— Vó, nós nunca vamos esquecer o que a senhora fez por nós — falei, com a voz trêmula. — Tudo o que somos hoje é por sua causa. E vamos honrar isso, sempre.
Ela fechou os olhos por um momento, respirando fundo, como se estivesse absorvendo nossas palavras. Quando os abriu novamente, havia uma expressão serena em seu rosto.
— Então sei que agora já posso ir em paz — ela disse, quase num sussurro.
— Não, vó! — protestei, segurando suas mãos com mais força. — Não fale isso. A senhora ainda tem muito tempo com a gente.
Ela riu baixinho, um som suave, mas cheio de melancolia.
— Meu querido, o tempo é algo que a gente não controla. Mas o amor… ah, o amor é eterno. Ele vive em cada lembrança, em cada gesto, em cada coração. E eu sei que, enquanto vocês tiverem um ao outro, eu também estarei aqui.
Eu me senti esmagado pela dor, mas ao mesmo tempo havia algo reconfortante naquelas palavras. Era como se ela estivesse nos ensinando a aceitar o inevitável de uma forma que só ela conseguia.
O resto da tarde passou em um ritmo lento, cada momento mais precioso que o anterior. Ela pediu que ficássemos ali, conversando, relembrando histórias antigas, enquanto seus olhos iam e vinham, como se absorvessem cada detalhe de nós.
No final, quando a noite começou a cair e o quarto ficou tomado por um silêncio suave, ela pegou nossas mãos novamente.
— Prometam uma coisa pra mim… — disse, com dificuldade.
— Qualquer coisa, vó — respondemos, quase ao mesmo tempo.
— Prometam que vão ser felizes. Que vão lutar por isso, mesmo que pareça impossível.
Olhei para Gustavo, e ele para mim. Segurando firme a mão dela, fizemos a promessa, sabendo que ela carregava muito mais do que palavras.
Naquele instante, percebi que aquele momento ficaria para sempre marcado em mim. Ela era o pilar que nos mantinha de pé, e mesmo que a dor de perdê-la fosse inevitável, ela estava nos ensinando a continuar. Porque o amor que ela plantou em nós dois era eterno.
Passamos todo o dia lá, quando já era noite, chegou a hora dela comer e tomar seus remédios. Meu tio chegou com a cuidadora dela e preferimos esperar no andar de baixo. Descemos as escadas em silêncio, o peso das últimas horas ainda pairando sobre nós. A cozinha estava iluminada apenas pela luz fraca que vinha da janela, enquanto o cheiro do café que havíamos preparado preenchia o ar. Era como se o mundo lá fora tivesse parado, enquanto dentro daquela casa o tempo corria de forma incerta, oscilando entre memórias e despedidas.
Gustavo se apoiou no balcão, mexendo distraidamente em uma xícara que não chegou a usar. Seus olhos estavam distantes, presos em algum lugar entre o passado e o presente. Eu sabia o que ele estava sentindo, porque era o mesmo que eu. Uma mistura de gratidão, amor e a dor antecipada do que sabíamos estar por vir.
— Ela parecia tão bem, não é? — Gustavo quebrou o silêncio, sua voz baixa, quase como um sussurro.
— Sim… — respondi, colocando a mão no ombro dele. — E acho que, de certa forma, ela está. Ver você fez toda a diferença.
Ele me olhou, seus olhos úmidos, mas com um pequeno sorriso nos lábios.
— Você acha que ela sabe o quanto a gente ama ela?
— Não tenho dúvidas — respondi. — Mas não custa lembrar, né?
Comemos rapidamente, como se temêssemos perder algo importante se demorássemos demais. Não falamos muito, apenas trocamos olhares e pequenos sorrisos. Era um daqueles momentos em que o silêncio falava mais do que as palavras poderiam.
— Vamos subir de novo? — sugeri, após lavar os pratos.
Gustavo assentiu, e juntos subimos as escadas, os degraus rangendo sob nossos pés. Quando chegamos ao quarto dela, empurrei a porta devagar, sem fazer barulho. Mas, assim que entramos, algo parecia diferente.
Ela estava sentada na cama, os olhos perdidos em algum ponto da parede. Seu rosto, que antes exalava serenidade, agora parecia confuso, com linhas de tensão marcando sua testa. Quando ela nos viu, não sorriu. Pelo contrário, seu olhar era estranho, como se estivéssemos invadindo um espaço que não nos pertencia.
— Quem são vocês? — perguntou, a voz baixa, mas carregada de desconfiança.
Meu coração parou. Por um segundo, pensei que tinha ouvido errado. Olhei para Gustavo, e ele estava imóvel, os olhos arregalados, como se estivesse tentando entender o que estava acontecendo.
— Vó… sou eu, Léo — disse, me aproximando devagar. — E esse é o Gustavo… lembra da gente?
Ela franziu o cenho, como se tentasse buscar alguma lembrança, mas balançou a cabeça.
— Eu… eu não conheço vocês. Onde estou? Por que estou aqui? — perguntou, a voz ficando mais agitada.
Aquela cena me atingiu como um soco. Era como se, em questão de minutos, ela tivesse se desconectado do mundo que conhecíamos juntos.
— Vó, calma… — Gustavo tentou, a voz embargada. Ele se ajoelhou ao lado da cama, segurando uma das mãos dela. — Sou eu, vó. Gustavo. Seu neto.
Ela puxou a mão, assustada.
— Não me toquem! Não sei quem vocês são! Quero sair daqui! — exclamou, os olhos cheios de medo.
Era como se um pedaço dela tivesse sido arrancado, levado para algum lugar onde não podíamos alcançá-la. Aquela mulher forte, que nos criou, que nos deu tudo, agora parecia uma criança assustada, presa em sua própria mente.
— Vamos chamar o Eduardo — sugeri, tentando manter a calma, embora por dentro eu estivesse desmoronando.
— Não adianta… — Gustavo murmurou, com a cabeça baixa. — Não é ela, Léo. Não mais.
As palavras dele cortaram o ar como uma lâmina. Eu queria dizer que ele estava errado, que ela ainda estava ali, que era só uma fase. Mas, no fundo, eu sabia que ele tinha razão.
Ficamos ali por um tempo, tentando falar com ela, tentando trazê-la de volta, mas era inútil. A avó que conhecíamos, que tinha acabado de nos dar um dos momentos mais especiais de nossas vidas, agora estava perdida em algum lugar inacessível.
Saímos do quarto em silêncio, sem saber o que fazer ou dizer. Quando chegamos à sala, Gustavo se jogou no sofá, cobrindo o rosto com as mãos.
— Isso não é justo — ele murmurou. — Depois de tudo… ela merecia mais.
Me sentei ao lado dele, passando o braço por seus ombros.
— Ela nos deu tudo o que podia, Gustavo. Tudo. E hoje… hoje foi o melhor dia da minha vida.
Ele levantou o rosto, me encarando, surpreso.
— Como pode dizer isso? Depois de tudo o que aconteceu?
— Porque ela nos deu algo que ninguém pode tirar — respondi, sentindo as lágrimas descerem pelo meu rosto. — Ela nos deu amor, força, memórias… E mesmo que hoje tenha terminado assim, eu nunca vou esquecer o sorriso dela quando viu você.
Gustavo engoliu em seco, as lágrimas finalmente escapando. Nos abraçamos, ali no sofá, enquanto o peso daquele dia caía sobre nós.
E, mesmo com a dor esmagando meu peito, eu sabia que estava certo. Porque, no meio de tudo, tínhamos vivido algo que nem o tempo, nem a doença, nem a vida poderiam apagar.