Alethea continuava gelada e pálida como uma boneca de porcelana, imóvel, olhos abertos e com pupilas dilatadas. Eu poderia jurar que ela estava morta, mas Anthea me assegurou que não, que as Adrastheanas tinham um metabolismo diferente, e que a minha presença junto a ela era essencial para que ela pudesse ter alguma chance de se recuperar.
Eu estava apavorado para dizer o mínimo. As horas foram passando , e nada acontecia. O lento gotejar do frasco de soro aumentava minha angústia. Eu não podia fazer nada além de ficar abraçado a ela, e olhar aquelas gotas que pareciam fazer força para descer me deixava extremamente tenso.
- Tenha calma, Roberto. A sua força de vontade é muito importante para que tuo dê certo.
- E se não der, Anthea?
Arthur havia saído para buscar mais alguns medicamentos. Potássio , magnésio, cálcio, acho. Ele calculou cuidadosamente as quantidades a serem adicionadas ao frasco de soro.
- Com o decorrer dos anos, aprendi as diferenças entre os nossos organismos e os delas. Mas há alguns elementos que só existem do outro lado, ou no sangue das Adrastheanas.
- E uma transfusão do sangue de Anthea não ajudaria?
- O sangue dela não é compatível com o de Alethea. São tipos diferentes.
- E uma hemodiálise para tentar tirar o veneno?
- Já vi que você deve ter lido alguma coisa a respeito. O problema é que ela está fraca demais, e seria impossível levá-la a uma máquina de diálise no nosso plano.
- Entendi. Então vou ficar aqui mesmo.
- Embora não pareça, a sua energia está lentamente passando para ela, é uma transfusão energética. Em uma situação normal, haveria uma troca, a energia dela passaria para você e vice-versa. Neste caso, está fluindo do seu corpo etérico para o dela.
- Não estou sentindo nada, deveria sentir?
- Ainda não. Mas, se der certo, irá sentir algo diferente.
Eu estava muito ansioso. Resolvi conversar com Anthea sobre a carta.
- Anthea... como é que seria realizado o tal sacrifício após a noite de núpcias?
- Você não precisa saber, Roberto, já que não vai acontecer.
- Mas, na carta de Alethea, ela disse que uma Deusa me contatou através dela. Você não leu?
- Não, estava em seu nome.
Peguei o papel e entreguei a ela.
- Pode ler, preciso entender melhor tudo isso.
Anthea leu a carta e, como eu, ficou visivelmente emocionada. As lágrimas escorriam pelo seu belo rosto.
- Minha Deusa... eu nunca poderia imaginar! Quando você disse que ela era seu destino, você já estava sendo guiado por Adrasthea!
- É muito difícil de acreditar. Falei por impulso, eu não pensava...
- Não. A Deusa já sabia o que iria acontecer. E fez com que se encontrassem. De outra forma, como você a teria encontrado desta última vez?
- Coincidência?
- Em uma cidade grande como esta?
- Vamos supor então que seja mesmo verdade. O que a Deusa iria querer comigo, um humano comum, sem nenhuma habilidade especial?
- Se a Deusa escolheu você, deve ter seus motivos. E, para ter ressurgido justo agora, certamente está recuperando sua essência e irá batalhar contra Khlûl-Hloo, salvando nosso mundo.
- Anthea...eu não sou ninguém. Sério.
- “ O que passou já se foi, o que está por vir é incerto, o que temos é o agora”. Então, Roberto, vamos nos concentrar no agora.
- Tudo bem, mas você não me falou sobre o sacrifício.
- Quer mesmo saber? As Sacerdotisas, ao ver que a entidade cósmica se alimentava dos corpos e da essência vital das pessoas, resolveram criar uma fantasia. Casthia, a Alta Sacerdotisa, pensando em preservar as mulheres, criou todo um processo ritualístico em que a noite de núpcias do casal ocorreria no Templo, visto que a união entre dois seres seria sagrada, e no dia seguinte, o consorte levado ao local onde aconteceria sua ida para a “dimensão cósmica”, “um mundo melhor”.
- E as pessoas caíram nessa? Olha, Anthea, é difícil acreditar.
- Entenda que nosso mundo enfrentava o caos após o desaparecimento da Deusa. Todas precisavam acreditar em algo. Vocês também têm religiões com rituais elaborados, e mesmo seitas onde há sacrifícios de animais.
- E algumas , dizem , sacrifícios humanos.
- Exato. Junto à construção fortificada de pedra onde a Deusa havia confinado Khlûl-Hloo, foi edificado um majestoso Templo, onde ocorreriam as cerimônias religiosas, entre elas os casamentos.
- Mas, se o monstro estava confinado, qual era o perigo?
- Embora o corpo dele estivesse na fortaleza, seus tentáculos cresceram, procurando as Linhas de energia, e alcançaram os túneis. Casthia notou que , após consumir algum ser, a entidade se acalmava por algum tempo.
- Então toda essa mitologia foi criada para alimentar essa monstruosidade.
- Você queria saber sobre o sacrifício. A entidade cósmica vive no mar. A Fortaleza que prende a criatura foi feita através dos poderes da Deusa, então não pode ser destruída. Ela está bem junto ao mar. No Templo Sagrado, existe um salão com uma grande piscina, com uma comunicação que leva a uma das aberturas da Fortaleza, e é por ela que Khlûl-Hloo emite um de seus tentáculos para consumir quem entra ali. Este salão somente é usado após uma cerimônia de núpcias.
- Ahã...tá. E se a moça não engravidar na primeira relação?
- Nosso organismo é diferente do das mulheres daqui. A mulher sempre engravida na primeira relação, se houver ejaculação dentro da vagina.
- Então, a saída é usar preservativo ou fazer sexo anal, hehe.
- Roberto, não é hora para brincadeiras.
- Desculpe, eu tenho o costume de fazer piadas quando estou nervoso. Pode continuar, por favor?
- No templo, há um suntuoso aposento para a noite de núpcias. As jovens Adrastheanas, quando chega a idade, aprendem a agradar o seu homem de várias maneira, assim atingindo o objetivo de sua vida, que é a procriação, garantindo a continuidade da vida em Adrasthea. No entanto, na manhã seguinte, o consorte é levado à piscina, onde deve mergulhar e seguir para a “dimensão cósmica”.
- E se ele não quiser ir?
- As sacerdotisas dão ao consorte uma droga, durante a refeição da manhã, que o deixa dócil e submisso.
- E nunca aconteceu da mulher avisar ao cara, ou dele desconfiar?
- Creio que não. A doutrinação feita durante toda a vida tornaria muito difícil que isso ocorresse. E sempre é dada ao homem a opção de não participar das núpcias. Mas , que eu saiba, nunca alguém desistiu. E é bom lembrar do óleo dourado, que é entorpecente.
- Mas e como foi o seu caso com Arthur? Como ele não foi sacrificado?
- Ele sobreviveu. Mas é uma história muito longa, como eu já disse antes, e você já ouviu demais.
Nisso, senti um leve movimento junto ao meu corpo. Pareceu-me que Alethea já não estava tão gelada, e o braço que não estava com o soro se moveu.
- Ela se mexeu! Está viva!
- Ainda há muito pela frente, Roberto. você vai ter que ser muito, muito paciente.
- Quanto tempo, Anthea? Arthur...
- Veja bem, meu amigo...não vou mentir para você. Ela está em uma situação crítica. Se irá sobreviver, depende de você... e da Deusa.
- Deusa?
- Ela contatou você durante um sonho, e Alethea confirmou. Procure descansar. Relaxe e tente dormir.
- Vou tentar.
Anthea e Arthur saíram do quarto.
Eu estava realmente cansado, foram horas na mesma posição na cama, ansioso e apavorado. Então, adormeci. Foi um sono pesado, sem sonhos. Em um determinado momento, precisei levantar para ir ao banheiro. Procurei ser rápido. Quando retornei e me abracei novamente a ela, senti aquela sensação de descarga elétrica, que parecia sair de meu corpo em direção ao dela.
A sensação foi aumentando, parecia que meu corpo inteiro formigava, e me senti mais fraco. O corpo de Alethea voltou à temperatura normal, mas ela ainda estava sem sentidos. Tentei me controlar, mas uma ereção foi inevitável, era como se minha energia sexual estivesse fluindo fortemente em direção a ela.
O que aconteceu a seguir me deixou ainda mais assustado do que anteriormente: parecia haver uma espécie de película transparente se formando sobre a pele dela! E alguma coisa viscosa começando a sair de seus poros.
- Arthur! Anthea!
Anthea veio correndo após ouvir meus gritos.
- O que foi, Roberto?
- O que é isso em volta dela?
- É difícil explicar. Mas você já sabe que nossos organismos são diferentes dos seus.
Fiz menção de me levantar.
- Não saia daí.
- Mas...
- Roberto, me diga uma coisa: se você ficar um mês sem cortar as unhas das mãos e dos pés, ou alguns meses sem cortar os cabelos, o que acontece?
- Não sou burro, Anthea. Mas eu não poderia saber que vocês descascam como cobras.
- Ela não está “descascando”. É outra coisa, mas é algo natural quando sofremos alguma agressão ao nosso organismo, e foi o que aconteceu a ela.
Parecia que Alethea estava, vagarosamente, sendo envolvida por uma casca transparente que se preenchia com aquele líquido viscoso. A eletricidade , ou o que quer que seja, que fluía de meu corpo para ela, estava agindo como catalisador para o processo.
- Estou me sentindo fraco.
- Se você ama Alethea, não se mexa.
- Eu a amo, Anthea. Se for preciso que eu morra para que ela seja salva, eu aceito.
- Você não vai morrer. E nem minha...
Ela não completou a frase, saiu chorando do quarto.
O que ela estaria querendo dizer?
CONTINUA