Nota: Tá uma falação que só, boa sorte para vocês que vão ler! 🗣️🤣
No último dia em Lençóis, fizemos uma visita rápida ao centro histórico; ia ser um rolê mais calminho. Sempre fico com o pé atrás se vai ser entediante para Milena e Kaique, mas eles sabem se divertir, inventam brincadeiras e competições do vento. Não é o melhor passeio ou algo que eles escolheriam, mas, de qualquer forma, se desenrolam muito bem.
Júlia permanecia um grudezinho, e eu estava amando. A única coisa que me deixava "preocupada" era essa TPM fora de hora. Não era para estar, mas preferi nem comentar sobre, para que ela não ficasse ansiosa.
Quando chegamos, visitamos vários locais interessantes, dentre eles, uma Igreja Católica.
Subimos a escadaria, e o guia foi levando todos para dentro. Juh, eu, Kaká e Mih fomos os únicos que ficamos para trás, pois ainda estávamos tirando selfies na parte externa. Em uma dessas fotos, dei um beijinho no pescoço da minha muiézinha e sentamos em um degrau.
— A mamãe quer carinho, não é? — Mih perguntou, já passando a mão no rosto de Juh.
— Muito carinho — eu confirmei, dando outros beijinhos nela.
E nós esquecemos do pessoal, ficamos ali conversando, lembrando e rindo do casamento de Lorenzo e Sarah, em que eles aprontaram só para tocar o sino. Quando resolvemos entrar, porque estava demorando, uma mulher veio na velocidade da luz até nós. Pela postura corporal, expressão facial e ferocidade com que ela se aproximava, imaginei que ela queria confusão.
— Vocês não podem entrar, sapatonas! Deus fez Adão e Eva e não Eva e Ada! — Ela bradou, e as pessoas começaram a olhar para nós. — Vocês não são bem-vindas na casa de Deus, estavam se agarrando aqui como duas cachorras no cio. TENHO CERTEZA QUE VOCÊS SE AGARRARÃO ETERNAMENTE NOS QUINTOS DOS INFERNOS!!!! — Ela continuou.
Coloquei a mão na frente para conter a proximidade e a empurrei de leve.
Poucas vezes recebi ataques homofóbicos diretos; velados diversas vezes, mas agressivos e hostis dessa forma, poucas vezes. Eu tenho certeza de que, se eu estivesse sozinha, ia fechar o punho e partir para cima daquela vadia, mas meus filhos estavam ali, ouvindo todas aquelas ofensas com a gente. Se eu fosse agir, precisava agir pensando na proteção dos três.
— Vocês querem entrar ou sair daqui? — Perguntei para eles, tentando parecer calma.
— VOCÊS NÃO VÃO... — Começou a dizer, e eu a interrompi.
Nesse momento, algumas pessoas já tentavam levá-la e diziam para a gente não ligar para ela.
— Se eu quiser entrar com a minha família, eu entro e ninguém poderá me impedir, cala a porra dessa boca e cai fora daqui, antes que eu perca a paciência que eu não tenho e responda a sua ignorância moral com uma ignorância física. — Essas palavras saíram da minha boca com muita raiva, a minha mandíbula estava quase travada.
— Vamos sair daqui, amor... — Juh disse firmemente, com lágrimas nos olhos, me segurando pelo braço.
E assim nós fizemos.
Kaique e Milena estavam mudos, aterrorizados. Os dois com os olhares perdidos. Nós os carregamos e sentamos no restaurante mais próximo. Na frente da igreja ficou muita gente ainda discutindo o assunto.
Eu estava enfurecida e, por mais que quisesse conversar com eles imediatamente, não conseguia.
— Mamãe, por que aquela mulher fez isso com a gente? Nós não fizemos nada... — Perguntou Kaique para Juh.
— Ela é uma daquelas pessoas más que não entendem que é só amor — Explicou Mih para ele.
Por mais que eu goste de deixá-los cientes da realidade, de que existem pelo mundo esse tipo de pessoa, vivenciar e estar na presença deles foi terrível. Eu quase perdi o controle e adoraria ter me deixado levar.
— Não vamos deixar essa mulher mal amada estragar o nosso dia... Vamos... Ali, olha, tem lembrancinhas, podemos comprar para os seus avós! — Sugeriu Juh, mas não levantamos.
Kaique, que estava sentado no meu colo, virou-se e disse-me, acredito que tentando me animar.
— Mãe, queria que a senhora desse uma surra nela — e ele falou isso com um sorriso satisfatório no rosto, enquanto deu um soco na própria mão.
— Ela merecia, viu?! — Sorri para ele de volta.
— A senhora ia acabar com ela — Falou Mih e eu ri, porque para mim é engraçado essa visão que eles têm de mim.
Reforço constantemente que a violência nunca é uma solução e só tende a agravar a situação. Mesmo com Mih praticando jiu-jitsu e Kaká prestes a começar também, eles sabem que só devem usar essas habilidades fora do tatame se for para se defender. Eu jamais incentivo confrontos físicos, mas, ainda assim, eles acharam que eu meteria a porrada naquela vagabunda.
Já comentei antes sobre como minha criação foi bastante livre e como nunca tive aquela conversa formal com meus pais, do tipo “oi, sou bi”. As coisas simplesmente aconteceram de forma natural e eles entenderam que estava tudo bem. Na minha adolescência, a homofobia era uma realidade ignorada, e foi surpreendente quando um jornal local mostrou o caso de um rapaz espancado por ser flagrado dando um beijo de despedida no namorado na porta de casa. Meus pais, então, me alertaram sobre a demonstração de afeto em público – algo que, naquela época, me parecia absurdo. Como alguém poderia odiar o outro por amar alguém do mesmo sexo? Isso nunca fez sentido, nem faz, nem fará algum dia.
O que mais me revoltou, por mais que pareça estranho, não foi a agressão verbal, mas sim o fato de que nós não estávamos fazendo nada de errado. Estávamos apenas existindo. Uns beijos no pescoço da minha mulher justificariam tamanha grosseria? Estava com crianças e nem isso foi respeitado. Somos duas mulheres que adoram o toque físico, e vivemos a nossa vida ignorando os olhares julgadores enquanto caminhamos de mãos dadas, trocando carinho. Vivemos, simplesmente, do nosso jeito.
~ Ah, viver a mediocridade do cotidiano seria um sonho, não seria?
Júlia e eu não nos consideramos católicas, mas temos a fé como um alicerce. Na minha família, apesar de não praticarem fervorosamente, meus pais vão à missa apenas duas vezes ao ano. Fui criada rodeada de santos, aprendi as orações básicas, fiz catequese e recebi alguns sacramentos. Acho que mais da metade da população brasileira foi criada assim. Já na família de Juh, a história é diferente. Meus sogros têm uma fé ardente e ela teve uma educação religiosa muito mais intensa que a minha. Já até exerceu várias funções na igreja e tinha uma relação muito próxima com a fé.
Com o tempo, fui me afastando quase completamente dessa realidade, não porque não acreditasse, mas porque percebi que ali eu nunca seria aceita por inteiro, do jeito que sou. Quando conheci a Júlia, ela já não era tão praticante, mas por escolha própria, por não sentir vontade. Com o tempo, ela também chegou à mesma conclusão que eu: não vale a pena seguir um caminho que não nos inclui de forma genuína. Na verdade, não é tão difícil assim; as pessoas, por muitas vezes, acabam facilitando esse afastamento.
Hoje, participamos apenas de alguns momentos com minha sogra, batizados ou casamentos de amigos e familiares, mas nada além disso. Acreditamos em Deus, nos santos, no céu, celebramos o Natal e a Páscoa, porém não professamos a fé. Não faria sentido na nossa vida, já que, segundo ela, estamos condenadas ao inferno por viver o nosso amor.
O padre João é um homem muito sábio, gosto de ouvir suas palavras. Se ele fosse um daqueles conservadores que ignoram os dois mandamentos mais importantes, nem para agradar minha sogra eu iria. E olhe que dizem por aí, que eu sou a maior puxa-saco dela.
Estamos felizes assim, do jeito que encontramos para viver nossa fé. Continuamos acreditando no amor pregado na cruz, no poder de Deus, na intercessão dos santos e na força da oração, mas não nos forçamos a tentar nos encaixar em um espaço que não é nosso, não nos podemos para nos encaixar em um lugar que não nos cabe, onde não há espaço para nós.
Não privamos Kaká e Mih de escolher qual caminho seguir. Hoje em dia, é muito bonito observar tudo que fazem... Mas deixa eu contar isso mais para frente, não faria sentido agora.
~ Voltando para 2019
Nós nos distraímos comprando lembrancinhas e provamos um pastel de jaca. Lá tem tudo de jaca, na verdade, e é surpreendentemente gostoso! (mas Juh não curtiu 🤣)
A gente achou melhor não contar para o restante do pessoal o que rolou, para não pesar o clima ou aumentar a confusão. Loren e Lorenzo ficaram curiosos com a aglomeração, mas explicamos que foi só uma louca dando o show e seguimos com nosso passeio.
Fomos em mais uma cachoeira e lá encontramos um povo mais alternativo, com pedras, tarot e leitura de mãos.
— Olha, chapados na chapada — Brinquei.
Nesse momento, uma mulher passou meio que dançando entre nós, sorrindo, e colocou a mão sobre a barriga de Loren.
— Que venha com saúde! — Ela disse.
Todo mundo impressionado e eu pensando: "Certeza que ela estava na cachoeira de ontem."
— Amooor, vamos ver pelo menos as cartaaaas!!! — Juh pediu.
— Não preciso de cartas para saber que vou ficar a vida inteira com você, gatinha... — Falei deitando o corpo dela em uma pedra e dando um selinho.
— Ponto pra Lore! — Gritou Victor, rindo.
Mas, como minha muié queria e eu faço tudo por ela, fui.
A moça pediu que a gente fizesse perguntas pontuais e não abertas, e Juh começou.
— Existe algum bloqueio na minha vida profissional esse ano?
A taróloga fez uma tiragem e começou um discurso positivo, falando que não, que Júlia teria muito sucesso e que via um futuro brilhante pela frente, que ela ia se sobressair se tivesse coragem de aproveitar as oportunidades que iam aparecer, e a minha gatinha ficou radiante.
— Agora você, môh! — Ela disse, animada.
Eu não tinha nada em mente e usei a mesma pergunta.
— Huuuum, e a minha vida profissional? — Questionei.
A mulher cerrou os olhos como se me analisasse e, após algum tempo, segurou a minha mão. As expressões faciais dela iam mudando e mudando até que ela falou com uma voz rouca.
— Você está com raiva... Precisa liberar isso antes de falar comigo.
— ELA TÁ COM RAIVA MESMO, MEU DEUS! — Vibrou Juh, levantando, desacreditada.
Eu comecei a rir, para mim qualquer outra coisa explicaria a situação.
— Amor, eu estou com raiva, já posso ir? — Perguntei, tentando me livrar, e ela acenou positivamente. A muié estava contente por ter achado uma guru e ia alugar o ouvido dela com mais perguntas.
Fui me afastando e Mih veio correndo.
— Maaaae, compra cristais pra mim, por favor — Ela pediu, me puxando até a banquinha.
— Oxe, aqui no chão tem um monte e de graça — Brinquei, chutando um pouco de água nela.
— Por favoooor! — Ela implorou, com as mãozinhas postas.
— Tá... Desde quando você gosta dessas coisas de pedrinhas e tal? — Perguntei.
— Dá um quartzo rosa para a mamãe, ela vai gostar — Mih sugeriu.
— Você sabe até os nomes? — Perguntei.
E ela confirmou, disse que uma amiga do colégio tem e que leva às vezes. Ela me entregou uma pedra rosa maiorzinha e a vendedora me deu um papel que dizia os significados e tinha lá "pedra do amor incondicional".
Bom... Milena tinha razão, Juh ia amar, então resolvi comprar.
Aí ela selecionou algumas pequenas e duas azuis, pediu dois cordões e finalizamos, antes que ela quisesse levar tudo.
Sentamos em uma pedra alta e ela começou a fazer dois colares com as pedras azuis.
— É para seu irmão, né? — Perguntei para confirmar.
— É, essa é a Lápis Lazúli, a gente vai usar para sempre e vai ser o nosso amuleto da sorte e vamos lembrar que estamos sempre um com o outro — Milena me explicou empolgada
Olhei para ele, que brincava com Lorenzo, próximo da queda d'água.
— Que isso? — Perguntou Loren, sem entender.
— Pedras — Falei, rindo.
— Você era cética com tudo isso, mudou foi? — Me perguntou.
— Não... Mas acho que Juh vai gostar... — Falei, convencida, e ela riu de mim.
— Vou entregar para o Kaká, mãe — Minha filha disse, e foi animada.
De longe, vi o sorrisinho de Kaique brotando enquanto Milena colocava no pescoço dele e ia explicando. Ele não parava de olhar e a abraçou.
O significado criado por eles e o gesto de Milena pensar no irmão preenchem meu coração muito mais do que qualquer significado que aquela pedra tem.
Juh finalmente saiu da consulta e não estava tão animada quanto antes. Com certeza, foi algo que a mulher disse. Fui até ela e a abracei, questionando o que havia acontecido.
— Depois a gente conversa, mas não foi nada que a gente já não soubesse — Disse-me.
— Huuuuuum, vou querer saber mesmo assim — Falei e dei um beijinho no queixo dela.
— Tá, cadê as crianças? — Ela me perguntou, e eu apontei para onde estavam brincando.
Juh me chamou para ir até eles, e eu a puxei, aproximando nossos corpos.
— Se me permite, gostaria de tentar te animar com algo que comprei para você — Falei no ouvidinho dela.
— Permito, o que é? — Ela sorriu, e eu dei um selinho.
Com a mão que até então estava atrás das minhas costas, mostrei a pedra, e Júlia ficou encantada. Ela passava a mão e me olhava.
— Já que você tá meio hippie, recebi a indicação de uma especialista, também conhecida como nossa filha, e resolvi comprar.
— Fica mais bonito ainda quando eu lembro que você não curte nem acredita em nada disso e, mesmo assim... — Ela ia começar a chorar e me abraçou.
— É porque eu te amo muito — Disse-lhe.
— Ponto pra Lore de novo, hoje tem! — Brincou Victor, passando por nós, e rimos.
Voltamos para a fazenda para arrumar nossas roupas nas malas. Kaique e Milena, que jogam tudo de qualquer jeito, terminaram logo e estavam agitados, pulando a distância da cama até onde conseguissem.
— Agora nós temos um segredo, né, mãe? — Perguntou Kaká.
— É? Qual? — Perguntei, pois não me recordei de nada.
— Aquela louca lá, é o nosso segredo de viagem — Eu ri e confirmei.
— Viu como existem pessoas intolerantes e malvadas por aí? — Juh perguntou para eles.
— Para mim, pessoas assim são burras — Disse Milena.
— E merecem... — Kaique começou, porém levou um olhar de Juh que me fez entender que nem ele completaria a frase.
— Enfim, isso que aquela mulher fez é crime e ela poderia ir presa. Que bom que a gente não deixou ela estragar o nosso dia, porque aí quem venceria seria ela. Hoje nós vencemos! — Falei, e eles pararam de pular para um abraço.
Eles dois queriam ir em cima da caminhonete, mas como dessa vez a gente ia imprudentemente para outra cidade e à noite, decidimos que era melhor não.
Foi bem rápido, porém, quando chegamos na casa onde ficaríamos, as crianças estavam apagadas. Aquele carro balançou tanto que eu sinceramente não entendo como eles dormiram.
Loren pediu para deixar Mih com ela e Kaká com Lorenzo, com a justificativa de que a gente merecia aproveitar. Eu aceitei, mas corrigindo, nós duas precisávamos descansar. Dormir com eles é gostoso, diria que é até compulsivo, mas é luta a noite inteira.
No banho mesmo, perguntei para minha gatinha o que estava deixando-a pensativa, mas sabia que foi seja lá o que a taróloga falou.
— A mulher disse que não vê mais nenhum filho ou filha em nossas vidas, eu nem toquei no assunto gravidez, mas ela afirmou que é impossível — Disse-me, um pouco desanimada.
— Aquela mulher não sabe de nada, amor. Primeiro, que eu nunca vi tarô assim do jeito que ela fez. Só deixei você prosseguir porque vi que você se animou — Falei, fazendo carinho no rosto dela.
— Como ela sabia que você estava com raiva? — Juh perguntou baixinho.
— Qualquer pessoa que olhasse para mim saberia, francamente... — Afirmei.
— É... Ela não sabe de nada, né? — Ela perguntou.
— De nada! — Confirmei e a beijei. — Teremos quantos filhos quisermos, do jeito que acharmos melhor!
— Isso! — Juh falou, animada e sorrindo.
Nós dormimos, e foi como recarregar as energias. Uma ótima e tranquila noite de sono. Quando o alarme do celular tocou, a gente já havia acordado, porém não conseguíamos levantar. Estava muito bom ficar dentro do abraço uma da outra, com aquele carinho matinal gostoso. O segundo alarme tocou, mas não o do celular, o da porta, Kaká e Mih pedindo para entrar. Estavam sonolentos, e ficamos os quatro de preguiça, rendidos às carícias uns dos outros.