Três meses depois de tudo, minha vida ainda parecia um borrão, um filme rodando em câmera lenta, cheio de cenas que eu preferia nunca ter vivido. O vento frio cortava o silêncio do cemitério enquanto eu estava sentado no chão, encarando a lápide da minha mãe. O mármore polido parecia brilhar em contraste cruel com o peso da escuridão dentro de mim.
"Aqui jaz Bia Ferreira. Amada mãe e mulher incrível."
As palavras me perfuravam toda vez que eu as lia, como se quisessem me lembrar do que eu tinha perdido, do que eu não consegui salvar. As flores que eu trouxe já estavam começando a murchar, como se refletissem exatamente como eu me sentia: sem vida, sem cor, sem esperança.
— Me desculpa, mãe... — sussurrei, a voz embargada, quase irreconhecível até para mim. — Você não merecia isso.
As lágrimas começaram a cair, pesadas e quentes, como se quisessem limpar a culpa que eu sabia que nunca iria embora. Encolhi-me contra o frio, abraçando os joelhos, tentando não me perder completamente no vazio que era minha existência agora.
— Foi tudo culpa minha. — Minha voz saiu baixa, como um sussurro confessando a um fantasma. — Eu devia ter encontrado outro jeito... não devia ter deixado as coisas chegarem a esse ponto.
Minha mente rodava entre memórias como uma roda desgovernada: Marc, suas palavras afiadas, seus toques invasivos, o som dos tiros, o sangue que parecia se recusar a sair das minhas mãos, mesmo depois de tantas lavagens. Eu pensei que acabar com ele me libertaria, mas só me prendeu em uma outra cadeia: a da culpa, do arrependimento, do vazio.
— Eu só queria te salvar, mãe. — Meus olhos fixaram-se no nome dela, gravado com perfeição na pedra fria. — Só queria que você não precisasse sofrer.
Mas, ao fazer isso, acabei perdendo tudo.
Fiquei ali por um tempo, em silêncio, apenas encarando a lápide. O vento soprava forte, como se quisesse levar embora meus pensamentos. Eu me levantei, sentindo o corpo pesado como chumbo, e coloquei outra flor ao lado do túmulo.
— Eu te amo, mãe. Sempre vou te amar. Me desculpa por não ter sido suficiente.
Virei-me para sair, mas o som de passos atrás de mim me fez congelar. Meu coração disparou por reflexo, mas quando olhei, vi Erick, parado a poucos metros de distância.
Ele estava vestido com um casaco grosso e tinha uma expressão que misturava seriedade e compaixão. Ele não disse nada por alguns segundos, apenas me observou.
— Yago, pensei que te encontraria aqui.
— O que você quer? — perguntei, tentando soar firme, mas minha voz saiu baixa, quase como um sussurro.
Ele deu alguns passos na minha direção, parando a uma distância que parecia cuidadosamente calculada.
— Saber como você está.
Soltei uma risada amarga, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta velha que eu usava.
— Como você acha que eu estou, Erick?
Ele suspirou, esfregando a nuca.
— Eu sei que não tem sido fácil. Mas você sobreviveu, Yago. Isso já é algo enorme.
— Sobrevivi? — A amargura na minha voz era evidente. — Eu matei alguém. Eu destruí minha própria vida. Minha mãe morreu achando que eu era um fracasso. Isso não é sobreviver, Erick. Isso é só existir.
Ele deu mais um passo à frente, mas não me tocou.
— Você fez o que precisava para sair daquela situação. Não vou fingir que entendo o que você passou, mas... você merece ter uma segunda chance.
Olhei para ele, incrédulo.
— Segunda chance? — repeti, rindo sem humor. — Eu nem sei o que isso significa mais.
Ele respirou fundo, colocou a mão no bolso e tirou um cartão simples, branco. Ele estendeu na minha direção, e eu peguei, hesitante.
— Se precisar de ajuda... ou de alguém para conversar, ligue para esse número.
Olhei para o cartão e vi o nome "Yuri" escrito à mão, com um número logo abaixo.
— Yuri? — perguntei, confuso.
Um pequeno sorriso apareceu no rosto de Erick.
— Meu marido. Ele é bom em ouvir, melhor do que eu. E... nós dois nos apegamos a você como um filho, se verdade. Concordamos que queremos estar aqui para você, Yago.
Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Olhei para ele, tentando entender o que ele realmente queria dizer.
— Por quê? — perguntei, minha voz um pouco mais firme.
Ele deu de ombros, mas seu olhar era sério.
— Porque você merece. Porque ninguém deveria passar por isso sozinho.
As palavras dele me atingiram com força, mas eu não respondi. Apenas guardei o cartão no bolso e assenti lentamente. Erick deu um último olhar para mim, como se quisesse dizer algo mais, mas apenas se virou e foi embora, deixando-me sozinho novamente.
Voltei minha atenção para o túmulo da minha mãe e respirei fundo. Talvez Erick estivesse certo. Talvez houvesse uma chance de eu reconstruir o que sobrou de mim. Mas não seria fácil.
Erick cruzou os braços enquanto me observava, seu olhar cheio de preocupação e cautela.
— Yago, onde você está morando agora? Você precisa de ajuda?
Olhei para ele, hesitante, e acabei dando de ombros.
— Eu... tô bem. Peguei um pouco de dinheiro que o Marc tinha guardado. Não é muito, mas dá pra viver por enquanto.
Ele franziu a testa, desconfiado.
— Você tá trabalhando?
Respirei fundo, sem saber exatamente como responder.
— Sim... tô fazendo uns bicos com a Medusa. Nada demais, só coisa básica.
O nome "Medusa" fez Erick estreitar os olhos, claramente desconfiado. Ele inclinou-se um pouco para mim, baixando a voz.
— A Medusa tá envolvida em tráfico humano, Yago. A gente sabe disso, mas não temos provas suficientes pra incriminá-la. Você... sabe de alguma coisa? Algum detalhe que possa ajudar?
Balancei a cabeça imediatamente, meu coração disparando.
— Não. Eu já contei tudo o que sabia pra polícia, Erick. Não tem mais nada.
A resposta saiu mais firme do que eu esperava, e isso pareceu apenas aumentar a desconfiança nos olhos dele. Ele ficou em silêncio por um instante, me estudando, mas, por fim, suspirou.
— Certo. Se lembrar de qualquer coisa, você me avisa, tá?
— Tá.
Erick me olhava como quem tenta entender o que passa pela mente de alguém perdido. Ele ainda segurava o cartão na mão, mas hesitava em me deixar sozinho ali, no meio do cemitério, cercado pelo peso das lápides e da minha própria culpa.
— Realmente não tem mais alguma coisa, Yago? — ele perguntou, o tom de voz suave, mas cheio de intenção. — Algo que você tá guardando e que não quer contar?
Suspirei, desviando o olhar para o túmulo da minha mãe.
— Já falei tudo, Erick.
— Tem certeza?
Seus olhos insistiam, como se soubessem que algo ainda estava preso em mim, algo que eu não tinha coragem de dizer.
Ele deu um passo mais próximo, cruzando os braços.
— Tá bom, então. E o Kadu?
A pergunta me pegou de surpresa. Meu corpo travou, e meu coração deu um salto estranho.
— O quê?
— O Kadu — ele repetiu, mais firme dessa vez. — O que aconteceu entre vocês?
Senti como se o ar ao meu redor tivesse ficado mais pesado. Fechei os olhos por um instante, tentando afastar a avalanche de emoções que vinha com aquele nome.
— A gente não tem mais nada — murmurei, a voz fraca.
— Nada? — Erick arqueou uma sobrancelha. — Você abriu mão dele assim?
Engoli em seco, mas as palavras começaram a escapar antes que eu pudesse me impedir.
— Há um mês... eu fui até a casa dele — comecei, a voz já embargada. — Eu queria pedir desculpas. Depois de tudo o que eu fiz, depois de tudo o que aconteceu, eu só queria que ele soubesse que eu sentia muito.
Erick permaneceu em silêncio, me dando espaço para continuar.
— Quando cheguei lá, ele tava no jardim — continuei, minha visão ficando turva com as lágrimas que ameaçavam cair. — Ele tava com ela.
— Ela quem?
— A ex-namorada dele. Aquela garota que ele namorava antes de... antes de mim.
Minha voz falhou, e as lágrimas finalmente escaparam.
— Eles estavam rindo juntos, Erick. Como se nada tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse existido. Ela se aproximou dele, e... eles se beijaram.
As palavras saíam como um desabafo doloroso, cada uma me cortando por dentro.
— Fiquei ali parado, escondido, vendo tudo. Eu não consegui nem ir até ele. Não consegui dizer nada. Ele já me esqueceu, Erick. Ele seguiu em frente, e eu... eu tô aqui.
Passei a mão pelo rosto, tentando limpar as lágrimas que insistiam em cair, mas era inútil.
— Eu estraguei tudo. Ele me amava, e eu estraguei tudo.
Erick se aproximou, colocando a mão no meu ombro, mas não disse nada imediatamente. Ele esperou até que eu conseguisse respirar novamente, até que as lágrimas diminuíssem.
— Yago — ele começou, a voz baixa, mas firme. — Você passou por coisas que ninguém deveria passar. E, sim, você cometeu erros, mas isso não significa que você não possa consertar as coisas.
Olhei para ele, meu peito ainda apertado.
— E o que eu faço agora?
Ele sorriu de leve, um sorriso que carregava empatia e determinação.
— Você continua vivendo, um dia de cada vez. Se o Kadu seguiu em frente, você também pode. E se ele ainda tiver algum sentimento por você, o tempo vai mostrar isso.
Aquelas palavras não eram exatamente o que eu queria ouvir, mas, de alguma forma, elas traziam um pouco de alívio.
— E, se precisar de ajuda, você tem meu número. E o do Yuri também. A gente tá aqui pra você.
Assenti, ainda lutando contra a tristeza que parecia grudada em mim.
— Obrigado, Erick.
Ele me deu um último aperto no ombro antes de se afastar, mas sua presença deixou uma marca.
Quando fiquei sozinho novamente, deixei o silêncio do cemitério me envolver. Olhei para o túmulo da minha mãe mais uma vez, tentando encontrar algum tipo de força para seguir em frente.
O vento frio da noite acariciava meu rosto enquanto eu esperava pelo carro que pedi pelo aplicativo. O cemitério já estava silencioso, exceto pelo som distante de folhas secas sendo levadas pelo vento. Meu coração ainda parecia pesado, carregando o peso das memórias e das palavras trocadas com Erick.
Quando o carro chegou, entrei e me afundei no banco de trás. O motorista perguntou meu destino e, após confirmar, mergulhei em meus pensamentos. A cidade passava pela janela, um borrão de luzes e sombras, enquanto eu tentava juntar os pedaços do que restava de mim.
O carro parou em frente ao meu prédio, um edifício simples, sem luxo, mas o suficiente para mim. Subi as escadas com passos pesados, destranquei a porta do meu apartamento e entrei. O ambiente estava silencioso, quase sombrio. A solidão parecia gritar em cada canto.
Larguei minha mochila no sofá e fui direto para o banheiro. Precisava de um banho, precisava lavar tudo aquilo. Liguei o chuveiro e esperei até que a água ficasse quente, antes de entrar. Deixei o jato de água cair sobre mim, escorrendo pela minha pele, como se pudesse levar embora o peso das últimas horas.
Enquanto a água caía, minha mente não parava. Eu precisava mudar. Não era só o que eu sentia, era o que eu sabia. O Yago que eu era não podia mais existir. Ele carregava dores demais, erros demais. Eu precisava ser alguém novo, alguém capaz de deixar o passado para trás.
Saí do chuveiro e me olhei no espelho. Meu reflexo parecia cansado, perdido. Mas não seria mais assim. Peguei a tinta de cabelo que tinha guardado há semanas, algo que comprei impulsivamente, mas nunca tive coragem de usar. Hoje era o dia.
Apliquei a tinta com cuidado, seguindo as instruções na embalagem. Enquanto esperava o tempo necessário para a tinta agir, olhava para o espelho, imaginando quem eu seria depois disso.
"Não dá pra mudar o passado," pensei, "mas dá pra mudar quem eu sou daqui pra frente."
Depois de enxaguar a tinta e secar o cabelo, encarei meu novo reflexo. O tom do cabelo estava diferente, uma mudança pequena, mas que parecia simbólica. Era um novo começo, por menor que fosse.
Enrolei uma toalha ao redor da cintura e voltei para o quarto. O ambiente era tão silencioso quanto antes, mas algo parecia diferente. Me aproximei da cama, onde uma mala estava cuidadosamente colocada ao lado.
Ajoelhei no chão, abri a mala e encarei o que estava dentro: dinheiro. Notas organizadas em maços, ocupando boa parte do espaço. Mas não era só isso. Um celular simples estava ali também, descansando em cima do dinheiro.
Peguei o aparelho, liguei-o e esperei até que a tela se iluminasse. Abri a única conversa que existia ali e digitei uma mensagem curta.
— Está tudo pronto para amanhã.
Demorou apenas alguns segundos para a resposta chegar.
— Ok. Nos encontramos lá.
Fiquei olhando para a tela por um longo tempo, o coração batendo em um ritmo estranho. Não era mais o passado que me definia. Agora, era o que eu faria a partir daqui.
Fechei o celular, joguei-o de volta na mala e a fechei com um movimento firme. Amanhã, tudo mudaria. Amanhã, eu começaria a escrever minha história do zero.