Parte 6 - Reflexões e decisões.
Após Thais deixar o quarto onde eu estava internado, algo forte e inexplicável começou a tomar conta de mim. Era como se um turbilhão de sentimentos me esmagasse, me deixando à deriva em meus próprios pensamentos. Eu tinha feito algo que nunca imaginei ser capaz. Guiado pela raiva e pelo ressentimento, usei qualquer resquício de sentimento que ela pudesse nutrir por mim — culpa, remorso ou até o desejo de salvar o que restava do nosso relacionamento.
Mas agora, sozinho naquele quarto, eu não conseguia sequer entender o que tinha acabado de acontecer. Pela primeira vez, sentia vergonha de mim mesmo. E olha que já tinha motivos suficientes para isso, segundo muitos. No entanto, até então, eu não sentia vergonha — apenas arrependimento, tristeza, mágoa... mas vergonha? Nunca.
A visita médica, que normalmente ocorria de manhã, só aconteceu no meio da tarde. O Dr. Fabrício, assistente da equipe, percebeu rapidamente que havia algo de errado comigo. Ele foi atencioso, me ouviu e prometeu conversar com a Dra. Juliana, chefe da equipe e responsável pelo ambulatório de traumas relacionados a relacionamentos abusivos.
Agradeci sem muita convicção e, tentando fugir dos meus próprios pensamentos, chequei o celular. Havia duas mensagens do meu advogado sobre assuntos irrelevantes e uma de Thais. Uma mensagem longa, onde ela dizia o quanto estava grata e satisfeita com o que havia acontecido, prometendo que me faria a pessoa mais feliz do mundo dali em diante.
Não respondi. Não sabia como. Apesar do prazer momentâneo, aquilo tinha me corroído por dentro.
Já estava com fome, esperando que a janta fosse servida, quando Dra. Juliana apareceu. Era uma mulher de aparência serena, por volta dos 60 anos, com um olhar que parecia atravessar a alma. Ela me cumprimentou formalmente, fechou a porta do quarto e pediu que eu me sentasse ao seu lado, no pequeno sofá de dois lugares.
A tensão crescia no ar.
— Sérgio, o Dr. Fabrício me contou sobre sua manhã. Podemos conversar?
Engoli em seco, tentando fugir daquela conversa.
— Eu... eu não sei se tenho algo a dizer agora...
Ela segurou minha mão, seu olhar penetrante me prendendo.
— Sérgio, você já me contou mais do que imagina quando nos encontramos no pronto-socorro. Agora é o momento de falar de verdade. Você precisa desabafar.
E foi como se algo em mim rompesse. Desviei o olhar, as lágrimas escorrendo antes que eu pudesse contê-las. Comecei a falar, sem pausas, detalhando tudo o que tinha acontecido com Thais naquela manhã. Minhas palavras saíam aos soluços, e eu não conseguia encará-la. Meu rosto ardia de vergonha.
Ela esperou pacientemente até que eu terminasse e, então, fez um gesto tranquilizador, acariciando meu cabelo.
— Sérgio, você está seguro aqui. Não estou aqui para julgá-lo, mas para ouvir e ajudá-lo a encontrar as respostas que procura.
Aquele gesto simples trouxe um alívio inesperado. Finalmente consegui encará-la de novo.
— O que você sentiu naquele momento com sua esposa? — perguntou, com uma delicadeza que me desarmou.
Respirei fundo, buscando coragem para ser honesto, ao menos comigo mesmo.
— Senti prazer, sim... mas foi momentâneo. O que realmente me dominava era a raiva. O rancor.
Desviei o olhar novamente, minhas mãos apertando os joelhos.
— Só conseguia lembrar da cena daquela madrugada, de como me senti humilhado. E, mesmo assim, não era sobre o prazer ou a satisfação dela. Era algo relacionado com instinto, ou algo assim... e eu odiei o que aquilo me transformou.
Minha voz tremia, meu corpo reagindo à tensão. Levei as mãos aos cabelos, um hábito de ansiedade que conhecia bem.
— Por que você acha que se sentiu tão mal? Ela não merecia? — a pergunta dela veio como um golpe.
Levantei os olhos, surpreso, mas logo voltei a cobrir o rosto com as mãos.
— Não sou uma pessoa má... sempre fui considerado “bonzinho”, e, apesar de odiar o tom debochado com que dizem isso, sempre tive orgulho de ser assim. Mas agora...
Minha voz falhou, e lágrimas caíram de novo.
— Eu errei. Não há outra maneira de dizer isso. Desde o início, eu sabia que algo estava errado, mas preferi ignorar os sinais. Permiti que tudo isso acontecesse, que invadissem minha vida, minha mente, minhas escolhas. Poderia ter saído dessa relação em tantas oportunidades... tantas! Mas me faltou coragem. Me faltou amor próprio.
-Pior ainda, quando tudo desmoronou, a primeira coisa que fiz foi buscar culpados. Apontei o dedo para todos ao meu redor — com alguma razão, talvez — mas nunca olhei para mim mesma. Qual foi a minha parcela nisso? Por que eu nunca revidei? Por que, em todos esses momentos, escolhi a inércia? Permiti que outros guiassem, decidissem, controlassem o que deveria ser só meu. Minha vida pessoal. Meu futuro.
- Agora, olhando para trás, vejo que a culpa não é só deles, nem só minha. É de cada escolha que deixei de fazer. De cada silêncio que gritou mais alto do que qualquer palavra que eu jamais disse.
Essa revelação parecia ter sido arrancada do fundo da minha alma. E com ela, uma sensação avassaladora de clareza.
— Se eu continuar nesse caminho, fazendo coisas que vão contra quem eu sou, só para manter algo que já está quebrado, vou destruir o pouco que resta de mim.
Dra. Juliana esperou que eu terminasse, segurou minha mão e perguntou:
— O que te impede de sair desse relacionamento?
Hesitei, mas encontrei as palavras:
— Eu sei que ela foi cruel comigo. Mas acredito que ela também está perdida. Se meu filho se perdesse após se tornar dependente de alguma substância, e começasse a fazer maldades com nossa família, eu não culparia só ele. Culparia principalmente quem o levou até lá. Com Thais, sinto que não posso simplesmente deixá-la assim.
Juliana assentiu, com um sorriso contido. Ficamos em silêncio por alguns momentos antes de ela dizer:
— E sobre a vingança? Ela é realmente tão importante para você?
Aquela pergunta me pegou desprevenido. Permaneci calado, a resposta presa na garganta. Ela olhou o relógio, deu dois tapinhas nas coxas e se levantou.
— Amanhã você terá alta. Neste momento senão receitarei nenhum medicamento, porém, quero que considere sessões de terapia. E, se quiser, posso indicar alguém para Thais.
Sem esperar minha resposta, ela saiu, me deixando só com meus pensamentos. E ali, no silêncio do quarto, as perguntas dela continuavam ecoando.
Após o jantar, tomei coragem para responder à mensagem de Thais. Fui direto, deixando claro que, naquele momento, a raiva e o ressentimento eram mais fortes do que qualquer outro sentimento. Expliquei que precisava de um tempo para pensar e mencionei o compromisso dela de comparecer à delegacia para realizar o teste de paternidade. Fui honesto ao dizer que o resultado seria anexado ao processo judicial em curso.
Exausto física e emocionalmente, adormeci cedo. As últimas 48 horas haviam sido desgastantes em todos os sentidos.
No dia seguinte, recebi alta e iniciei minha terapia, com sessões duas vezes por semana. Era um passo difícil, mas necessário.
Decisões práticas começaram a tomar forma. Notifiquei judicialmente Sandro, informando sobre a necessidade de ele deixar nossa antiga casa. A notificação incluía a proposta de venda oficial que recebi pelo terreno. Isso ativava uma cláusula no contrato de locação que exigia a saída em caso de proposta formal. Paralelamente, decidi aguardar o relatório do investigador contratado pelo meu advogado antes de tomar qualquer atitude contra o emprego dele.
Quanto à Gabi, optei por não agir imediatamente. A pergunta da Dra. Juliana sobre o valor da vingança ainda ecoava em minha mente. Eu não era alguém capaz de destruir a vida de outra pessoa sem sentir o peso disso, e essa certeza me dava orgulho, não arrependimento.
Laura também ocupava meus pensamentos. Eu não soube mais nada sobre ela, o que me deixava preocupado. Certo dia, acabei encontrando seu noivo por acaso. Ele parecia radiante, animado com a proximidade do casamento, como se não soubesse de nada que pudesse abalar aquela felicidade.
Sobre Mari, noiva de Sandro, tomei uma decisão firme: não iria usá-la como peça em qualquer plano de vingança. A ideia de destruir outra vida por conta do meu rancor era repulsiva. Ainda assim, fiquei dividido. Deveria avisá-la sobre o tipo de homem que Sandro realmente era? Essa dúvida me corroía, mas resolvi deixá-la de lado por enquanto.
Uma semana depois, resolvi que era hora de conversar com Thais. Após algumas sessões de terapia, achei que estava pronto para enfrentá-la e, finalmente, encerrar aquele ciclo.
Quando Thais chegou com Vitinho, percebi que algo havia mudado. O feriado havia acabado, e ela voltara a morar em casa. Dormíamos em quartos separados – ela na suíte principal, e eu no quarto de hóspedes –, mas sua presença ainda era marcante.
Ela estava linda, como sempre. Sua dedicação como mãe e esposa parecia ter se intensificado, o que me confundia ainda mais. Mesmo assim, sabia que precisava ter aquela conversa.
Esperei até meu filho adormecer. Caminhei até a suíte, onde Thais estava. Ela vestia uma camisola curta que a deixava deslumbrante. Era impossível não notar o quanto ela sabia usar sua aparência para mexer comigo. No entanto, eu estava decidido.
Quando entrei, minha expressão séria foi suficiente para mudar a fisionomia dela. O sorriso que estampava seu rosto desapareceu, e, sem dizer nada, ela se sentou na beirada da cama. Fiz o mesmo, respirando fundo antes de começar a falar.
— Thais... eu preciso ser honesto com você. Eu não consigo ignorar a raiva que sinto por tudo o que aconteceu. E, pra ser sincero, acho que vai ser muito difícil voltar a sentir algo bom por você.
Ela me olhou com os olhos marejados, tentando desesperadamente encontrar as palavras certas.
— Por favor, Sérgio... eu sei que errei muito com você. Eu entendo sua raiva. Eu também sinto isso por mim mesma. Mas me dá uma chance. Eu sei que posso te fazer feliz... faço o que você quiser.
Meu olhar se tornou mais firme, minha voz carregava uma seriedade que parecia cortá-la.
— Esse é o problema, Thais. Eu não gostei do que fiz com você naquele hospital.
Ela arregalou os olhos, surpresa. Antes que pudesse responder, continuei:
— Quando vi sua reação por causa daquela privada, percebi o quanto você mudou. Você não é mais a mesma pessoa. Antes, nunca deixaria ninguém te tratar daquele jeito.
Thais desviou o olhar, visivelmente desconcertada. Finalmente tentou responder, com a voz baixa:
— Mas... mas eu gosto. Não daquilo especificamente. Mas do que me fazia sentir. Só que eu perdi o controle, Sérgio. Não coloquei limites, e isso me levou a fazer coisas absurdas com você.
Aproveitei o momento de vulnerabilidade dela, segurei sua mão e falei com a mesma determinação que uso no trabalho.
— Talvez eu seja bonzinho demais. Mas não vou mudar quem eu sou pra me adequar ao que você acha que gosta.
Ela pareceu atordoada com aquelas palavras, como se não soubesse como reagir. Quando abriu a boca para falar, levantei a mão pedindo silêncio.
— Eu quero que você se trate. O ambulatório que a Dra. Juliana mencionou pode te ajudar com os traumas que surgiram desse relacionamento abusivo. Promete que vai fazer esse tratamento, Thais? Cuide de você. Talvez, um dia, a gente consiga tentar de novo. Mas eu não quero que você se prenda a isso, porque eu não vou. Não tem ninguém no meu horizonte agora, mas não vou abrir mão da minha felicidade por você.
Ela começou a chorar, apertando minha mão com mais força.
— Eu prometo, Sérgio. Eu prometo que vou me tratar. Mas, por favor, só te peço uma coisa: podemos sair, de vez em quando? Jantar, ir ao cinema... coisas simples, como amigos. Eu só quero isso. Por favor.
Parei para pensar. Havia clareza no que eu sentia e no que queria para mim, mas ao mesmo tempo, não podia ignorar que nossa ligação era mais forte por causa do Vitinho.
— Tá bom, Thais. Podemos sair, mas com uma condição: você vai às terapias, sem falta. E essas saídas serão como amigos. Nada além disso, sem compromisso de voltar a ser o que éramos.
Ela assentiu, ainda soluçando, e o alívio em sua expressão me fez acreditar que, talvez, isso fosse o melhor para ambos.
Essa dinâmica se tornou mais fácil e suportável depois da confirmação de que Vitinho era meu filho. Eu tentei me abrir para novos relacionamentos nesse período, todos com o conhecimento dela, mas nenhum evoluiu. Thais também conheceu alguém, um homem mais velho que frequentava as terapias em grupo, mas, como no meu caso, também não progrediu.
Com o tempo, tudo parecia se encaminhar. Tivemos alguns momentos de intimidade, sempre dentro dos limites que definimos juntos. Havia respeito agora, algo que nunca tínhamos antes.
Enquanto isso, o casamento da minha irmã, Laura, se aproximava. Mas esse momento de felicidade foi antecedido por uma batalha: pouco depois da conversa que tivemos no hospital, ela tentou tirar a própria vida. Foi um período difícil, mas, com a ajuda da Dra. Juliana e do apoio do noivo, Laura começou a reencontrar o gosto pela vida.
Nós fizemos um novo pacto de união e proteção como irmãos. Desde então, nunca estivemos tão próximos.
Mas, nos dias que antecederam o casamento, Laura passou a não responder às minhas mensagens. Duas noites sem notícias. Meu coração ficou apertado.
O golpe veio quando o noivo dela me ligou.
— Sérgio... Laura desapareceu.
Meu mundo desabou…
Continua…
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