O som da televisão preenchia o silêncio da sala, um contraste com a quietude quase sufocante que parecia envolver tudo ao meu redor. Eu estava sentado no sofá, as pernas esticadas e os braços cruzados sobre o peito, olhando fixamente para a tela como se cada palavra dita ali fosse um soco direto no estômago. O Tenente Erick aparecia na entrevista, sua postura impecável, o semblante sério, mas com um ar de alívio, quase como se ele estivesse satisfeito por finalmente ter desmontado um esquema que, por tanto tempo, parecia intocável.
A imagem de Marc apareceu na tela, o rosto dele estampado como o principal nome por trás do escândalo: tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, entre outros crimes que eu nem conseguia processar. Meu peito se apertou ao vê-lo ali, aquele homem que, por tanto tempo, manipulou tudo e todos ao redor, inclusive... mim.
Eric falava com firmeza, explicando os detalhes da operação que desmantelou o esquema. Era surreal pensar que tantas pessoas estavam envolvidas, que tudo isso acontecia enquanto eu vivia achando que entendia o que estava acontecendo à minha volta.
O nome da minha mãe foi citado em seguida, e a cena mudou para uma gravação dela, chorando enquanto dava sua declaração. Ela parecia arrasada, mas para mim, aquele choro parecia tão falso quanto sua personalidade.
– Eu não sabia... eu não sabia o que eles faziam... Eu confiava nele, achava que tudo estava em ordem, mas... mas ele destruíu tudo... – A voz dela falhava, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela estava claramente tentando se passar por vítima, e talvez até fosse. Mas quem poderia saber?
Suspirei fundo e desliguei a televisão, jogando o controle remoto sobre a mesa de centro. A sala parecia mais pesada agora, como se até o ar tivesse absorvido a tensão do que acabávamos de assistir. Giovana, sentada na poltrona ao meu lado, mexia distraidamente em um copo de água que ela segurava. Seus dedos traçavam círculos na borda do copo enquanto ela olhava para o chão, perdida em seus próprios pensamentos.
Era a primeira vez que a via desde que ela havia saído da clínica. Giovana parecia mais magra, mas também mais... leve? Havia algo diferente nela, uma força que eu não reconhecia antes. Ela finalmente levantou os olhos para mim, quebrando o silêncio.
– Você acha que mamãe realmente não sabia de nada? – perguntou, sua voz baixa, quase cautelosa.
Dei de ombros, olhando para minhas mãos.
– Não sei, Gi. A essa altura, eu não confio em ninguém mais.
Ela assentiu lentamente, mas não disse nada. O silêncio voltou a se instalar, até que ela respirou fundo e voltou a falar.
– E... o Yago? Você teve notícias dele?
O nome dele era como uma ferida aberta que alguém acabava de cutucar. Apertei os lábios antes de responder, tentando manter a calma.
– Não. Ele sumiu. Provavelmente está com o Marc, como sempre esteve. – A amargura em minha voz era palpável.
– Não acho que seja tão simples assim. – Amanda, que estava sentada em uma cadeira próxima à janela, se pronunciou pela primeira vez desde que desliguei a TV. Ela estava quieta até então, os olhos focados em algum ponto do lado de fora, mas agora me encarava com uma expressão séria.
Amanda parecia mais forte do que quando a encontrei seis meses atrás na casa do Tenente Erick, mas ainda havia algo nela que mostrava os traumas que carregava. Sua postura era ereta, mas suas mãos estavam entrelaçadas, os dedos apertando uns aos outros como se fossem a única coisa que a mantinha ancorada no presente.
– O que você quer dizer com isso? – perguntei, virando-me para ela.
– Quero dizer que... já estive nessa posição. Já passei por isso. Sei como Marc manipula as pessoas, como ele faz você se sentir preso, como se não houvesse saída. Não acho que o Yago estava com ele porque queria. Talvez ele não tivesse escolha.
– Não sei... – murmurei, desviando o olhar. – Não sei mais o que pensar.
Amanda continuou:
– Você ainda o ama, não é?
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Giovana olhou para mim, mas não disse nada. Eu não sabia como responder, porque nem eu tinha certeza da resposta. Amava Yago? Ou era apenas a ideia de quem ele era antes de tudo desmoronar?
Meus pensamentos estavam um caos, mas uma coisa era certa: o nome dele ainda fazia meu coração apertar.
Giovana tocou meu ombro de leve, me tirando do turbilhão em que minha mente se encontrava.
– Kadu, você precisa saber a verdade antes de tirar conclusões. Talvez... talvez ele esteja tão perdido quanto você.
Amanda assentiu, e eu suspirei, afundando mais no sofá enquanto tentava organizar meus sentimentos. Naquele momento, a única coisa que eu sabia com certeza era que nada nunca mais seria o mesmo.
Seis meses depois. Ainda parecia surreal pensar em como minha vida tinha mudado de ponta cabeça em tão pouco tempo. Minha rotina, que antes girava em torno de treinos, jogos e conquistas no futebol, agora era preenchida por pensamentos que eu não conseguia calar. E em todos eles, sem exceção, o rosto de Yago aparecia.
Naquele dia, resolvi que não podia mais adiar. Precisava fazer algo, mesmo que fosse pequeno, mesmo que fosse apenas ouvir o som da voz de alguém que também sentia a ausência dele.
Dirigi pelas ruas do bairro onde a mãe de Yago morava, o coração pesado com uma mistura de ansiedade e medo. Eu sabia que, ao chegar lá, provavelmente ouviria a mesma coisa: “Não sei dele.” Mas, ainda assim, algo em mim precisava tentar. Talvez fosse a minha culpa me guiando até lá, ou talvez fosse apenas a saudade.
O caminho até a casa dela parecia mais longo do que eu lembrava. A cidade estava movimentada, mas o barulho lá fora parecia distante, abafado pelos pensamentos que me consumiam. “E se ele estiver bem e simplesmente não quiser mais contato? E se ele realmente estivesse envolvido com Marc desde o começo?” Essas perguntas me atormentavam como fantasmas, e a cada esquina que eu dobrava, parecia que ficavam mais fortes.
Quando finalmente cheguei, estacionei o carro em frente à casa dela. Era uma casa simples, mas acolhedora, com plantas no jardim que ela sempre cuidava com tanto carinho. Antes de sair do carro, respirei fundo. Não era fácil estar ali, mas eu precisava.
– Kadu? – A voz dela veio de surpresa, enquanto eu ainda subia os degraus da varanda. Ela estava na porta, o olhar cansado, mas gentil, e o sorriso de sempre tentando esconder a tristeza que carregava.
– Dona Bia... Desculpa aparecer assim, sem avisar. Eu precisava conversar com a senhora.
Ela me convidou para entrar com um gesto simples, e logo estávamos sentados na pequena sala de estar. Havia um cheiro suave de café no ar, e a mesa ao lado do sofá estava cheia de fotos antigas de Yago. Olhar para elas era como levar um soco no estômago.
– Então... O que te trouxe aqui, Kadu?– ela perguntou, tentando esconder a emoção na voz.
Eu demorei um pouco para responder, encarando minhas próprias mãos como se procurasse nelas as palavras certas.
– Eu precisava saber... A senhora tem notícias dele? Alguma coisa? Qualquer coisa?
Ela suspirou, e eu vi seus olhos se encherem de lágrimas. Por um momento, ela tentou segurar, mas logo desabou.
– Não muitas, Kadu. Ele me manda mensagens, às vezes. Nunca do mesmo número, sempre curtas. Ele diz que está bem, que não quer que eu me preocupe. Às vezes, ele manda dinheiro. Já chegou até a enviar um relógio com alguém para entregar. Ele não quer que eu fique sem nada, mas... isso não é o que importa para mim.
As palavras dela saíam entrecortadas pelo choro, e eu senti um aperto no peito tão forte que mal conseguia respirar.
– Ele não deveria estar fazendo isso, Kadu. Eu não quero dinheiro. Eu só quero meu filho de volta. Ele está sacrificando tudo por mim. E para quê? Eu sei que minha doença não tem cura. Sei que o fim está perto. Eu preferia morrer com ele ao meu lado do que assim, sem saber onde ele está.**
Ela colocou o rosto entre as mãos, chorando baixinho, e naquele momento eu senti como se fosse minha responsabilidade carregar a dor dela também. Não consegui segurar as lágrimas.
– Dona Bia, eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo. Se eu pudesse mudar alguma coisa, eu faria. Eu faria qualquer coisa para trazer o Yago de volta para a senhora... Para mim.
Ela ergueu a cabeça, os olhos vermelhos de tanto chorar, e me olhou com uma tristeza que parecia infinita.
– Você o ama, não é?
A pergunta dela me pegou de surpresa, mas não havia motivo para mentir.
–Amo. Sempre amei. E talvez seja isso que mais dói. Não saber se ele está bem, não saber se ele também sente a minha falta.
Ela assentiu lentamente, como se entendesse exatamente o que eu sentia.
Naquele momento, percebi que, nos últimos seis meses, a única pessoa que realmente podia compreender o vazio que Yago tinha deixado era ela. Dona Marta era um reflexo da minha própria dor, alguém que também acordava todos os dias com a esperança de que, talvez, aquele fosse o dia em que ele voltaria.
Ficamos ali por mais algum tempo, conversando sobre Yago, compartilhando memórias e tentando preencher o vazio com palavras. Quando finalmente me despedi, prometi a ela que voltaria, que não a deixaria sozinha. E, no fundo, sabia que também precisava disso.
Enquanto voltava para casa, o peso no meu peito parecia um pouco mais leve. Talvez porque, pela primeira vez em meses, eu tinha compartilhado minha dor com alguém que realmente entendia.