"Oi, maninho! Eduardo aqui.
Fiquei pensando muito em como começar este capítulo da sua história. Decidi que o ideal seria começar me desculpando. Sei que não tinha o direito de ler seus pensamentos, e confesso que hesitei. Mas, quando percebi a dor nas suas palavras, senti que precisava escrever algo. Não para corrigir, mas para mostrar o que carrego no meu coração desde que éramos crianças.
Você não se lembra muito bem do papai, mas eu lembro de como ele era com você. Sempre carinhoso, atencioso... Você era o mundo dele, Léo. Lembro de uma noite, pouco antes de tudo mudar, em que ele me chamou para conversar. Você já estava dormindo, e ele me levou para a varanda da nossa casa. Ele me fez prometer que eu cuidaria de você para sempre.
Na época, eu não entendia o peso daquelas palavras. Era só uma promessa para mim, algo que crianças fazem sem pensar muito. Mas, hoje, quando olho para trás, acho que ele já sabia que algo ruim estava para acontecer. E, de fato, aconteceu.
Perder o papai foi devastador. Eu ainda era uma criança, mas o choque de ver nossa família desmoronar ficou gravado em mim. O pior, porém, não foi a ausência dele... Foi ver o brilho da mamãe desaparecer aos poucos. Ela entrou em um processo depressivo que, para mim, parecia um buraco sem fundo.
Eu não sabia o que fazer. Como uma criança de VIII anos podia cuidar de uma mulher que parecia ter perdido a vontade de viver? Não havia ninguém para me ensinar, ninguém para segurar minha mão. Eu apenas fazia o que podia: tentava ser forte, tentava cuidar de você e dela, mesmo sem entender como.
Foi nesse caos que me apeguei ainda mais a você, Léo. Você era a única coisa que me fazia seguir em frente. Por isso, talvez, eu tenha me tornado tão protetor. Não porque eu não confiava em você, mas porque eu tinha medo de falhar com a promessa que fiz ao papai.
Quando a mamãe se casou novamente, eu achei que as coisas iriam melhorar. E, em certo sentido, melhoraram. Gustavo e o pai dele trouxeram estabilidade para nossa casa. Mas eu... Eu não conseguia me abrir para eles. Gustavo era diferente de nós, e acho que foi por isso que ele chamou tanto sua atenção. Desde o início, eu percebia como você olhava para ele.
Lembro de uma noite na casa da vovó, quando você desceu as escadas e foi dormir ao lado dele. Achou que ninguém tinha percebido, mas eu vi. Naquele momento, algo em mim sabia o que estava acontecendo entre vocês. Não era só uma amizade. Era algo maior, mais forte, algo que eu não sabia como lidar.
Eu não contei para ninguém, mas fiquei com medo. Não por mim, mas por você. Medo do que a mamãe pensaria, medo de como as pessoas ao nosso redor reagiriam. Eu sabia que nosso mundo era cruel, e que vocês dois estavam prestes a enfrentar uma tempestade.
E foi o que aconteceu, não foi? Tudo desmoronou. Eu vi você e Gustavo lutarem contra tudo e todos, vi o quanto vocês se amavam, e vi também como isso destruiu partes de vocês. Talvez eu tenha sido duro com você, talvez eu tenha falhado na minha promessa de cuidar de você. Mas, Léo, tudo o que fiz foi porque eu me importava.
Hoje, vendo o homem que você se tornou, fico orgulhoso, mas também preocupado. Sei que sua dor ainda é grande, e sei que você não deixou o Gustavo ir. É por isso que escrevi isso. Não para te dizer o que fazer, mas para te lembrar de que você não está sozinho. Eu estarei aqui, maninho, como prometi ao papai, para cuidar de você.
Se o Gustavo é quem te faz feliz, Léo, eu vou fazer de tudo para trazê-lo de volta. Eu sei que você pensa que minha implicância com ele era por ciúme ou por não aceitar vocês dois juntos, mas a verdade é que, ainda que eu tivesse minhas dúvidas, nada nunca foi maior do que o meu amor por você. Esse amor supera qualquer problema que eu tenha com o Gustavo, qualquer desentendimento, qualquer mágoa. Você é meu irmão, Léo, e eu daria a vida para te ver sorrir de novo.
Eu sei que você sente que está sozinho, mas não está. Nossa mãe sente sua falta todos os dias, embora não diga isso com palavras. Você sabe como ela é, sempre tentando parecer forte, sempre querendo esconder os próprios sentimentos para não preocupar ninguém. Mas eu vejo nos olhos dela, Léo. Vejo como ela se ilumina quando fala de você, mesmo quando a voz dela quebra ao perceber o quanto você se afastou.
Ela não merece perder mais alguém que ama. Já perdeu o amor uma vez quando papai morreu, e depois com a morte do pai do Gustavo. E o pior é que naquele dia não foi só o nosso padrasto que se foi, ela também perdeu o Gustavo e perdeu você. Cada ausência sua é um vazio que ela não consegue preencher. Eu sei que você está machucado, mas volta pra gente, maninho.
Eu sei que nem sempre demonstramos, mas a gente ama você. Mamãe ama você. Eu amo você. Nossa família não é perfeita, nunca foi, mas é a única que temos. E eu preciso que você volte, por ela e por você mesmo. Você não merece se afogar nessa dor sozinho, Léo. Não precisa ser assim.
Quanto ao Gustavo... Eu sei que ele foi embora, mas eu também sei que ele era a sua felicidade. E se ele é o que falta para você se sentir inteiro de novo, eu vou te ajudar a encontrá-lo. Não importa o que isso signifique para mim ou para qualquer outra pessoa. Eu só quero que você saiba que, mesmo que tenha parecido o contrário em alguns momentos, meu amor por você sempre foi maior do que os problemas que eu tinha com ele. Sempre.
Então, se você estiver disposto a voltar, a nos dar uma chance, a me dar uma chance, eu prometo que estarei aqui para segurar a sua mão, como sempre fiz. Seja qual for o próximo passo, vamos juntos.
E, se o Gustavo for realmente o amor da sua vida, eu vou ajudar você a trazê-lo de volta. Não porque acho que ele merece você, mas porque você merece ser feliz. E isso, Léo, é tudo o que importa.
Com amor,
Seu maninho."
Quando terminei de ler o capítulo escrito pelo Eduardo, minha visão estava embaçada pelas lágrimas que se acumulavam a cada palavra. Era como se ele tivesse arrancado um pedaço de si mesmo e colocado ali, no papel, para que eu pudesse ver o que ele sempre tentou me mostrar, mas que eu nunca enxerguei.
Aquele texto não era apenas um pedido de desculpas ou uma tentativa de reconciliação. Era uma confissão crua, honesta, do amor incondicional que meu irmão sentia por mim, apesar de todos os erros, apesar de todas as brigas. Cada linha parecia pulsar com a dor que ele carregava desde a infância, a mesma dor que ele tentou esconder por tanto tempo, mas que agora estava ali, exposta diante de mim.
Fechei o caderno devagar, como se o ato de fechá-lo fosse um ritual sagrado. Passei as mãos pelo rosto, tentando conter o choro, mas era impossível. O que Eduardo escreveu mexeu comigo de um jeito que eu não sabia explicar. Ele não era apenas meu irmão mais velho. Ele era alguém que, mesmo sem obrigação, escolheu cuidar de mim quando o mundo desabou.
Me levantei, ainda segurando o caderno, e caminhei até a janela. A vista da cidade estava borrada pela chuva fina que caía, e eu senti como se o céu estivesse chorando junto comigo. Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas, mas elas pareciam presas em um nó que apertava minha garganta.
Foi então que, quase sem pensar, peguei o telefone e disquei o número da minha mãe. Fazia tanto tempo que eu não falava com ela assim, de coração aberto. Quando ela atendeu, sua voz era suave, mas cheia de surpresa:
— Léo? Tá tudo bem, filho?
Minha respiração estava pesada, e por um momento, eu não consegui responder. Apenas deixei o silêncio preencher o espaço entre nós, enquanto tentava reunir coragem para dizer o que precisava.
— Mãe… — minha voz finalmente saiu, trêmula. — Eu só queria te dizer que eu te amo muito.
Houve uma pausa do outro lado da linha, e eu quase podia imaginar ela franzindo a testa, tentando entender de onde aquilo vinha.
— Eu também te amo, meu filho. O que aconteceu?
— Muita coisa, mãe. — Suspirei, sentindo um peso esmagador no peito. — Eu sei que me afastei de vocês, que me tranquei no meu mundo, mas... tudo o que eu queria era apoio. Eu só queria que vocês entendessem o quanto tudo isso me machucou.
— Léo, nós… — ela começou, mas eu a interrompi.
— Não, deixa eu falar. Por favor.
Ajustei o telefone no ouvido e encarei a janela, observando as gotas de chuva escorrendo pelo vidro, como se fossem reflexo do que eu sentia por dentro.
— Eu sempre me senti sozinho, sabe? Depois que o Gustavo... Bom, você sabe. – respirei um pouco tentando me concentrar – Foi como se uma parte de mim tivesse sido arrancada. E então, quando tudo com o Gustavo aconteceu... eu só queria ser amado, mãe. Só queria que vocês vissem o quanto eu amava ele e o quanto ele me fazia feliz.
— Léo… — a voz dela parecia embargada agora.
— Eu não estou dizendo que vocês estavam errados, nem quero culpar ninguém. — Minha voz começou a falhar, mas eu continuei. — Só quero que você saiba que, mesmo quando eu estava distante, eu sentia a falta de vocês. Eu sentia sua falta, mãe.
A linha ficou silenciosa por alguns segundos, até que ela respondeu, a voz carregada de emoção:
— Eu também senti sua falta, meu filho. Todos os dias.
Eu fechei os olhos, deixando as lágrimas rolarem sem resistência.
— Eu sei que a gente não pode mudar o passado, mas… eu só queria que você soubesse que, por mais que eu tenha me afastado, eu nunca deixei de te amar. E eu prometo, mãe, que vou tentar ser melhor. Vou tentar estar mais presente.
— Isso é tudo o que eu sempre quis, Léo. — Sua voz era um sussurro agora, mas cheia de sinceridade. — Eu te amo, filho, e sempre vou estar aqui por você.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, mas não era um silêncio pesado. Era um silêncio de compreensão, de reconexão. Quando desliguei, senti como se uma parte de mim tivesse sido aliviada, como se aquela conversa tivesse começado a curar feridas que eu nem sabia que ainda estavam abertas.
Olhei para o caderno em minhas mãos mais uma vez. As palavras do Eduardo ainda ecoavam na minha mente, me incentivando a fazer as pazes com meu passado, com minha família e, principalmente, comigo mesmo. E naquele momento, eu soube que estava pronto para dar o próximo passo.
Depois de desligar o telefone com minha mãe, eu me sentei no sofá da sala com o caderno do Eduardo ainda em minhas mãos. Aquele capítulo que ele escreveu parecia uma lâmina cortando a escuridão em que eu me encontrava. Mesmo com todas as mágoas, ali estava ele, estendendo a mão, prometendo me ajudar a encontrar o Gustavo. Era a primeira fagulha de esperança que eu sentia em tanto tempo, como se, de repente, houvesse uma saída, ainda que incerta, para o labirinto que eu habitava.
Peguei meu celular. Minhas mãos tremiam um pouco enquanto eu digitava a mensagem. Era difícil admitir qualquer coisa, mas depois de ler o que Eduardo escreveu, senti que precisava ser honesto.
“Eduardo, eu li tudo. Sinto muito por tudo o que eu fiz você carregar sozinho. Se você realmente quer me ajudar a encontrar o Gustavo, então eu aceito. Não tenho mais forças para fazer isso sozinho. Obrigado por nunca desistir de mim, mesmo quando eu desisti. Te amo, mano.”
Enviei a mensagem antes que pudesse pensar duas vezes, antes que o medo de ser vulnerável me fizesse apagar cada palavra. Depois de alguns segundos, deixei o celular de lado e fiquei encarando o teto.
Eu me sentia... estranho. Como se a mensagem tivesse aberto uma pequena janela no quarto sufocante em que eu vivia, permitindo que um sopro de ar fresco entrasse. Ao mesmo tempo, havia uma dor latente, um nó no peito que não se desfazia. Era como se esperança e dor coexistissem, duelando dentro de mim.
Minha mente viajou, como sempre fazia, até Gustavo. Imaginei seu sorriso, o som da risada dele, o jeito que ele inclinava a cabeça quando estava pensando em algo importante. Lembrei das noites em que ficávamos acordados conversando sobre qualquer coisa, como se o mundo lá fora não existisse.
Mas então a realidade voltava, e com ela a dúvida corrosiva: onde ele estaria agora? Ele ainda estaria vivo? Precisando de mim? Ou eu estava apenas me agarrando a uma ilusão, incapaz de aceitar que talvez nunca mais o visse?
Eu me levantei, incapaz de ficar parado com tantas emoções me consumindo. Caminhei até a mesa onde estava meu caderno, aquele que uso para as sessões com a doutora Mônica. Por algum motivo, parecia o momento certo para continuar a escrever, para organizar meus pensamentos e tentar dar sentido ao caos que eu sentia.
Abri o caderno e, por um instante, fiquei encarando a página em branco. As palavras demoraram a vir, mas, quando vieram, foi como abrir uma represa.
"Acho que nunca contei direito pra ninguém como foi a minha infância. Sempre achei que algumas coisas eram melhor esquecidas, mas agora entendo que, para seguir em frente, preciso revisitar o que ficou para trás. Então, aqui vai.
Doutora, você sabe que quando eu tinha VI anos, minha vida mudou completamente. Minha mãe conheceu o pai do Gustavo, e, de repente, eu me vi com uma nova família. Eu era apenas uma criança, mas lembro de como me senti deslocado, como se estivesse perdendo algo ao ganhar mais pessoas na minha vida. E então veio o Gustavo. Ele era tudo o que eu não era: confiante, extrovertido, sempre cheio de energia. No início, eu não suportava ele. Não queria dividir minha mãe, não queria dividir nada. Mas o Gustavo... ele tinha um jeito de entrar na vida da gente e ficar. Ele era persistente, sabe? E, antes que eu percebesse, ele era mais do que um irmão. Ele era meu melhor amigo, meu porto seguro.
Mas isso, doutora, foi apenas o começo. Porque, com o tempo, percebi que meu amor por ele era diferente. E foi aí que tudo ficou mais complicado.”
As palavras fluíram sem parar por longos minutos, cada uma trazendo um peso que eu finalmente conseguia tirar dos ombros. Quando terminei, fechei o caderno e o segurei contra o peito.
De alguma forma, escrever parecia dar forma ao caos, transformar a dor em algo tangível, que eu podia ao menos tentar entender. Suspirei profundamente, sentindo o peso do dia, mas também aquela pequena ponta de esperança crescendo dentro de mim.
Eu não sabia o que o futuro reservava, mas, pela primeira vez em muito tempo, não parecia tão impossível.