Essa história é um spin-off da série principal Amante Secreto.
Parte 1
O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelo som de passos apressados. Eles ecoavam pelas ruelas estreitas, ritmados e desesperados, como se estivessem sendo cronometrados pelo destino. Sob a escuridão úmida da cidade, o homem corria com uma intensidade frenética, o coração acelerado e a respiração cortada como o som de ondas contra os pilares das pontes. As ruas de pedra pareciam se fechar ao seu redor, os becos estreitos o forçavam a girar bruscamente em esquinas desconhecidas, cada movimento decidido mais pelo instinto do que pela lógica.
Veneza estava dormindo, mas as sombras se moviam. De algum lugar atrás dele, os gritos e passos de seus perseguidores se aproximavam. Ele não se atrevia a olhar para trás, mas sentia a presença deles como uma onda sufocante, como o ar denso de um trovão prestes a explodir.
— Rápido, ele virou à esquerda!
Uma voz soou ao longe, grave e cortante, amplificada pelos prédios que pareciam comprimir ainda mais o som. Ele fechou os olhos por um segundo enquanto corria, os dentes cerrados com força. Estava cercado de uma certeza cruel: eles não parariam até que ele fosse apanhado.
A cidade de Veneza, tão bela e histórica, transformara-se num labirinto traiçoeiro. As paredes descascadas das construções antigas se erguiam como sentinelas imóveis, testemunhas silenciosas da perseguição. O brilho fraco das lâmpadas de gás refletia nas poças d’água deixadas pela umidade da noite, iluminando o caminho irregular que ele tentava atravessar.
O Campo dei Frari surgiu diante dele, vasto e silencioso, com a imponente basílica ao fundo. Os arcos góticos pareciam olhar para ele com indiferença, um contraste perturbador com a urgência da situação. Ele cruzou o campo com passos largos em direção ao sul do sestiere de San Polo, os olhos procurando um caminho que lhe desse alguma vantagem. Do outro lado, a ponte de Traghetto o aguardava, estreita e traiçoeira, com suas pedras gastas pela história e pelo tempo.
Mas algo estava errado.
Do outro lado da ponte, figuras sombrias surgiram. Mais homens, parados em silêncio, bloqueando a saída. Seus rostos não eram visíveis sob a iluminação precária, mas a ameaça era clara.
Ele parou por um instante, o peito arfando de maneira descontrolada. Virou o rosto por cima do ombro e ouviu os passos mais próximos. Seu estômago afundou. Estava encurralado.
— Ha finito!
A voz grave se fez ouvir novamente, mas desta vez muito mais perto. Ele não precisava se virar para saber que alguém se aproximava com uma confiança desdenhosa, o som de botas ecoando com calma na pedra da ponte.
— Você realmente achou que poderia fugir?
A pergunta, carregada de desprezo, pairou no ar como uma sentença. O homem avançava devagar, sem pressa, saboreando cada segundo. Era como se tivesse certeza de que a presa não tinha mais saída, e talvez estivesse certo.
O fugitivo não respondeu. Sua mão apertava algo dentro do bolso do sobretudo preto, o suor escorria pelas têmporas, misturando-se ao sal da neblina que vinha do canal. Ele podia ouvir a água se movendo lá embaixo, a superfície escura e impenetrável que oferecia tão poucas respostas quanto esperança.
— Você não tem para onde ir.
A voz estava mais próxima agora, e o som dos passos mais próximos.
— E sabe o que é irônico? — continuou o perseguidor, com um tom quase debochado — Você nem precisava estar aqui. Se tivesse feito as escolhas certas, poderia ter vivido, mas agora… agora tudo acaba.
O encurralado na ponte permaneceu imóvel. Seus olhos fixaram-se no outro lado, onde as figuras imóveis ainda bloqueavam o caminho. O ar estava frio, cortando sua pele como facas invisíveis. Ele respirou fundo e, por um instante, fechou os olhos.
Quando abriu, a decisão já estava tomada.
Num movimento rápido, sua mão puxou a pistola que estava escondida no bolso. Antes que o perseguidor pudesse reagir, o tiro cortou o silêncio da noite como um trovão.
O corpo do homem à frente foi jogado para trás pelo impacto. Ele cambaleou, uma das mãos indo instintivamente para o peito enquanto o sangue começava a manchar sua camisa. Os olhos, que antes carregavam uma confiança absoluta, agora estavam arregalados, confusos, como se questionassem o que acabara de acontecer.
O homem que havia disparado não esperou para ver o desfecho. Girando nos calcanhares, projetou-se da borda da ponte. As águas escuras o engoliram completamente. O barulho crescente dos outros perseguidores enchia o ar, passos, gritos, ordens que ele não conseguia distinguir.
Por um momento, o silêncio voltou, exceto pelo som das águas do canal se movendo lentamente. Os perseguidores chegaram à borda da ponte, apontando lanternas para a superfície. Nada. Ele havia desaparecido. Na ponte, o homem atingido ainda estava de joelhos, mas não por muito tempo. Ele tombou para trás, imóvel, os olhos vidrados fixando o céu que lentamente começava a clarear com os primeiros tons do amanhecer.
Naquela madrugada, sob as luzes trêmulas de Veneza, o peso da vingança começava a moldar os eventos que estavam por vir.
**********
O som dos pneus do táxi ecoava pelo caminho de cascalho que levava à propriedade Colline Marcarini, marcando cada metro de aproximação com pequenos estalos sob as rodas. Fabíola estava sentada no banco traseiro, em silêncio, os olhos fixos na paisagem que se desenrolava do lado de fora da janela. As colinas ondulantes do Vêneto pareciam se estender para além do horizonte, cobertas por vinhedos perfeitamente alinhados, suas fileiras formando padrões hipnotizantes. O verde das vinhas contrastava com o dourado suave do fim de tarde, tingindo a paisagem com um brilho quase etéreo. Mas, por mais deslumbrante que fosse, Fabíola mal registrava a beleza do lugar. Sua mente estava presa no peso do passado que havia deixado para trás, ou, pelo menos, tentava deixar.
Ela deslizou os dedos pelo anel que já não estava em sua mão esquerda, sentindo o vazio onde antes havia uma promessa. Rodrigo. O nome passou por sua mente como um sussurro indesejado. O casamento deles, os anos de luxo, as festas, os jogos, tudo isso agora parecia pertencer a outra vida, uma que ela não sabia mais se deveria lamentar ou esquecer. O que ela sabia, com absoluta certeza, era que precisava de um recomeço, e o lugar que escolhera para isso era a propriedade dos avós no coração do Vêneto.
— Signora, estamos chegando — anunciou o motorista, interrompendo seus pensamentos.
Fabíola ergueu os olhos e viu o imponente portão de ferro forjado surgir à frente, ladeado por ciprestes altos que pareciam guardar o local com uma reverência ancestral. No centro do portão, o brasão da família Marcarini, um cacho de uvas em alto relevo, cercado por folhas de videira, brilhava em bronze desgastado pelo tempo. A visão trouxe uma onda de nostalgia que ela não esperava.
O táxi parou diante da entrada principal da villa. A casa, uma mansão de pedra clara com venezianas verde-escuras, parecia acolhedora e imponente ao mesmo tempo. Era uma construção antiga, com mais de dois séculos de história, mas tão bem preservada que parecia resistir teimosamente ao avanço do tempo. Hera subia pelas paredes, enfeitando a fachada com um toque de charme rústico. No terraço, flores vibrantes em vasos de cerâmica espalhavam cores vivas que se destacavam contra o tom neutro da pedra.
Fabíola respirou fundo antes de descer do carro. O ar do campo tinha um frescor diferente, carregado com o aroma de videiras, terra úmida e flores de lavanda. Era um contraste gritante com o ar condicionado e o perfume caro ao qual estava acostumada nos últimos anos. Ela puxou a alça de sua mala e deu alguns passos hesitantes até a porta principal, onde uma figura familiar já a aguardava com um sorriso caloroso.
— Fabíola, mia ragazza!
A voz de Giulia Marcarini, sua avó, ecoou pela entrada como uma melodia reconfortante. Giulia, com seus 82 anos, tinha uma presença vibrante que desmentia sua idade. Seu rosto estava marcado pelo tempo, mas seus olhos, tão castanhos quanto os de Fabíola, brilhavam com alegria e carinho genuínos. Ela abriu os braços e acolheu a neta em um abraço apertado, o tipo de abraço que parecia capaz de remendar todas as feridas da alma.
— Nonna — Fabíola murmurou contra o ombro da avó, contendo as lágrimas de alegria que ameaçavam transbordar.
Por um breve instante, ela se permitiu relaxar, sentindo-se segura pela primeira vez em meses. Atrás de Giulia, o avô de Fabíola, Pietro, surgiu com passos lentos, apoiado em uma bengala de madeira escura. Seu rosto enrugado estava iluminado por um sorriso contido, mas cheio de orgulho. Pietro, com seus 86 anos, era o pilar da família, a figura silenciosa e respeitável que sempre parecia estar um passo à frente de todos.
— Fabíola — ele disse com a voz grave e rouca — Achei que partiria dessa vida sem vê-la novamente.
As palavras simples carregavam um peso emocional que quase fez Fabíola chorar. Ela assentiu, engolindo a emoção que ameaçava escapar.
— É bom estar de volta, Nonno.
Depois de abraços calorosos e algumas trocas de palavras nostálgicas, Giulia insistiu em levá-la para dentro. A villa estava exatamente como Fabíola se lembrava: rústica, mas elegante, com móveis de madeira antiga, pisos de terracota e tetos com vigas de madeira expostas. Havia uma sensação de permanência na casa, como se nada ali mudasse, independentemente do passar dos anos.
Enquanto caminhavam pela sala de estar, Fabíola ouviu o som de passos se aproximando. Ela olhou em direção à porta que levava à cozinha e viu Matteo Marcarini, seu primo, entrar no cômodo.
Ele estava exatamente como ela se lembrava, mas, ao mesmo tempo, diferente. Matteo tinha o mesmo porte forte, os cabelos negros cuidadosamente penteados para trás, e os olhos castanhos que sempre pareciam esconder mais do que revelavam. Mas havia algo novo em sua postura, uma confiança silenciosa, quase austera, que o fazia parecer ainda mais impressionante.
— Cugina! — ele disse, com um sorriso fácil que imediatamente quebrou qualquer tensão que pudesse haver no ambiente. Sua voz era calorosa, como se a visse ontem.
— Matteo — Fabíola respondeu, abrindo um sorriso genuíno ao vê-lo.
Ele caminhou até ela, envolvendo-a em um abraço firme e caloroso, como se estivesse verdadeiramente feliz em vê-la.
— Você está maravilhosa, como sempre.
Fabíola sentiu suas bochechas corarem, algo que não acontecia havia muito tempo. Matteo sempre tivera aquele efeito sobre ela, não de maneira romântica, mas com uma admiração genuína. Ele era o tipo de pessoa que parecia carregar o peso do mundo com leveza.
— E você está… muito bem — ela respondeu, retribuindo o sorriso.
— Melhor agora que você está aqui — ele disse, um brilho divertido nos olhos — Andiamo. Nonna e Nonno devem estar te sufocando com atenção, mas a propriedade toda está esperando para te receber.
Fabíola riu e seguiu Matteo, sentindo pela primeira vez em meses uma leveza que não esperava.
Mais tarde, enquanto explorava o quarto que lhe haviam reservado, Fabíola abriu a janela e deixou que o vento suave da noite entrasse. A propriedade Colline Marcarini estava mergulhada em um silêncio confortável, com o som distante de grilos e o farfalhar das vinhas ao vento.
Olhando para as colinas iluminadas pelo luar, ela sentiu uma nova energia se infiltrar em seus pensamentos. Matteo não era o primo distante que ela esperava encontrar. Ele era atencioso, caloroso e parecia ter um papel importante na gestão da propriedade. Era quase impossível imaginar que, há poucas horas, ela carregava dúvidas sobre visitá-los.
Naquele momento, Fabíola teve uma única certeza: sua nova vida estava apenas começando, e o Vêneto parecia ser o lugar certo para reconstruir o que havia sido perdido, ou talvez, até, descobrir algo que ela nunca soube que precisava.
**********
A luz suave da manhã invadia o quarto de Fabíola, atravessando as cortinas semiabertas e banhando os móveis rústicos em um brilho dourado. O canto de pássaros ecoava pelo ar fresco que entrava pela janela, trazendo consigo o aroma das videiras misturado com o de flores silvestres. Ela se espreguiçou preguiçosamente, sentindo o calor aconchegante dos lençóis e uma sensação de paz que parecia quase irreal. Era uma manhã diferente das que estava acostumada no Rio de Janeiro, onde o barulho do trânsito e os compromissos urgentes eram os primeiros a acordá-la. Ali, em Colline Marcarini, o tempo parecia passar mais devagar, como se o mundo tivesse decidido fazer uma pausa.
Vestindo um vestido leve e confortável, Fabíola desceu as escadas em direção à sala de jantar, atraída pelo som de vozes e pelo cheiro irresistível de café recém-passado. A longa mesa de madeira rústica estava coberta por uma generosa variedade de pães caseiros, queijos, compotas de frutas e uma travessa de uvas frescas, colhidas diretamente dos vinhedos. Giulia, como de costume, andava de um lado para o outro, colocando mais uma jarra de suco na mesa enquanto Pietro lia calmamente o Il Messaggero.
— Buongiorno, Fabíola! — Giulia exclamou com um sorriso caloroso, os olhos brilhando de alegria ao ver a neta — Espero que tenha dormido bem. Preparei um café da manhã especial para você.
— Buongiorno, Nonna. Não lembro a última vez que dormi tão bem — Fabíola respondeu, sentando-se à mesa e permitindo que o ambiente acolhedor a envolvesse.
Pietro ergueu os olhos do jornal, cumprimentando-a com um aceno sutil e um sorriso que era quase imperceptível, mas cheio de carinho. Fabíola retribuiu o gesto antes de servir-se de um pedaço de pão com geleia de damasco.
A conversa fluía leve e descontraída. Giulia falava animadamente sobre os planos para o dia, mencionando que a colheita das uvas começaria em breve. Era evidente que a rotina da propriedade ainda girava em torno dos vinhedos, algo que sempre fascinara Fabíola desde criança.
Foi nesse momento que outra figura entrou na sala: Elena Marcarini, mãe de Matteo e tia de Fabíola. Elena, com seus 60 anos, tinha a beleza clássica de uma mulher italiana, com traços marcantes e um sorriso acolhedor que parecia contagiar todos ao seu redor. Usava um vestido simples, mas elegante, que evidenciava sua personalidade prática e afetuosa.
— Fabíola! — Elena exclamou, aproximando-se para abraçá-la — É tão bom ter você aqui novamente. Sua presença traz mais vida à casa.
— Zia Elena — Fabíola respondeu, retribuindo o abraço com entusiasmo — Estou tão feliz por estar aqui. Senti falta de vocês.
— E nós sentimos falta de você, mia cara — disse Elena, apertando gentilmente o ombro de Fabíola antes de sentar-se à mesa — A última vez que você esteve aqui era una bambina così piccola.
Antes que Fabíola pudesse responder, Matteo entrou na sala, trazendo consigo uma presença enérgica e tranquila ao mesmo tempo. Ele vestia uma camisa de linho branca, com as mangas dobradas até os cotovelos, e calças de algodão. O cheiro de terra e uvas parecia acompanhá-lo, como uma extensão natural de quem ele era.
— Buongiorno, dorminhoca — ele brincou, sorrindo para Fabíola enquanto pegava uma xícara de café.
— Buongiorno, cugino — ela respondeu, sorrindo de volta.
Matteo se serviu rapidamente e sentou-se à mesa, entre a mãe e Pietro. Apesar de seu jeito descontraído, Fabíola notou que ele era observador, escutando atentamente a conversa e oferecendo comentários ocasionais. Havia algo nele que parecia diferente dos outros homens que ela conhecia, uma autenticidade desconcertante, como se ele não tivesse nada a provar.
Depois do café, enquanto Giulia e Elena se ocupavam na cozinha, Matteo aproximou-se de Fabíola, que admirava os jardins externos através da janela.
— Quer dar uma volta na propriedade? — ele perguntou, casualmente — Posso te mostrar os vinhedos. É o melhor jeito de começar o dia por aqui.
Fabíola hesitou por um momento, mas não conseguiu encontrar uma razão para recusar.
— Claro, por que não?
Os dois caminharam lado a lado pelas trilhas de terra batida que cruzavam a propriedade. Matteo conduzia o passeio com naturalidade, apontando os detalhes mais importantes dos vinhedos, como as diferentes variedades de uvas plantadas e as técnicas de cultivo que a família vinha aperfeiçoando há gerações.
— Essa aqui é a Corvina — ele disse, apontando para uma fileira de videiras que crescia em um terreno elevado e ensolarado — É a alma dos nossos vinhos tintos. Essas uvas produzem vinhos intensos e encorpados, com um toque de cereja escura.
Fabíola olhou para as videiras com curiosidade. Havia algo quase mágico na maneira como Matteo falava sobre o cultivo. Ele não estava apenas explicando; ele estava compartilhando uma paixão.
— E ali embaixo — continuou ele, apontando para uma área mais baixa, onde riachos serpenteavam pelo terreno — é onde plantamos a Glera, usada para o Prosecco. Esse é o nosso lado mais… festivo, por assim dizer.
Fabíola riu levemente.
— Você parece gostar muito disso.
— Não é apenas gostar — ele respondeu, olhando para ela com seriedade — Isso é a minha vida. Cresci aqui, entre essas vinhas. Cada garrafa que produzimos carrega o trabalho e a dedicação da nossa família. É mais do que um negócio, é quem nós somos.
Fabíola ficou em silêncio por um momento, absorvendo o que ele havia dito. Havia algo profundamente inspirador na maneira como Matteo enxergava o trabalho. Era uma conexão que ela nunca tivera com sua própria carreira como corretora de imóveis, que sempre fora mais uma obrigação do que uma paixão.
O tour os levou até a cantina da propriedade, uma estrutura moderna parcialmente subterrânea que se harmonizava perfeitamente com o ambiente ao redor. Matteo abriu a porta e gesticulou para que Fabíola entrasse.
— Onde a mágica acontece — ele disse, com um tom brincalhão.
O interior da cantina era uma mistura de tradição e tecnologia. Barris de carvalho alinhavam-se ao longo de uma parede, enquanto tanques de aço inoxidável brilhavam sob a luz suave do ambiente. O ar tinha o cheiro inconfundível de vinho fermentando, um aroma rico e complexo que parecia encapsular a essência do lugar.
— Cada safra é um pouco diferente — Matteo explicou, enquanto caminhava entre os barris — Depende do clima, da colheita, até mesmo de como a madeira do barril reage ao vinho. É um processo que exige paciência.
— E você tem paciência para isso? — perguntou Fabíola, com um sorriso brincalhão.
Matteo riu, um som baixo e genuíno que a pegou de surpresa.
— Digamos que estou aprendendo.
Eles passaram mais alguns minutos explorando a cantina, enquanto Matteo explicava os detalhes do processo de produção. Fabíola podia sentir a paixão dele em cada palavra, mas, ao mesmo tempo, havia uma distância, como se ele evitasse se abrir completamente.
Enquanto caminhavam, ela não pôde evitar uma pergunta que pairava em sua mente.
— E você nunca pensou em sair daqui? Em fazer algo diferente?
Matteo hesitou por um momento, e seu olhar desviou para o horizonte. Quando respondeu, sua voz tinha uma nota de evasão.
— Já pensei, sim. Mas no fim das contas, este é o meu lugar. Não importa para onde eu vá, sempre acabo voltando.
Fabíola sentiu que havia algo não dito na resposta dele, algo que ele preferia manter enterrado.
— E quanto à sua vida pessoal? — ela arriscou, em um tom leve, tentando não soar invasiva.
Matteo sorriu de canto, mas o sorriso não chegou aos olhos.
— Não há muito para contar.
— Não acredito nisso — ela insistiu, provocando-o — Alguém como você deve ter uma fila de mulheres apaixonadas.
— Nem sempre as coisas são como parecem — ele respondeu, mudando rapidamente de assunto — Venha, quero te mostrar algo especial.
Eles subiram uma pequena colina, e Matteo a guiou até um ponto onde a vista se abria para todo o vale. Fabíola ficou sem palavras ao ver o cenário. Vinhedos perfeitamente alinhados se estendiam em todas as direções, cercados por ciprestes e pequenos riachos que brilhavam sob o sol da manhã.
— É aqui que eu venho quando preciso pensar — Matteo disse, com um tom mais suave.
Fabíola olhou para ele e percebeu que, por mais que Matteo parecesse aberto e tranquilo, ele guardava algo em seu interior. Era como se houvesse partes de sua história que ele não estivesse disposto a compartilhar, pelo menos, não ainda.
Enquanto o vento acariciava seu rosto, Fabíola teve a sensação de que, mesmo sem entender completamente o que Matteo escondia, ela havia encontrado um lugar onde também poderia começar a se redescobrir.
**********
A madrugada estava mergulhada em silêncio quando Fabíola acordou sobressaltada. Não havia gritos ou ruídos altos, apenas o som abafado de vozes que vinham de fora de sua janela. Por um momento, ela ficou imóvel, tentando entender se o que ouvira era real ou fruto de um sonho confuso. Mas, ao abrir os olhos, viu o brilho pálido de uma lanterna balançando através das cortinas semiabertas de seu quarto.
Curiosa e inquieta, Fabíola levantou-se silenciosamente e caminhou até a janela. Ao afastar levemente a cortina, viu Matteo, parado no meio da trilha de cascalho que conectava a villa aos vinhedos. Ele estava com os braços cruzados, a postura rígida, enquanto falava em tom baixo, mas claramente tenso, com um dos trabalhadores da propriedade. O homem que estava com Matteo, um dos capatazes da família, gesticulava nervosamente, como se estivesse tentando justificar algo.
Fabíola não conseguia ouvir o que diziam, mas a linguagem corporal de ambos era clara. Matteo estava irritado, não o Matteo calmo e controlado que ela conhecera até então, mas alguém dominado por uma preocupação séria, talvez até por raiva. Ela franziu o cenho, sentindo a tensão crescer em seu peito. Algo estava errado.
Sem hesitar, ela pegou um robe e desceu as escadas o mais silenciosamente possível, evitando acordar os avós ou Elena. Quando chegou à porta principal, abriu-a devagar, deixando o ar frio da madrugada envolver sua pele. O som das vozes tornou-se mais nítido.
— Eu já disse, não é normal isso acontecer assim tão rápido — Matteo disse, sua voz grave carregada de frustração — E não quero mais desculpas. Quero que você e sua equipe verifiquem todas as fileiras. Cada videira, uma por uma.
— Ma, Signore… nós já fizemos isso — o capataz respondeu, visivelmente nervoso — Eu nunca vi nada assim. As raízes estão comprometidas, é como se… como se alguém tivesse espalhado intencionalmente.
Fabíola permaneceu escondida atrás de uma coluna na varanda, espiando os dois. Ela não queria interromper a conversa, mas cada palavra fazia seu coração acelerar. O que eles estavam discutindo? Que problema podia ser tão grave para deixar Matteo tão agitado?
— Você acha que eu me importo com o quanto já foi feito? — Matteo disparou, sua voz ganhando um tom cortante que ela não reconhecia — A propriedade inteira depende desses vinhedos. Se não resolvermos isso agora… talvez não reste mais nada para salvar.
O trabalhador assentiu rapidamente, baixando a cabeça antes de se afastar em direção aos vinhedos com passos apressados. Matteo ficou parado ali por um momento, olhando para as fileiras escuras das videiras que se estendiam sob o luar. Ele passou a mão pelos cabelos, claramente tentando conter a frustração.
Fabíola considerou se deveria se aproximar, mas algo na postura dele a fez recuar. Era como se Matteo estivesse cercado por uma barreira invisível, uma tensão que ele não queria compartilhar com ninguém. Decidindo que não era o momento, ela voltou silenciosamente para dentro da casa, mas a inquietação não a deixou dormir pelo resto da noite.
Na manhã seguinte, Fabíola acordou cedo, determinada a descobrir o que estava acontecendo. O café da manhã foi tranquilo, mas havia algo diferente na dinâmica familiar. Matteo estava mais reservado do que o habitual, respondendo às perguntas de Giulia e Pietro de forma educada, mas breve. Ele parecia distraído, os olhos frequentemente se desviando para a janela que dava vista para os vinhedos.
Fabíola esperou o momento certo. Assim que Matteo terminou o café e saiu para inspecionar os vinhedos, ela o seguiu, apressando o passo para alcançá-lo antes que ele desaparecesse entre as fileiras de videiras.
— Matteo — ela chamou, quando finalmente o alcançou. Ele parou e virou-se para ela, claramente surpreso, mas não irritado.
— Fabíola, cos’è successo? — ele perguntou, mas havia um cansaço em sua voz.
— O que está acontecendo? Eu ouvi você conversando com o capataz ontem à noite. Algo está errado, não está?
Matteo suspirou, passando a mão pelo queixo antes de olhar ao redor, como se estivesse verificando se estavam sozinhos.
— Não é nada com que você precise se preocupar. São apenas problemas normais que acontecem nos vinhedos de vez em quando.
— Problemas normais não fazem você ficar andando pra lá e pra cá no meio da noite, com essa expressão de quem carrega o mundo nas costas — ela retrucou, cruzando os braços — Matteo, per favore. Eu quero ajudar.
Ele hesitou, como se considerasse a possibilidade de contar a verdade, mas, em vez disso, começou a andar novamente, sinalizando para que ela o acompanhasse.
— Alguns dos vinhedos estão com sinais de uma praga — ele começou, finalmente — É algo que pode acontecer, mas o problema é que parece que já se espalhou mais do que deveria.
— Praga? Que tipo de praga?
— Filoxera — ele respondeu, com um tom sombrio — São pequenos insetos que atacam as raízes das videiras. Se não forem controlados, podem matar as plantas completamente. E o pior é que, mesmo se conseguirmos parar o avanço, as videiras afetadas já estão comprometidas.
Fabíola sentiu um nó se formar em seu estômago.
— Mas como isso aconteceu? Vocês não têm medidas de prevenção?
— Temos — Matteo respondeu, parando para olhar para ela — É exatamente por isso que isso não faz sentido. A filoxera não aparece do nada, Fabíola. Ela foi trazida para cá.
Ela franziu a testa, sentindo uma onda de preocupação crescente.
— Você acha que foi intencional?
Matteo não respondeu imediatamente. Ele desviou o olhar, fixando-o nos vinhedos à sua frente, antes de finalmente murmurar:
— Acredito que sim. E não foi qualquer um.
— Quem?
Ele hesitou novamente, a mandíbula se contraindo enquanto decidia o quanto deveria revelar. Por fim, respondeu:
— Stefano Meazza.
O nome pairou no ar como uma sombra. Fabíola não precisava saber muito sobre ele para entender que Stefano era alguém perigoso. A tensão no rosto de Matteo dizia tudo.
— Por que ele faria isso? — ela perguntou, dando um passo à frente.
— Isso não importa — ele respondeu rapidamente, o tom de sua voz deixando claro que não queria continuar o assunto — O que importa é que preciso lidar com isso antes que piore. E você… você precisa ficar fora disso.
— Matteo, você não pode me afastar assim. Somos uma família. Eu posso ajudar.
— Não, Fabíola — ele disse, seu tom firme, mas sem perder a gentileza — Você veio pra cá pra recomeçar sua vida, não para se envolver nos meus problemas. Concentre-se em você mesma.
Ela abriu a boca para protestar, mas ele levantou uma mão, encerrando a conversa.
— Per favore — ele pediu, os olhos cheios de uma mistura de cansaço e determinação.
Fabíola suspirou, recuando relutantemente. Enquanto ele voltava para as videiras, ela ficou ali parada, olhando para o vasto campo de vinhas e sentindo que havia muito mais naquela história do que Matteo estava disposto a contar.
Por mais que ele tentasse afastá-la, Fabíola sabia que já estava envolvida. O peso da ameaça pairava no ar, e ela não podia simplesmente ignorá-lo.
**********
A noite estava especialmente silenciosa em Colline Marcarini, como se a própria terra estivesse prendendo a respiração. As estrelas brilhavam intensamente no céu claro, enquanto uma brisa leve carregava o aroma das vinhas e do solo úmido, invadindo suavemente os sentidos de Fabíola. Ela havia decidido caminhar um pouco, tentar acalmar os pensamentos que pareciam fervilhar em sua mente desde a conversa com Matteo naquela manhã. Algo nele havia mudado — ou talvez ela tivesse começado a enxergar camadas que antes não percebia.
Suas pernas a levaram quase automaticamente até a capela da família, uma pequena construção em estilo barroco situada no alto de uma colina, cercada por ciprestes que pareciam abraçá-la. Desde pequena, Fabíola achava aquele lugar especial, quase mágico. A capela sempre fora um refúgio para os Marcarini, um local de orações silenciosas, confissões e momentos de introspecção.
Ao se aproximar, percebeu que as luzes do interior estavam acesas. A porta de madeira estava entreaberta, e um som quase imperceptível vinha de dentro. Ela parou por um momento, hesitando, mas algo em seu peito a impulsionou a continuar. Fabíola empurrou a porta devagar e entrou na penumbra acolhedora da capela.
No altar principal, sob a luz trêmula das velas, estava Matteo. Ele estava ajoelhado, os ombros curvados e as mãos entrelaçadas. A visão a pegou desprevenida. A força que ele exalava durante o dia parecia ter se desfeito, substituída por algo mais vulnerável. Seus lábios se moviam lentamente, murmurando palavras que ela não conseguia ouvir completamente, mas havia um tom de súplica em sua voz.
Fabíola ficou em silêncio, observando-o de longe, sem querer interromper aquele momento que parecia tão íntimo. Mas então, Matteo inclinou a cabeça para frente, deixando escapar um sussurro mais audível, uma frase que fez o coração dela acelerar:
— Eu não tinha escolha… não queria matá-lo…
A voz dele estava carregada de culpa, e Fabíola sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ela deu um passo para trás instintivamente, mas o som de seu movimento ecoou no chão de pedra, chamando a atenção de Matteo. Ele levantou a cabeça bruscamente, os olhos castanhos brilhando sob a luz das velas.
— Cugina? ele perguntou, surpreso, a voz rouca.
— Scusami — ela murmurou, tentando esconder o embaraço — Eu não queria interromper.
Matteo se levantou lentamente, limpando as mãos nas calças como se quisesse se recompor.
— No… va tutto bene. O que a trouxe aqui a essa hora?
Fabíola hesitou, mas decidiu ser honesta.
— Eu precisava de um lugar para pensar. E… eu ouvi você. Você parecia tão… diferente.
Por um momento, Matteo apenas a olhou, como se estivesse decidindo o que dizer. Então, ele suspirou profundamente, cruzando os braços enquanto desviava o olhar para o altar.
— Às vezes, o peso de tudo isso… é demais.
Fabíola deu um passo à frente, agora sentindo a necessidade de entender.
— Matteo, o que você quis dizer? Sobre não querer matá-lo?
Ele fechou os olhos por um instante, como se estivesse buscando coragem dentro de si. Quando voltou a encará-la, havia algo quebrado em seu olhar, algo que Fabíola nunca havia visto nele antes.
— Andiamo a camminare — ele disse finalmente, gesticulando para a porta. — Eu preciso de ar.
Os dois saíram da capela e começaram a descer a trilha que levava de volta à villa. A lua cheia iluminava o caminho, derramando uma luz prateada sobre as colinas. Matteo caminhava em silêncio por alguns minutos, mas Fabíola sabia que ele estava se preparando para dizer algo importante. Ela esperou, dando-lhe espaço, até que ele finalmente quebrou o silêncio.
— Você sabe por que eu estou tão focado nesses vinhedos? — ele começou, sem olhar para ela — Por que eu trato isso como se fosse a coisa mais importante da minha vida?
Fabíola balançou a cabeça.
— Porque é a herança da nossa família?
— Sim, mas não só isso — Ele parou e virou-se para ela, sua expressão mais séria do que nunca — Essas terras já foram ameaçadas, Fabíola. Minha família já esteve a ponto de perder tudo. E eu fiz coisas… escolhas… para impedir que isso acontecesse.
Ela sentiu o coração apertar.
— Que escolhas?
Matteo passou a mão pelos cabelos, claramente desconfortável.
— Quando Stefano Meazza começou a expandir os negócios da máfia dele pelo Vêneto, ele tentou tomar algumas das propriedades vizinhas. Pessoas foram forçadas a vender suas terras por quase nada. Algumas desapareceram. Estávamos na lista dele, mas… eu encontrei uma saída.
— Que saída? — Fabíola perguntou, com a voz baixa.
— Eu me aliei a Giovanni Dorigatti e ao grupo dele, I Signori del Grappa. Eles estavam enfraquecidos, mas ainda tinham influência suficiente para proteger nossas terras. Eu os ajudei financeiramente, investi no que restava da organização deles. Foi o suficiente para manter Stefano longe, por um tempo.
Fabíola ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Matteo continuou, como se finalmente estivesse libertando um fardo que carregava há muito tempo.
— Foi nessa época que conheci Bianca, a filha de Giovanni. Ela era… fascinante. Inteligente, linda, gentil… mas também fazia parte daquele mundo. Nós nos apaixonamos.
O tom de sua voz mudou ao mencionar Bianca, tornando-se mais sombrio.
— Mas o que eu não sabia era que, no fundo, ela estava dividida. Bianca tinha sentimentos por Tommaso, o filho de Stefano Meazza. Eles estavam juntos antes de nos conhecermos, e eu fui tolo o suficiente para acreditar que ela havia superado isso.
Fabíola sentiu uma mistura de choque e empatia ao ouvir aquilo.
— O que aconteceu?
Matteo olhou para o chão, os olhos cheios de culpa.
— Bianca me entregou. Quando a guerra entre os dois grupos começou a se intensificar, ela tentou salvar a si mesma e escolheu o lado de Stefano. Ela contou a eles onde eu estava, o que eu estava fazendo.
Ele fez uma pausa, como se as próximas palavras fossem difíceis de dizer.
— Eu fui perseguido por Tommaso e os homens dele pelas ruas de Veneza. Eles queriam me matar. Não era uma questão de negócios, era pessoal. E naquela ponte…
Matteo engoliu em seco, os olhos presos na memória.
— Eu o matei. Não tive escolha, Fabíola. Era ele ou eu. Mas isso não significa que a culpa desaparece.
O silêncio que se seguiu era quase insuportável. Fabíola olhou para ele, vendo não apenas o homem forte que Matteo parecia ser, mas alguém quebrado por escolhas que o perseguiriam para sempre.
— Você fez isso para proteger nossa família — ela disse, sua voz suave.
— Isso não torna as coisas mais fáceis — Matteo respondeu, com um sorriso amargo.
Eles continuaram a caminhar, o som do vento nas vinhas preenchendo o vazio entre eles. Quando chegaram à villa, Matteo parou e olhou para Fabíola mais uma vez.
— Agora você sabe — ele disse — Mas isso fica entre nós. Ninguém mais pode saber.
Fabíola assentiu lentamente, sentindo-se mais conectada a ele do que jamais havia se sentido com alguém. Ela queria dizer algo, consolá-lo, mas sabia que Matteo não estava pronto para isso.
Quando alcançaram a entrada da casa, Matteo hesitou antes de abrir a porta. Ele se virou para Fabíola, os olhos castanhos refletindo algo entre cansaço e alívio.
— Você deve descansar — ele disse, a voz mais suave agora — Foi um dia longo. E, pelo visto, uma noite mais longa ainda.
Fabíola esboçou um sorriso tímido, mas algo em seu peito a impelia a falar. A maneira como Matteo carregava o peso de sua história a fazia lembrar de algo profundamente enterrado dentro dela, um pedaço de si mesma que ela tinha evitado revisitar.
Matteo abria a porta e a acompanhava para dentro, quando Fabíola tocou seu braço.
— Matteo — ela começou, hesitante, mas determinada a continuar — Você compartilhou algo muito difícil comigo esta noite. E eu gostaria de dizer que… entendo a dor que você deve estar sentindo.
Ele parou no meio do corredor, os olhos presos aos dela, com uma expressão confusa.
— O que quer dizer?
Fabíola respirou fundo, desviando o olhar por um momento antes de encará-lo novamente.
— Eu sei como é ser traída. Sei como é confiar em alguém e ter essa confiança destruída. E… bem, sei como é se arrepender de escolhas que nos colocam em situações que gostaríamos de esquecer.
Matteo franziu o cenho, mas não disse nada, esperando que ela continuasse.
— Quando eu estava casada com Rodrigo — ela começou, sua voz falhando ligeiramente, — nossa vida era… divertida, para dizer o mínimo. Nós tínhamos tudo: dinheiro, luxo, festas, viagens. Era uma vida que parecia perfeita por fora, mas, por dentro, era vazia. Abrimos nosso casamento. Começamos a viver de forma… liberal, acreditando que isso pudesse preencher esse vazio.
Ela pausou, esperando alguma reação de Matteo, mas ele permaneceu em silêncio, os olhos fixos nos dela, como se tentasse compreender cada palavra.
— Eu dizia para mim mesma que era sobre liberdade, sobre confiança, sobre explorar coisas novas. E eu… só mergulhei de cabeça, porque eu achava que era o ápice da liberdade e da felicidade.
Ela riu amargamente, mas seus olhos brilhavam com lágrimas que ameaçavam cair.
— Mas ele estava jogando um jogo diferente. Eu descobri que Rodrigo estava apaixonado por outra mulher, uma das nossas amigas mais próximas. Ele manipulou tudo, todas aquelas ‘liberdades’, só para poder ficar com ela.
Matteo piscou lentamente, absorvendo o que ela dissera. Fabíola sentiu o peso da vergonha crescer dentro dela, um nó apertado em seu estômago.
— E agora, aqui estou eu — ela continuou, a voz mais baixa — Tentando recomeçar, tentando me livrar desse passado, mas, às vezes, sinto como se nunca fosse capaz de escapar disso. Como se essa parte da minha vida estivesse marcada em mim para sempre.
Matteo permaneceu em silêncio por um longo momento, e Fabíola começou a se arrepender de ter falado. Ela sabia que sua história poderia soar chocante para ele. Matteo era tão diferente, tão íntegro, tão… puro, pelo menos aos olhos dela.
— Scusami — ela murmurou, tentando desviar o olhar — Eu não deveria ter te contado tudo isso. Não é justo jogar isso sobre você.
— No — Matteo disse finalmente, a voz firme, mas carregada de uma gentileza que a pegou de surpresa. Ele deu um passo em direção a ela, diminuindo a distância entre eles — Non scusarti, Fabíola. Você não precisa se desculpar por ser honesta.
Fabíola ergueu os olhos para ele, surpresa.
— Mas… você não entende? Eu vivi de uma forma que você provavelmente nunca aprovaria. Eu aceitei coisas que… bem, que não eram certas. E me deixei enganar por isso.
— Você cometeu erros — Matteo disse, os olhos fixos nos dela — Todos nós cometemos. E eu… eu não sou alguém para julgar.
Ele fez uma pausa, olhando para ela com intensidade.
— Você sabe o que eu fiz, Fabíola. Eu tirei uma vida. Eu também tomei decisões das quais me arrependo todos os dias. Então, não, eu não vou te julgar. Não importa o que você tenha feito, você está aqui agora. Está tentando ser melhor, e isso é o que importa.
A sinceridade na voz dele fez algo se quebrar dentro dela. Fabíola sentiu as lágrimas finalmente escorrerem por suas bochechas, mas, antes que pudesse levantar a mão para enxugá-las, Matteo já estava mais perto, estendendo a própria mão para tocar o lado de seu rosto.
— Você não é definida pelo seu passado — ele murmurou, o tom suave e reconfortante.
Os olhos de Fabíola se prenderam aos dele, e o tempo pareceu parar. A intensidade entre eles era quase palpável, um campo magnético invisível que os aproximava mais a cada segundo. Ela não conseguia desviar o olhar, nem queria.
— Matteo — ela sussurrou, mas não conseguiu dizer mais nada.
Ele inclinou a cabeça levemente, e, antes que ela pudesse pensar, os lábios dele estavam nos dela. O beijo foi suave no início, quase hesitante, mas cheio de emoção reprimida. O mundo ao redor desapareceu, deixando apenas os dois naquele momento, como se o peso de tudo o que carregavam finalmente encontrasse algum alívio.
Fabíola sentiu as mãos dele segurarem seu rosto com delicadeza, enquanto sua mão repousava no peito dele, sentindo o ritmo acelerado de seu coração. Não era um beijo apressado ou impulsivo. Era algo que parecia inevitável, como se ambos estivessem esperando por aquilo sem perceber.
Quando os lábios de Matteo se afastaram dos dela, ele ficou ali, com a testa encostada na dela, respirando fundo.
— Scusami — ele murmurou, mas o tom de sua voz não soava arrependido.
— Non scusarti — Fabíola respondeu, ainda atordoada pelo momento.
Ele recuou um pouco, olhando para ela com um misto de confusão e desejo.
— Buona notte, Fabíola — ele disse, dando um passo para trás, mas com os olhos fixos nos dela, como se estivesse gravando aquele momento na memória.
— Buona notte, Matteo — ela respondeu, com a voz quase inaudível.
**********
A manhã seguinte nasceu pesada sobre a Colline Marcarini. O céu claro contrastava com o clima dentro de casa, o ar parecia carregado de uma tristeza silenciosa que se espalhava por toda a propriedade. Fabíola acordou cedo, ainda com o coração inquieto pela noite anterior, mas ao descer para o café da manhã, encontrou a casa imersa em tensão.
Giulia estava na cozinha, mas não cantava como de costume enquanto preparava o café. Pietro permanecia sentado à mesa com a expressão sombria, o jornal dobrado ao lado da xícara de café intocado. Elena estava do lado de fora, perto dos jardins, olhando para os vinhedos com uma expressão que misturava preocupação e melancolia.
Fabíola sabia o motivo. A praga havia começado a mostrar sua verdadeira face.
Após o café da manhã, onde mal conseguiu tocar na comida, ela saiu para acompanhar Matteo. Ele já estava nos vinhedos desde o amanhecer, junto com os trabalhadores. A visão que encontrou enquanto caminhava até o campo fez seu peito se apertar: homens arrancavam fileiras inteiras de videiras infestadas, as raízes expostas revelando o estrago causado pela praga. O solo parecia contaminado, como se estivesse doente.
Matteo estava parado próximo a uma das áreas mais afetadas, os braços cruzados enquanto observava o trabalho com uma expressão inquietante. Seu rosto estava rígido, a mandíbula tensa. Ele não precisou dizer nada para que Fabíola percebesse o quanto aquilo o afetava.
— Cugino — ela chamou suavemente, parando ao lado dele.
Ele não respondeu de imediato. Ficou em silêncio por alguns segundos antes de finalmente murmurar:
— Eu não consigo nem olhar para isso.
Fabíola tocou levemente o braço dele.
— É devastador, mas vocês vão conseguir superar isso. A propriedade já passou por dificuldades antes, não é?
Matteo finalmente a olhou, mas seu rosto estava sombrio.
— Não como essa, Fabíola. Isso é diferente. A filoxera não é algo que simplesmente desaparece. Parte dessas terras vai levar anos para se recuperar, se é que vão.
Ela sentiu a dor na voz dele e quis dizer algo reconfortante, mas sabia que palavras não seriam suficientes. O silêncio entre eles foi interrompido por um dos trabalhadores, que se aproximou carregando um envelope nas mãos.
— Signore Matteo — o homem disse, hesitante — Um homem parou na estrada e entregou isto. Ele disse que era para você.
Matteo pegou o envelope com um aceno de cabeça. A rigidez em seu rosto ficou ainda mais evidente enquanto ele abria o papel com cuidado. Fabíola, observando de perto, viu a mudança imediata em sua expressão ao ler as palavras. O maxilar dele ficou ainda mais tenso, os olhos se estreitaram, e sua mão apertou o papel com tanta força que ela temeu que ele fosse rasgá-lo.
— Che cos'è? — ela perguntou, sentindo um calafrio percorrer sua espinha.
Matteo não respondeu imediatamente. Ele dobrou o papel com cuidado e colocou-o no bolso, respirando fundo antes de dizer:
— Stefano.
O nome foi suficiente para fazer o ar parecer mais pesado.
Matteo virou-se para o trabalhador e, com um aceno firme, dispensou-o. Assim que ficaram sozinhos, ele respirou fundo novamente, tentando esconder a raiva e a tensão que dominavam sua postura. Mas para Fabíola, ele parecia uma panela de pressão prestes a explodir.
— O que ele quer?
Matteo hesitou, os olhos fixos nas videiras devastadas à sua frente, como se estivesse tentando encontrar as palavras certas. Ele tirou o envelope do bolso e estendeu o papel para ela.
— Leia.
Fabíola pegou o papel com dedos trêmulos e leu a carta com atenção. As palavras estavam escritas à mão em uma caligrafia surpreendentemente elegante, mas o conteúdo era tudo menos refinado:
"Matteo, você sabia que suas escolhas teriam um preço. A filoxera é apenas um lembrete de que nada passa despercebido por mim. Se você quiser evitar mais perdas e proteger a sua querida família, sugiro que nos encontremos em Veneza, na doca de Marghera, amanhã à noite, você sabe onde. Leve sua coragem… e esteja preparado para negociar o preço pela segurança dos Marcarini. Stefano Meazza."
Fabíola sentiu o papel tremer levemente em suas mãos enquanto lia. O tom da mensagem era claro: Stefano estava no controle. Ele não apenas havia atacado a essência da propriedade Marcarini, mas agora exigia que Matteo viesse até ele para "negociar".
— Isso é uma ameaça direta — ela disse, devolvendo o papel para Matteo — Ele quer colocar você contra a parede. E você sabe que ele não vai jogar limpo.
— É claro que não — Matteo respondeu, guardando a carta novamente no bolso — Stefano nunca joga limpo. Mas eu não tenho escolha.
Fabíola franziu o cenho, irritada com a resignação na voz dele.
— Você vai se encontrar com ele? Sozinho? Matteo, isso é perigoso! Você sabe que pode ser uma armadilha.
— É claro que pode ser uma armadilha — ele respondeu, a voz subindo ligeiramente — Mas o que mais eu posso fazer, Fabíola? Ele já atacou nossos vinhedos. Se eu não for, ele pode atacar a casa, ou algo ainda pior. Stefano não ameaça apenas para assustar. Ele cumpre o que promete.
Fabíola cruzou os braços, os olhos brilhando com determinação.
— Então eu vou com você.
Matteo arregalou os olhos, surpreso, antes de balançar a cabeça rapidamente.
— De jeito nenhum. Isso não é algo que você deveria se envolver.
— Matteo, isso não é apenas sobre você! — ela respondeu, dando um passo à frente — Essa é a minha família também. Se esse Stefano é uma ameaça para vocês, então ele é uma ameaça para mim. E eu não vou ficar sentada aqui, de braços cruzados, enquanto você enfrenta isso sozinho.
— Fabíola… — Matteo começou, mas ela ergueu a mão, interrompendo-o.
— Não tente me colocar pra escanteio — ela disse, firme — Eu não sou uma criança que precisa ser protegida. E, além disso, você vai precisar de alguém ao seu lado. Você mesmo disse que ele não joga limpo. Quem garante que ele não vai tentar alguma coisa enquanto você estiver lá?
Matteo ficou em silêncio, claramente lutando consigo mesmo. Ele sabia que Fabíola tinha razão, mas a ideia de colocá-la em perigo o incomodava profundamente. Finalmente, ele suspirou, passando a mão pelos cabelos com frustração.
— Va bene — ele disse, relutante — Mas você faz exatamente o que eu digo. Se as coisas saírem do controle, você vai embora, não importa o que aconteça. Capito?
Fabíola assentiu, sentindo uma mistura de alívio e nervosismo.
— Capito.
Matteo a encarou por um longo momento, como se estivesse tentando prever o futuro apenas olhando para ela. Finalmente, ele suspirou novamente e começou a caminhar de volta para a casa. Fabíola o seguiu, sentindo que havia cruzado um limite invisível naquela conversa.
O restante da manhã e a tarde foram sombrios na propriedade. O trabalho nos vinhedos continuou, mas havia um peso no ar, como se todos estivessem cientes de que algo maior estava em jogo.
Elena, percebendo o humor de Matteo, tentou conversar com ele durante o almoço, mas ele mal tocou na comida, respondendo com monossílabos antes de se retirar novamente para o escritório. Pietro e Giulia trocaram olhares preocupados, mas não pressionaram.
Fabíola, por outro lado, não conseguia ficar parada. Ela caminhava pela propriedade, tentando distrair a mente, mas seu coração estava inquieto. O pensamento de que Matteo enfrentaria Stefano na noite seguinte a deixava em alerta. O olhar que ele havia dado a ela mais cedo, um olhar de alguém que estava preparado para o pior, continuava a assombrá-la.
Quando a noite caiu, Fabíola encontrou Matteo no terraço, olhando para as colinas iluminadas pela luz fraca da lua. Ele segurava um copo de vinho nas mãos, mas não parecia estar aproveitando a bebida.
— Você está pensando no que vai dizer a ele? — ela perguntou, aproximando-se.
Matteo não respondeu de imediato. Ele olhou para o líquido vermelho no copo, como se estivesse tentando encontrar respostas ali.
— Com Stefano, não importa o que você diga. Ele sempre tem a vantagem. A questão é o que ele vai exigir em troca.
— E você está preparado para dar a ele o que ele quer?
Ele finalmente olhou para ela, o olhar sério.
— Depende do que ele pedir. Se for algo que não comprometa nossa família… talvez, mas se ele tentar me forçar a algo inaceitável… — Matteo parou, balançando a cabeça — Eu não sei, Fabíola. Ele é capaz de tudo.
— E se ele estiver tentando forçar você a trabalhar pra ele?
Matteo apertou o copo com mais força ao ouvir o nome, seus olhos endurecendo.
— Eu não volto para aquele mundo, Fabíola.
Ela assentiu, sentindo que a conversa estava caminhando para um lugar mais tenso. Mas, apesar de tudo, ela sabia que precisava estar lá ao lado dele, não importava o risco.
— Eu estarei com você amanhã — ela disse, sua voz firme.
Matteo a olhou por um longo momento antes de finalmente assentir. Ele não disse mais nada, mas o olhar em seus olhos dizia tudo. Ele estava dividido entre a necessidade de protegê-la e a necessidade de tê-la ao seu lado.
Fabíola sentiu o vento frio da noite acariciar sua pele enquanto os dois permaneciam em silêncio, olhando para a vastidão das colinas. Amanhã seria um dia decisivo, para Matteo, para a família Marcarini e, agora, também para ela.