A noite parecia interminável. Gustavo estava deitado no meu quarto, apagado, o corpo frágil, entregue ao cansaço e aos resquícios de tudo que o destruiu. Tinha um balde ao lado da cama, porque ele não parava de vomitar, um jorro atrás do outro, como se o corpo dele tentasse expulsar tudo que o sufocava. Ele gemia baixo entre um intervalo e outro, às vezes tremendo, às vezes tão imóvel que me fazia prender a respiração, com medo de que ele não voltasse a respirar.
Eu não dormi. Não podia. Cada vez que ele tossia ou gemia, eu estava ali, passando uma toalha fria na testa dele, segurando a mão dele, tentando lembrar a mim mesmo que eu estava fazendo o que podia. Que dessa vez ele estava em casa, e isso já era um começo.
Na sala, a madrugada se desenrolava em silêncio. O abajur era a única luz acesa, lançando sombras suaves pelas paredes. Eduardo estava sentado no sofá, os braços cruzados, o olhar fixo em mim.
— Léo, isso não pode continuar assim. Ele precisa de ajuda profissional. Nós precisamos internar ele.
— Ele não vai sair daqui — eu disse, a voz baixa, mas firme. — Não vou confiar o Gustavo a ninguém dessa vez.
Eduardo bufou, balançando a cabeça.
— Léo, você não tem condições de lidar com isso sozinho. Isso é maior do que você.
— Eu sei que é maior do que eu, Eduardo! — respondi, quase sem me conter. — Mas eu também sei que ninguém vai cuidar dele como eu. Ninguém vai amar ele como eu. Eu vou resolver isso. Aqui.
Eduardo me encarou, incrédulo.
— Você tá ouvindo o que tá dizendo? Isso não é amor, Léo. Isso é obsessão. Você não tem como salvar ele sozinho!
— E quem tem, Eduardo? As clínicas que a gente tentou antes? As pessoas que só queriam enfiar remédio nele e fingir que tava tudo bem? Não deu certo antes, não vai dar agora.
Eduardo se levantou, exasperado.
— E qual é o seu plano, então? Vai fazer o quê? Amarrar ele aqui dentro e esperar que ele melhore?
Por um momento, não respondi. O silêncio caiu como um peso entre nós, até que meus olhos desviaram para a mesa. Lá estava, o par de algemas que eu tinha comprado mais cedo, por desespero ou por falta de opção, nem eu sabia dizer.
— Se for preciso, sim — eu disse, encarando Eduardo.
O choque no rosto dele foi quase palpável, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ouvimos o som de passos lentos no corredor. Quando me virei, Gustavo estava ali, parado, a camisa larga pendendo no corpo magro, os olhos inchados, sem brilho.
Ele não disse nada. Apenas caminhou até a mesa, pegou as algemas, e, sem hesitar, colocou uma no próprio pulso, deixando o outro lado solto. Ele olhou para mim, os olhos marejados, e empurrou o braço na minha direção.
— Me prende, Léo. Faz o que você quiser. Eu não aguento mais isso.
A voz dele era baixa, rouca, mas cada palavra parecia um golpe no meu peito. Antes que eu pudesse reagir, ele caiu de joelhos, o corpo sacudindo com o choro.
— Eu não quero mais isso, Léo. Não quero voltar pra rua. Eu dormi no chão, com ratos passando por mim. Passei fome, frio... Eu pensei em acabar com tudo tantas vezes. Mas cada vez que eu estava prestes a fazer isso, eu pensava em você. E só isso me impediu.
Eu fiquei ali, paralisado, enquanto ele soluçava, cada palavra dele me esmagando. Era como se ele estivesse se culpando por tudo, como se eu tivesse falhado com ele, mesmo que eu soubesse, no fundo, que a culpa não era minha.
Mas naquele momento, nada disso importava. Ele estava ali, pedindo ajuda, e eu era a única pessoa no mundo que ele confiava para isso.
Me ajoelhei na frente dele, puxando ele para os meus braços, enquanto ele chorava contra o meu peito.
— Você não vai passar por isso de novo, Gustavo. Eu prometo. Eu vou cuidar de você. Dessa vez vai ser diferente. Eu vou te trazer de volta. Nós vamos sair dessa juntos. Eu juro.
Gustavo tremia nos meus braços, o corpo dele parecia frágil, como se pudesse se desmanchar a qualquer momento. Ele soluçava tanto que mal conseguia falar, mas, entre um suspiro e outro, as palavras começaram a sair, atropeladas, carregadas de dor.
— Léo... eu pensei em você todos os dias... — a voz dele estava embargada, entrecortada pelos soluços. Ele levantou o rosto, os olhos vermelhos e inchados me encarando, e continuou: — Eu sei que eu te decepcionei. Sei que eu te fiz sofrer... e isso... — ele parou, tentando recuperar o fôlego — isso me destrói por dentro.
As lágrimas escorriam sem controle pelo rosto dele, pingando no chão. Ele levou as mãos ao rosto, como se quisesse esconder o que sentia, mas logo deixou os braços caírem, derrotado.
— Eu... eu sinto tanta vergonha, Léo. Eu não sei como cheguei aqui... como me tornei isso. Prometi tantas coisas pra você. Prometi que seria melhor, que te protegeria, que te faria feliz. Mas... — ele soltou uma risada amarga, cheia de dor. — Eu fui fraco.
Gustavo olhou para as mãos, como se estivesse tentando encontrar algo que explicasse a própria ruína.
— Eu perdi tudo, perdi a mim mesmo, mas o pior de tudo foi ter perdido você. Eu me deixei afundar, me deixei ser consumido, e o que mais me dói... não é nem o que eu me tornei. — Ele olhou para mim novamente, com os olhos desesperados. — É o que eu fiz com você. Eu sei que você sofreu, Léo. Sei que você chorou por minha causa. E isso... isso eu nunca vou me perdoar.
As palavras dele me atingiram como facas. Eu queria gritar, dizer que ele não tinha que carregar essa culpa sozinho, mas ele não parava.
— Eu pensava em você todas as noites, sabia? Mesmo nos momentos em que eu estava perdido... quando eu achava que não tinha mais volta... você era a única coisa que me mantinha vivo. Mas, ao mesmo tempo, pensar em você era um castigo. Porque eu sabia que não merecia mais você.
Ele caiu de joelhos, o rosto enterrado nas mãos.
— Me perdoa, Léo... não por mim, porque eu não mereço o seu perdão. Mas porque eu não consigo viver sabendo que eu fui a causa da sua dor. Eu não ligo mais se eu morrer amanhã, se eu continuar nessa merda... — ele fez um gesto vago, apontando para si mesmo — mas eu não suporto saber que eu te machuquei.
Meu peito parecia que ia explodir. Eu me abaixei na frente dele, segurando o rosto dele entre as mãos.
— Gustavo, olha pra mim! — minha voz saiu firme, mas embargada. — Eu estou aqui. Eu nunca fui embora, e nunca vou. Você não precisa carregar isso sozinho.
Os olhos dele, tão cheios de culpa e sofrimento, encontraram os meus.
— Você não entende, Léo... eu não quero que você fique comigo por obrigação. Eu não quero ser um peso na sua vida.
— Você nunca foi um peso, Gustavo! — Eu o puxei para mais perto, abraçando-o com força. — Você é tudo pra mim. Não importa o que aconteceu, não importa onde você esteve... você sempre será o meu Gustavo.
Ele desabou nos meus braços, chorando como uma criança perdida.
— Eu vou te ajudar, Gustavo. Nós vamos sair disso juntos. E dessa vez... eu não vou deixar você desistir. Nem de você, nem de nós. — Apertei o abraço, sentindo o coração dele batendo contra o meu.
Gustavo tentou falar algo, mas o choro era mais forte. E, naquele momento, percebi que não importava o quão profundo ele tinha caído, eu estaria lá para levantá-lo. Porque, apesar de tudo, o amor que eu sentia por ele era maior do que qualquer cicatriz.
Eduardo estava parado ao lado da porta, os braços cruzados sobre o peito, encarando a cena com uma expressão indecifrável. Eu sabia que ele estava segurando cada palavra que queria dizer, tentando evitar uma explosão. O jeito que ele apertava a mandíbula denunciava a tensão em sua mente, e o olhar duro deixava claro que ele não aprovava nada do que estava acontecendo. Mas, naquele momento, a opinião dele era a última coisa na qual eu podia me concentrar.
Gustavo estava mole nos meus braços, esgotado de tanto chorar. O peso dele não era apenas físico; ele carregava uma dor tão imensa que parecia estar me esmagando junto.
— Eduardo, você pode me ajudar? — perguntei, tentando soar calmo, mas minha voz ainda estava carregada de emoção. Ele hesitou por um segundo, mas logo deu um passo à frente, ajudando-me a levar Gustavo para o banheiro.
O banheiro estava iluminado apenas pela luz amarelada do abajur do corredor que entrava pela porta entreaberta. Coloquei Gustavo sentado na borda da banheira e abri o chuveiro, ajustando a temperatura da água. Ele parecia perdido, como se não estivesse completamente presente.
— Vai ficar tudo bem, Gustavo, eu prometo. — Minha voz era baixa, quase um sussurro. Comecei a tirar a camisa dele, movendo-me com cuidado, como se ele pudesse quebrar a qualquer momento.
A água morna começou a escorrer por seu corpo enquanto eu esfregava gentilmente seus braços e costas com uma esponja. Era um processo quase ritualístico, como se eu estivesse lavando mais do que a sujeira física — como se estivesse tentando arrancar a dor e o desespero que o envolviam.
— Você precisa confiar em mim, Gustavo. Eu estou aqui. — Meus olhos ardiam, mas eu não podia me permitir chorar. Ele precisava de mim forte agora.
Depois de lavar seu corpo, comecei a fazer a barba dele. As mãos tremiam enquanto eu deslizava a lâmina pelo rosto barbado. Quando terminei, Gustavo parecia um pouco mais como o garoto que eu conheci, mas seus olhos ainda estavam distantes.
Depois de vesti-lo com uma camiseta limpa e confortável, levei-o até o quarto. Ele se sentou na cama, os ombros caídos, o olhar vazio fixo no chão.
— Eu vou preparar algo pra você comer, tá? Não se mexa. — Dei um leve aperto em seu ombro, mas ele não respondeu.
Fui para a cozinha e comecei a preparar uma sopa, algo leve que ele conseguiria engolir. Enquanto mexia o caldo no fogão, minha mente estava em tumulto. Lembrei-me das vezes anteriores... das promessas quebradas, das recaídas. Mas algo estava diferente dessa vez. O desespero nos olhos de Gustavo era maior do que eu jamais tinha visto.
Quando voltei ao quarto com a tigela de sopa em mãos, parei na porta, meu coração afundando ao ver o que ele havia feito. Gustavo estava algemado à cabeceira da cama. As algemas que eu havia comprado, temendo o pior, agora estavam presas ao pulso dele.
— Gustavo... — Minha voz saiu quase como um sussurro, cheia de tristeza.
Ele levantou os olhos para mim, lágrimas escorrendo novamente.
— Léo... eu não confio em mim mesmo. Quando a abstinência começa, é como se eu não fosse mais eu. Eu faço qualquer coisa... eu machuco quem eu amo, só pra conseguir... — Ele olhou para o chão, a voz falhando. — Isso vai me impedir.
Meu peito apertou como se uma mão invisível estivesse esmagando meu coração. Eu me aproximei, coloquei a tigela na mesa de cabeceira e me sentei ao lado dele na cama.
— Você não vai passar por isso sozinho. — Peguei a colher, enchendo-a com a sopa e levando até a boca dele. Ele hesitou, mas acabou aceitando.
Gustavo começou a tremer, os espasmos tomando conta de seu corpo. Uma febre alta fazia sua pele arder, e ele transpirava profusamente.
— Está começando... — ele sussurrou, a voz fraca.
Eu sabia o que viria. Tremores violentos, dores insuportáveis, alucinações... A desintoxicação seria um inferno.
— Estou aqui, Gustavo. Estou com você. — Continuei alimentando-o, mesmo quando ele mal conseguia engolir.
A noite seria longa, e a batalha apenas começava, mas naquele momento, ao vê-lo tão vulnerável, eu soube que não importava o que viesse pela frente, eu faria qualquer coisa para salvá-lo. Porque ele era o meu mundo, e eu não ia desistir.
Depois que Gustavo finalmente terminou a sopa, o silêncio se instalou no quarto. O som de sua respiração irregular era a única coisa que ecoava pelo espaço. Ele estava deitado ao meu lado na cama, a febre ainda alta, sua pele queimando sob os lençóis. Eu podia sentir o calor irradiando dele, mas mesmo assim, ele parecia tão frágil, tão pequeno.
Estávamos encarando o teto, lado a lado, como se aquilo fosse a única coisa que ainda podíamos controlar. Nenhum de nós falava, talvez porque as palavras não fossem suficientes para traduzir o que estávamos sentindo.
De repente, Gustavo virou a cabeça levemente em minha direção, a voz fraca, mas cheia de algo que parecia ser gratidão genuína.
— Obrigado, Léo... por não desistir de mim.
Meu peito apertou ao ouvir aquilo. Eu queria responder que nunca seria capaz de desistir, mas minha garganta estava tão apertada que tudo que consegui fazer foi segurar a mão dele, suada e quente, entre a minha.
— Gustavo... você se lembra de quando éramos adolescentes? Depois do acampamento, quando tudo desmoronou? Quando seu pai descobriu sobre nós?
Ele fechou os olhos, suspirando profundamente, como se aquela memória o atingisse com força.
— Claro que eu lembro... Fugimos pra casa da minha avó. — Ele deu uma risada fraca, que mais parecia um soluço. — Ficamos lá escondidos como dois fugitivos...
Eu sorri levemente, mesmo que fosse doloroso lembrar de tudo que havíamos enfrentado.
— E naquela noite... enquanto estávamos deitados no quintal, olhando as estrelas... você lembra o que aconteceu?
Gustavo abriu os olhos, voltando a encarar o teto. Um brilho nostálgico e triste apareceu em seu olhar.
— Lembro. Uma estrela cadente passou... e a gente fez um pedido. — Ele fez uma pausa, como se estivesse se forçando a continuar. — Foi naquela noite que decidimos... que íamos nos casar. Só nós dois... e a estrela como testemunha.
Minha garganta ficou ainda mais apertada, mas consegui soltar um pequeno riso, embora meus olhos ardessem com lágrimas contidas.
— E você lembra o que prometemos naquele dia?
Ele virou o rosto para mim, seus olhos cansados, mas sinceros.
— Prometemos que íamos ficar juntos... na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. — A voz dele falhou, mas ele continuou: — Mesmo sem padre, mesmo sem cerimônia.
Assenti, apertando ainda mais a mão dele.
— Exatamente, Gustavo. E eu nunca esqueci daquela promessa. — Minha voz saiu baixa, mas firme. — Não importa o que aconteça, não importa o quão fundo você tenha caído... Eu prometi estar com você. Na saúde e na doença. E eu vou cumprir.
Gustavo fechou os olhos novamente, uma lágrima escorrendo lentamente por sua têmpora. Ele não disse mais nada, mas seu aperto em minha mão se tornou mais forte, como se estivesse se agarrando à única coisa que ainda fazia sentido para ele.
Naquele momento, deitados lado a lado, sob a luz fraca do abajur, éramos apenas dois garotos novamente. Dois garotos que, apesar de tudo, ainda acreditavam que podiam encontrar seu lugar sob as estrelas.
Xxxx-xxxx
Como esse capítulo foi mais curto, se bater 30 curtidas até o fim da tarde eu coloco outro hoje a noite ♥️