Acordei com o som suave do balanço das ondas. O sol entrava pelas frestas da cortina do quarto, banhando tudo em uma luz dourada que parecia zombar de mim. Era o meu último dia. O dia em que eu finalmente deixaria tudo isso para trás.
Respirei fundo, sentado na cama, tentando organizar meus pensamentos. Ainda havia um peso no meu peito, mas pela primeira vez em quase dois anos, esse peso parecia mais leve. A armação estava feita, e o cerco da polícia era questão de horas.
Levantei-me e olhei ao redor do quarto. Tudo era impecável, como Marc gostava. Os lençóis de seda, o lustre de cristal pendurado no teto, as janelas que ofereciam uma vista infinita do oceano. Esse luxo que, para mim, havia se tornado uma prisão.
Passei a mão pelo cabelo, tentando afastar os pensamentos. Olhei para o relógio no criado-mudo. O ponteiro mal parecia se mover, mas eu sabia que o tempo não parava. Peguei uma camisa leve de linho e uma bermuda e saí do quarto.
O corredor do iate era silencioso, como sempre. Um silêncio opressor. Caminhei até o convés, onde a brisa do mar me atingiu. Respirei fundo, deixando aquele ar salgado invadir meus pulmões. O barco estava à deriva no meio de um céu infinito. Nada além de água e horizonte à vista.
Era perfeito para Marc. Ele adorava o isolamento, o controle absoluto que tinha sobre mim ali. Mas isso acabaria hoje.
Desci até a cozinha, onde Marc já estava sentado na mesa do café da manhã. Ele usava um roupão branco, os cabelos levemente bagunçados, e parecia mais relaxado do que nos últimos dias. Sua expressão de satisfação me incomodava profundamente, mas eu mantive minha fachada.
– Bom dia – disse ele, sem nem olhar para mim, enquanto pegava uma xícara de café.
– Bom dia – respondi, me sentando à mesa.
A comida estava disposta com perfeição. Frutas frescas, pães, queijos e sucos de cores vibrantes. Tudo que Marc gostava. Eu me servi mecanicamente, sem realmente sentir o sabor de nada.
Marc olhou para mim por cima da xícara, seus olhos analisando cada movimento meu.
– Você parece mais tranquilo hoje – comentou, com um sorriso de canto.
– Só estou tentando aproveitar o dia – respondi, evitando seu olhar.
Ele colocou a xícara na mesa e inclinou-se em minha direção, seus dedos tocando levemente minha mão. Um gesto que, tempos atrás, teria me feito estremecer. Agora, só me enchia de nojo.
– Você sabe que eu faria qualquer coisa por você, não sabe? – ele perguntou, sua voz suave, quase sedutora.
Assenti, porque era o que ele queria ouvir.
Marc sorriu e se levantou, vindo para o meu lado. Ele parou atrás de mim, suas mãos pousando nos meus ombros. O toque era firme, possessivo, como sempre.
– Você é meu presente mais precioso, Yago – ele murmurou, seus lábios próximos ao meu ouvido. – E eu não vou deixar nada nem ninguém nos separar.
Minha garganta apertou, mas eu me forcei a sorrir, como se aquelas palavras não me causassem repulsa.
Ele começou a acariciar meus ombros, as mãos descendo pelos meus braços.
– Por que não subimos para o quarto? – sugeriu ele, sua voz agora cheia de malícia.
Eu sabia que não podia recusar. Não hoje. Seria a última vez.
Levantei-me e deixei que ele me guiasse pelo corredor até o quarto. O silêncio era opressor, e o som de nossos passos ecoava pelo espaço vazio.
Marc puxou minha mão enquanto caminhávamos para o quarto, seu toque firme, quase doloroso. Eu sabia o que ele queria. Já sabia pelo jeito como ele me olhou no café da manhã, pelo modo como ele sempre exigia mais de mim quando as coisas pareciam tranquilas. No fundo, Marc não sabia viver sem o controle.
O quarto era espaçoso, luxuoso, mas parecia menor a cada dia que eu passava ali. As paredes pareciam se fechar ao nosso redor. Ele fechou a porta atrás de si, e o clique do trinco soou como uma sentença.
Marc se aproximou lentamente, os olhos fixos nos meus. Ele não precisava dizer nada; seus olhos já falavam por si. Ele me queria. E ele sabia que me teria. Sempre sabia.
Ele colocou as mãos no meu rosto, seus polegares acariciando minha pele com um cuidado que eu sabia ser falso. Inclinei-me para o beijo que ele esperava, porque era isso que eu fazia. Era isso que ele exigia de mim.
Quando nossos lábios se tocaram, senti o gosto amargo de controle. Não era o gosto de paixão ou desejo, mas de uma posse que me fazia encolher por dentro. Ele aprofundou o beijo, sua língua explorando a minha, enquanto suas mãos começavam a descer pelo meu corpo.
Eu tentei me desconectar, tentei imaginar que não era comigo. Pensei no mar, no som das ondas, em qualquer coisa que me afastasse do que estava acontecendo naquele momento. Mas a realidade era implacável, e cada toque dele me trazia de volta ao agora.
Ele me empurrou levemente para a cama, seu corpo sobre o meu, e começou a tirar minha camisa. Seus olhos brilhavam de excitação, como se ele estivesse diante de algo precioso que só ele podia ter.
– Você é meu, Yago – ele sussurrou, a voz grave. – Sempre foi, sempre será.
Essas palavras me enojavam. Eu queria gritar, queria empurrá-lo, mas em vez disso, forcei um sorriso e deixei que ele acreditasse. Deixei que ele pensasse que tinha o controle.
Marc beijava meu pescoço, seus lábios explorando cada centímetro de pele. Sua respiração era pesada, urgente, enquanto suas mãos percorriam meu corpo, como se quisesse mapear cada detalhe. Para ele, eu era uma posse, uma conquista.
Enquanto ele me tocava, meu estômago revirava. A repulsa crescia dentro de mim a cada gesto, a cada movimento. Eu estava ali, fisicamente, mas minha mente estava longe. Eu imaginava o momento em que isso tudo acabaria, o momento em que eu finalmente estaria livre.
Marc estava cada vez mais envolvido, o prazer dele evidente em cada gesto, em cada som. Ele parecia absorto, cego pelo desejo. E, por um instante, isso me deu poder. Porque, enquanto ele se perdia naquele prazer, eu continuava alerta, planejando, esperando pelo momento certo.
Eu fechei os olhos, tentando ignorar a sensação do peso dele sobre mim, o toque de suas mãos, a voz que sussurrava palavras que deveriam ser de amor, mas que para mim soavam como correntes.
Quando tudo acabou, Marc caiu ao meu lado na cama, exausto e satisfeito. Ele passou a mão pelo meu rosto, um sorriso preguiçoso nos lábios.
– Você é perfeito, Yago – ele disse, a voz baixa, quase sonolenta.
Eu me forcei a sorrir, mas por dentro, eu gritava.
Ele adormeceu rapidamente, e eu fiquei ali, imóvel, olhando para o teto. A repulsa ainda estava comigo, mas agora havia algo mais. Uma determinação que crescia a cada segundo. Esse era o fim. Ele não sabia, mas já havia perdido.
Levantei-me da cama com cuidado, vestindo minhas roupas rapidamente. Saí do quarto sem olhar para trás, o som da respiração de Marc ainda ecoando nos meus ouvidos. O ar fresco do convés me atingiu como uma onda de alívio.
Eu me levantei da cama com cuidado, segurando a respiração enquanto observava Marc adormecido. Seu peito subia e descia lentamente, e pela primeira vez em muito tempo, ele parecia vulnerável. Aproveitei o momento, saindo do quarto em passos leves, evitando qualquer ruído que pudesse acordá-lo.
Cheguei ao pequeno escritório do iate, um espaço que Marc raramente usava. Eu sabia exatamente onde estava o celular que eu escondia. Abri a gaveta superior com mãos trêmulas, os olhos já fixos onde deveria estar.
Vazia.
Minha mente começou a correr. Eu tinha certeza de que o celular estava ali. Tinha checado isso mais cedo. Eu revirei os papéis na gaveta, empurrei os objetos para o lado, tentando controlar a respiração. Abri outra gaveta, depois mais uma, e meu nervosismo crescia a cada segundo.
De repente, uma voz baixa, perigosa, quebrou o silêncio:
– O que você está procurando, meu amor?
Meu corpo congelou. A voz vinha de trás de mim. Eu não precisava me virar para saber quem era.
– Está procurando isso? – Marc continuou.
Me virei devagar, o coração disparado. Marc estava parado na porta do escritório, segurando o celular na mão. Ele o girava entre os dedos, o olhar fixo em mim, os olhos brilhando com algo entre diversão e fúria.
Minha garganta secou, e as palavras não saíam. Lágrimas começaram a brotar nos meus olhos, porque eu sabia. Ele sabia.
– Eu confiei em você, Yago – ele começou, a voz baixa, mas carregada de ameaça. – Eu te dei tudo. Eu te salvei. E é assim que você retribui?
Ele deu um passo à frente, o celular ainda na mão, e eu recuei instintivamente, minhas costas batendo na mesa.
– Você achou mesmo que eu não iria descobrir? – Marc continuou, inclinando a cabeça levemente, como se estivesse genuinamente curioso. – Que eu não perceberia que você andava agindo diferente? Você é bom, Yago, eu admito. Mas eu sou melhor.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto agora, e eu mal conseguia respirar.
– Marc, por favor... – minha voz saiu fraca, trêmula.
Ele riu, mas não era um som de alegria. Era frio, vazio, e fez meu estômago revirar.
– Por favor? Você está me pedindo por favor agora? Depois de tudo que eu fiz por você? Eu te dei um lar, te dei segurança, te dei... tudo. E você me traiu.
Ele deu mais um passo à frente, e eu vi a mudança em seu rosto. O sorriso desapareceu, substituído por algo sombrio, quase insano.
– Sabe, eu realmente acreditava que você era diferente – ele disse, a voz ficando mais intensa. – Que você era meu. Mas parece que até você pode ser como todo o resto.
Eu balancei a cabeça, tentando me explicar, mas ele não parava.
– Você acha que pode fugir de mim, Yago? – ele continuou, agora quase gritando. – Você acha que existe um lugar no mundo onde eu não vou te encontrar?
Ele jogou o celular na mesa com força, os olhos queimando de raiva.
– Eu te amo, Yago. Eu te amo mais do que você jamais vai entender. Mas o amor tem limites. E você acabou de ultrapassar o meu.
Eu sentia as pernas tremendo, meu corpo inteiro em pânico, mas eu sabia que precisava manter a calma. Ele era perigoso, e eu precisava sair vivo dali.
– Marc... eu... eu só queria ajudar minha mãe – eu disse, tentando encontrar qualquer justificativa que pudesse acalmá-lo.
– Sua mãe? – ele riu novamente, dessa vez ainda mais alto. – Ah, claro. Sempre a desculpa da mamãe. Sabe o que é engraçado, Yago? Eu teria feito qualquer coisa por você. Qualquer coisa. Mas você preferiu me trair.
Ele estava tão perto agora que eu podia sentir sua respiração no meu rosto.
– E sabe o que acontece com quem me trai? – ele sussurrou, os olhos fixos nos meus.
Eu não sabia o que responder. Não sabia o que fazer. Tudo o que eu sabia era que precisava sair dali antes que fosse tarde demais.
Marc ficou imóvel por um momento, mas só o suficiente para me enganar. Quando menos esperava, ele avançou, me agarrando pelos ombros com força. Seus dedos se cravaram em mim, e o choque de sua agressividade me fez perder o equilíbrio, caindo para trás.
– Você não vai a lugar nenhum, Yago! – ele rugiu, segurando-me com tanta força que senti os músculos da minha clavícula protestarem.
Tentei me soltar, mas Marc me jogou contra a parede do escritório, a dor irradiando pelo meu corpo. Sua expressão era um misto de ódio e decepção, e sua força parecia inesgotável.
– Você acha que pode me enganar? Acha que pode fugir de mim? – ele gritou, as palavras carregadas de raiva.
Com todas as forças que eu tinha, empurrei seu peito, tentando criar uma distância mínima entre nós. Aproveitei sua breve hesitação e corri, tropeçando nos móveis enquanto ele me perseguia. O som de seus passos ecoava como um aviso de que não havia como escapar.
Subi as escadas do iate o mais rápido que pude, meu coração martelando no peito. Sabia exatamente para onde ir. A cozinha. Era minha única chance.
Com as mãos trêmulas, abri o armário acima da pia e puxei a arma que havia escondido ali semanas atrás. Meu plano inicial era apenas usá-la como um último recurso, mas agora ela parecia a única maneira de sair vivo daquela situação.
Escondi a arma atrás da cintura e saí correndo para a área externa do iate. O mar parecia infinito, e o som das ondas só fazia minha ansiedade aumentar. Olhei para o horizonte, na esperança de ver algum sinal da polícia. Nada.
Marc apareceu logo atrás de mim, os olhos flamejando. Ele não parecia mais humano. Era como um animal ferido, desesperado para destruir tudo ao seu redor.
– Você não vai escapar, Yago! – ele gritou, avançando mais uma vez.
– Fique longe de mim! – eu gritei de volta, minha voz embargada pelo medo.
Marc parou por um momento, respirando pesadamente. Então, sua expressão mudou. Ele sorriu, mas não era um sorriso de afeto. Era cruel, carregado de desprezo.
– Olha só pra você. Tão fraco, tão patético. Eu te dei tudo, Yago. E você me traiu. Por quê? Por causa da sua mãe? – Ele riu amargamente. – Ela nem vai sobreviver de qualquer jeito.
Suas palavras me atingiram como um soco no estômago.
– Você é um psicopata, Marc – eu disse, minha voz finalmente encontrando firmeza. – Você destruiu minha vida, me prendeu aqui, me fez passar por coisas que ninguém deveria passar. Eu tenho nojo de você.
Ele riu de novo, mas sua risada foi cortada pelo som distante de sirenes. Meu coração deu um salto. Eles estavam chegando.
Marc também ouviu. Sua expressão endureceu, e ele começou a se aproximar de mim lentamente.
– Se eu for preso, você também será – ele disse, a voz carregada de ameaça. – Não há escapatória pra você, Yago.
Ele avançou de repente, e eu não tive escolha. Puxei a arma da cintura e apontei para ele.
– Fique longe de mim! – gritei, a voz tremendo.
Marc parou, olhando para mim com uma mistura de surpresa e desprezo.
– Você não vai fazer isso – ele disse, um sorriso frio se formando em seus lábios. – Você não tem coragem.
– Você não sabe do que eu sou capaz – respondi, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
As sirenes estavam cada vez mais próximas, o som invadindo o espaço entre nós. Marc olhou para o horizonte e viu as luzes piscando. Seu rosto se contorceu de raiva.
– Se você acha que vai me entregar, está muito enganado – ele rosnou, avançando de novo.
Sem pensar, meus dedos apertaram o gatilho. O som do tiro ecoou pelo ar, seguido de outro logo em seguida. Marc cambaleou para trás, a expressão de surpresa estampada no rosto enquanto ele caía no chão.
O silêncio tomou conta do ambiente, interrompido apenas pelo som das sirenes se aproximando e das ondas quebrando contra o casco do iate.
A última coisa que eu esperava era ver Marc caído, os olhos arregalados de surpresa, e o sangue manchando o chão do iate. Meu coração martelava no peito, não de medo, mas de alívio. Um alívio tão profundo que era quase insuportável. Ele jamais imaginou que eu faria isso. Nem eu imaginava.
"Eu não aguentava mais, Marc," pensei, os lábios tremendo enquanto eu olhava para ele. "Você tomou tudo de mim. Minha liberdade, minha paz, minha dignidade... Você me transformou em alguém que eu mal reconheço."
Os segundos se arrastavam enquanto eu o observava ali, deitado, os olhos fixos em mim. Vi seus lábios se moverem, lentamente, formando palavras que saíram fracas, quase inaudíveis.
– Eu realmente... te amei mais do que tudo – ele sussurrou, antes que seus olhos finalmente se fechassem.
O peso de suas palavras me atingiu como um golpe. Aquelas palavras eram uma ironia cruel, um último jogo de poder. Como ele ousava falar de amor depois de tudo que fez?
Fiquei ali, parado, encarando o corpo de Marc. O sangue ainda escorria, se misturando com o brilho do piso polido do iate. Eu devia sentir nojo, pavor, arrependimento. Mas, naquele momento, tudo que senti foi liberdade.
"Finalmente acabou," pensei, quase como uma prece. "Eu não vou mais ter que fingir, não vou mais ter que me submeter. Eu não vou mais ser o prisioneiro de ninguém."
As lembranças dos últimos dois anos passaram pela minha mente como flashes: os toques que eu odiava, os beijos forçados, as palavras doces que escondiam ameaças. Tudo isso estava enterrado agora, junto com Marc.
Meus joelhos cederam, e eu caí no chão ao lado do corpo dele. As lágrimas vieram, quentes e salgadas, mas não eram de tristeza. Eram de um alívio tão avassalador que meu corpo parecia incapaz de suportar.
"Eu sou livre," pensei, repetindo essas palavras como um mantra. Olhei para o rosto de Marc pela última vez. Ele parecia em paz agora, algo que ele nunca me deu.
Ouvi o som das sirenes se aproximando. Sabia que a polícia estava quase aqui. Sabia que minha vida ainda seria complicada, que haveria perguntas, julgamentos, talvez até condenações. Mas, pela primeira vez em muito tempo, não sentia medo.
Eu era livre. E isso, naquele momento, era tudo o que importava.