O tempo sempre teve uma maneira peculiar de moldar as pessoas, de transformá-las silenciosamente enquanto a vida segue seu curso.
Vincent Weiser, que antes carregava a rebeldia nos ombros e a dor no olhar, agora vestia a responsabilidade com a mesma naturalidade com que um dia vestira a arrogância.
Os anos passaram, e a nova vida que ele construía tomava forma.
Aos 18 anos, ele e Clara se casaram.
Foi um casamento simples, discreto, mas repleto de significado. Para Vincent, era mais do que um ritual, era um compromisso.
Uma escolha consciente de deixar para trás a escuridão do passado e seguir adiante ao lado de alguém que acreditava nele, mesmo quando ele próprio não acreditava.
Enquanto Vincent e Clara cresciam juntos como casal, os negócios da Charcutaria Weiser também floresciam.
Com a modernização da marca, a empresa deixou de ser apenas um pequeno comércio de bairro e se expandiu, abrindo filiais pelo Estado. A tradição alemã se manteve no nome e na qualidade dos produtos, mas a visão de Vincent tornou a empresa algo muito maior.
Luna, agora Gerente Comercial, era uma peça fundamental nesse crescimento. Ela se adaptou rapidamente ao novo papel. Se antes sua vida se resumia a noites fugazes e promessas vazias, agora ela lidava com contratos, negociações e expansões e, surpreendentemente, se sentia realizada.
A relação entre ela e Vincent se manteve sólida, mas diferente. O passado não fora apagado, mas havia sido superado. Havia respeito, amizade e, acima de tudo, havia a certeza de que cada um seguiu o caminho que deveria seguir.
Enquanto Vincent se consolidava como empresário, Clara também trilhava seu próprio caminho. Após concluir os estudos, conseguiu um emprego como técnica em enfermagem em uma das clínicas odontológicas mais renomadas da cidade, pertencente ao cirurgião Paulo Queiroz. O trabalho lhe proporcionava estabilidade, mas também desafios diários.
Paulo, um homem de 58 anos, meticuloso e exigente, via em Clara uma profissional promissora, alguém que, com o tempo, poderia crescer dentro da clínica. Ela era dedicada, competente, e sua doçura natural cativava pacientes e colegas de trabalho.
Agora, dono de um império crescente, Vincent, apesar da pouca idade, se via constantemente envolvido em reuniões, viagens e decisões estratégicas.
Mas, apesar da rotina intensa, ele sempre fazia questão de reservar tempo para Clara.
Havia jantares silenciosos, em que ele apenas a observava falar sobre seu dia, deixando-se envolver pela leveza dela. Havia noites em que ela se aninhava ao seu lado, dizendo que ele precisava dormir mais, que trabalhava demais, que não precisava carregar tudo sozinho. E havia momentos em que Vincent se pegava imaginando algo que nunca pensou que teria, um futuro estável. Uma família.
Mas seria possível? O peso de seu passado ainda estava lá, sempre à espreita. Como olhos na escuridão vigiando cada passo, apenas esperando para tragá-lo novamente. Mas, por enquanto, ele escolheu viver o presente e, pela primeira vez na vida, isso parecia suficiente.
O tempo moldava a vida dos Weiser de maneiras sutis, transformando desafios em novas rotinas, responsabilidades e conquistas.
Em 1998, Wagner veio ao mundo, trazendo consigo uma luz diferente, um novo propósito.
Quando segurou o filho pela primeira vez, Vincent soube que sua vida jamais seria a mesma. Ele não era mais apenas o homem que superou traumas, prosperou nos negócios e construiu seu nome. Agora, ele era pai. E, mais do que nunca, ele sabia que precisava ser o oposto do homem que um dia o criou.
A chegada de Wagner trouxe uma energia renovada para o lar. O pequeno imóvel que antes parecia suficiente para Vincent e Clara, logo se tornou pequeno demais para uma família crescendo. Com o sucesso da Charcutaria Weiser, mudaram-se para um bairro de classe média, onde poderiam oferecer ao filho um lar espaçoso, seguro e confortável.
Clara decorou cada cômodo com carinho e dedicação, certificando-se de que Wagner cresceria cercado por um ambiente acolhedor.
E Vincent, apesar de ser um homem prático e racional, se pegava, às vezes, observando Clara arrumar o quarto do bebê, sentindo um calor estranho no peito, um sentimento de pertencimento que nunca imaginou experimentar.
Ali, naquele lar, estava tudo o que ele construiu. Tudo pelo qual valia a pena lutar.
Desde cedo, Vincent e Clara tinham formas diferentes de educar Wagner.
Clara era doçura e proteção, envolvia o filho em um amor paciente, compreensivo e, às vezes, permissivo. Vincent, por outro lado, queria ensinar Wagner a ser forte, a não se dobrar diante dos desafios da vida. E, assim, o pequeno Wagner começou a perceber que sua mãe e seu pai eram dois polos opostos.
Se ele chorava pedindo um doce antes do jantar, Clara cedia. Se ele jogava brinquedos no chão e se recusava a arrumar, Vincent cruzava os braços e dizia calmamente:
— Você pode espernear o quanto quiser, mas não vai sair daqui até arrumar essa bagunça.
Se Vincent dizia não, Wagner corria para Clara, buscando abrigo no colo dela. E, mais cedo do que Vincent imaginava, o filho aprendeu a manipular essa dinâmica a seu favor.
Vincent nunca foi um pai ausente. Ao contrário de Rudolph, ele sempre fez questão de estar presente. Se Wagner caía e ralava o joelho, Vincent o ajudava a se levantar, mas não corria para pegá-lo no colo. Se tirava notas boas, o incentivava a melhorar ainda mais. Se cometia erros, o ensinava a arcar com as consequências.
Mas, para uma criança acostumada com a suavidade materna, o pai muitas vezes parecia exigente demais. E, com o tempo, isso começou a criar um abismo invisível entre os dois. Wagner sabia que sua mãe sempre o acolheria e sabia que seu pai nunca se curvaria às suas vontades. Por isso, seus laços com Clara se tornaram mais fortes.
E a distância entre ele e Vincent, mais evidente.
Wagner com 15 anos, já não era mais o menino de olhos brilhantes que corria para Vincent mostrando seus desenhos. Agora, era um adolescente de personalidade forte, com um tom desafiador na voz e uma confiança que, às vezes, beirava a arrogância.
E Vincent via partes de si mesmo no filho. O olhar penetrante, a teimosia, a necessidade de provar que estava certo. Mas Wagner não entendia o motivo por trás da firmeza do pai. Sempre que Vincent tentava lhe ensinar algo sobre disciplina, esforço e caráter, Wagner via aquilo como rigidez desnecessária.
Se Vincent dizia para ele assumir suas responsabilidades, Wagner corria para Clara, sabendo que sua mãe sempre atenuaria os castigos.
— Não precisa ser tão duro com ele, Vincent. Ele ainda está aprendendo.
— E quando ele vai aprender?
Os conflitos eram frequentes, mas Vincent nunca levantava a voz. Seu olhar frio já era o suficiente para deixar claro quando não havia mais espaço para discussão, mas Wagner, com a ousadia da juventude, começava a desafiar essa autoridade e Vincent se perguntava até onde isso iria.
Houve uma noite em que Vincent chegou mais cedo do trabalho e encontrou Wagner sentado à mesa com Clara, discutindo algo.
— Eu sou bom no que faço! O professor me pegou no pé sem motivo.
— Meu amor, só estou dizendo que tu precisa ser mais respeitoso.
Vincent parou à porta e cruzou os braços.
— O que houve?
Wagner bufou.
— O professor de matemática quer me dar suspensão porque eu discuti com ele. Mas eu estava certo. Ele que foi grosso comigo primeiro.
Vincent estreitou os olhos.
— E você acha que estar certo lhe dá o direito de desrespeitá-lo?
Wagner ergueu o queixo.
— Tu nunca deixa ninguém te pisar, por que eu deveria?
O peso das palavras atingiram Vincent como um soco. O filho o via como um homem inflexível, frio, um exemplo de alguém que não cede, mas ele não queria que Wagner se tornasse como ele.
Vincent inspirou fundo.
— Ser respeitado não significa desrespeitar os outros, Wagner. Se quiser ser levado a sério, tem que aprender a ouvir, mesmo quando acha que está certo.
Wagner não gostou da resposta. Bufou, desviou o olhar e se virou para Clara, como sempre fazia.
— Mãe, fala pro pai que ele tá exagerando.
Vincent esperou a resposta dela, e quando Clara hesitou, algo dentro dele se partiu. Ele sabia que Wagner nunca o escolheria e, talvez, nunca entendesse o que ele tentava ensinar, mas Vincent não era um pai que buscava ser amado. Ele era um pai que preparava o filho para o mundo. E se, no futuro, Wagner fosse forte não por instinto, mas por escolha… Então tudo teria valido a pena.
**********
O tempo era um escultor implacável, esculpindo marcas invisíveis nos rostos, nos gestos e nas memórias. E Clara, mais do que ninguém, sabia que ninguém escapava do seu toque. Por isso, quando percebeu as pequenas mudanças no comportamento do Dr. Paulo Queiroz, algo dentro dela se inquietou.
A princípio, eram coisas sutis. Um esquecimento aqui, um erro ali. Nada que comprometesse a qualidade do trabalho ou a confiança dos pacientes. Afinal, Paulo era um cirurgião renomado, respeitado e admirado, um homem cuja precisão e ética o tornaram uma lenda na odontologia da cidade.
Mas Clara conhecia aquele homem há anos e sabia que algo não estava certo.
O primeiro sinal veio quando ele tropeçou em suas próprias palavras ao explicar um procedimento de rotina para uma paciente.
Nada demais, qualquer um poderia se distrair, mas então, veio outro momento, e outro, e outro.
Certa vez, Clara entrou no consultório e o encontrou parado diante de uma gaveta aberta, segurando um prontuário e franzindo o cenho.
— Doutor, está tudo bem?
Ele piscou algumas vezes, como se despertasse de um devaneio.
— Claro, minha querida. Só estava... procurando um documento.
Ela olhou para sua mão. O documento que ele procurava já estava ali.
Pequenos episódios como esse foram se tornando frequentes.
Nada grave, mas o suficiente para preocupar Clara.
Naquela tarde, a clínica estava mais silenciosa do que o normal. Os funcionários já haviam ido embora, e Clara se preparava para organizar os últimos documentos antes de sair.
Foi quando ouviu a voz de Paulo chamando-a do consultório.
— Clara, poderia vir aqui um instante?
Ela entrou e encontrou o doutor sentado em sua poltrona de couro, os olhos cansados, mas ainda carregados de gentileza.
— Sente-se, minha filha.
Ela franziu o cenho. Havia algo estranho no tom dele. O jeito cuidadoso, a forma como ele ajeitou os papeis sobre a mesa.
— Doutor, aconteceu alguma coisa?
Paulo suspirou, cruzando os dedos sobre a mesa.
— Clara, eu queria te agradecer… por todos esses anos de dedicação ao trabalho…
Por anos, Clara viu conversas começarem assim. E quase sempre, eram prenúncios de uma demissão.
O estômago dela se apertou, a respiração falhou. Ela congelou na cadeira, o coração disparado. Já fazia tanto tempo que trabalhava ali, que não conseguia imaginar sua rotina sem aquele lugar.
Ela abriu a boca para perguntar se havia feito algo errado, se poderia mudar alguma coisa, mas Paulo a continuou antes que ela dissesse qualquer coisa.
— Eu sei que esse tipo de conversa pode assustar, mas não se preocupe. Eu não estou te demitindo.
Clara soltou o ar que nem havia percebido que segurava, mas a inquietação não diminuiu.
Paulo manteve o olhar sobre ela, um brilho nostálgico refletido na íris envelhecida.
— Eu já não sou mais o mesmo, minha querida. Os anos pesam. Minhas mãos já não são tão firmes. Minha mente, às vezes, parece pregar peças em mim.
Clara engoliu em seco. Ela já desconfiava disso, mas ouvi-lo admitir tornava tudo mais real.
— O senhor está se aposentando? — a voz dela saiu mais baixa do que pretendia.
Paulo assentiu lentamente.
— Sim. Chegou a hora.
Clara sentiu uma mistura de emoções.
A primeira foi tristeza.
Paulo era mais do que um chefe, era um mentor, um amigo, quase um segundo pai para ela, mas então, veio a preocupação. O que aconteceria com a clínica? Com os funcionários? Com os pacientes que confiavam nele há anos? Ela sabia que a saída de Paulo deixaria um vazio difícil de preencher.
Ele percebeu a inquietação no rosto dela e sorriu.
— Eu já tenho um sucessor, Clara.
Ela franziu o cenho. Um sucessor?
— Meu filho, Otávio, assumirá a clínica.
Otávio Queiroz não era um estranho. Ela se lembrava dele, de quando era um estudante promissor, brilhante como o pai, mas com um espírito inquieto e aventureiro. Nos últimos anos, ele havia seguido os passos do pai, mas em uma jornada própria: Atuando no programa Médicos Sem Fronteiras na Nigéria, cuidando de pacientes em condições extremas, cuidando de vidas em cenários de guerra e pobreza.
Paulo continuou falando, mas Clara não conseguia mais ouvir direito. O nome de Otávio pairava em sua mente como um prenúncio. Algo estava para mudar.
**********
As chaves tilintavam enquanto Vincent a girava na fechadura. Ele entrou, puxando a porta atrás de si e depositando as chaves sobre o aparador da entrada. A atmosfera do lar era sempre a mesma: calma, organizada, previsível.
O cheiro de comida recém-feita ainda pairava no ar, misturado ao perfume suave de Clara, que vinha da cozinha. Por um breve instante, Vincent fechou os olhos e inalou fundo. Ele estava em casa, mas a sensação de paz durou apenas alguns segundos.
No corredor, passos apressados.
Wagner surgiu, vestindo um casaco leve e os tênis ainda desamarrados. Ele passou pelo pai sem desacelerar, pegando a carteira e o celular da bancada da sala.
Vincent observou o jeito impaciente do filho, sempre apressado para estar em qualquer lugar que não fosse ali.
— Aonde pensa que vai? — a pergunta veio firme, mas sem alterar o tom de voz.
Wagner soltou um suspiro pesado, como se aquilo fosse um incômodo desnecessário.
— Sair com os uns amigos.
— A essa hora?
— A essa hora.
Vincent cerrou a mandíbula, contendo a irritação crescente.
— Quando pretende voltar?
Wagner já estava de costas, indo em direção à porta.
— Na hora que der.
A resposta veio acompanhada do som seco da porta se fechando atrás dele.
Vincent ficou parado por um instante, sentindo a raiva e a frustração crescerem. Seu próprio filho estava escapando dele e ele não sabia como trazê-lo de volta.
Na cozinha, Clara observava a cena sem dizer nada.
Ela sabia que a relação entre Vincent e Wagner estava se tornando cada vez mais difícil. O filho, antes tão dependente do pai, agora se recusava a ouvi-lo, desafiando sua autoridade com respostas secas e omissões, mas Vincent também não sabia ceder.
A rigidez dele fazia Wagner se afastar ainda mais. Ela suspirou baixinho antes de chamá-lo:
— Vincent, vem jantar.
Ele demorou alguns segundos antes de se mover, mas finalmente entrou na cozinha e se sentou à mesa. O prato já estava servido para os dois.
O jantar era simples, mas feito com o mesmo cuidado de sempre. Clara sempre foi uma esposa exemplar, a mulher que mantinha o lar funcionando mesmo quando tudo parecia desmoronar ao redor.
Vincent pegou os talheres, mas antes de dar a primeira garfada, ergueu os olhos para ela.
— Ele precisa de limites, Clara.
Ela apenas meneou a cabeça.
— Ele teve a quem puxar, não teve?
Vincent não sorriu. Ela sabia que ele não achava graça naquela comparação.
— Não é a mesma coisa. Eu nunca desrespeitei o meu pai dessa forma.
Clara pousou os talheres e o encarou com um olhar paciente.
— Não, Vincent. Tu só deixou de falar com ele e saiu de casa.
Ele permaneceu em silêncio.
Ela suspirou.
— O Wagner precisa de limites, sim, mas ele também precisa sentir que pode confiar no pai.
— E você acha que eu não faço por onde?
Clara hesitou. Ela sabia que Vincent tentava. Ele nunca foi um pai ausente. Sempre esteve presente, sempre fez questão de educar Wagner da melhor forma que podia. Mas o problema era a forma como Vincent esperava que o filho aprendesse na rédea curta.
— Talvez ele precise sentir que tu não tá apenas esperando que ele erre.
Vincent não respondeu. Comeu em silêncio, mastigando tanto a comida quanto as palavras que queria dizer.
Clara também não insistiu.
Depois do jantar, Clara recolheu os pratos e começou a lavar a louça. Vincent se serviu de um copo de café, voltando a se sentar.
— E como foi no trabalho hoje?
Ela olhou de relance para ele. Nos últimos anos, as conversas entre eles haviam se tornado práticas.
"Tu já buscaste o Wagner?"
"Precisamos pagar as contas do mês."
"O que tem para o jantar?"
Mas perguntas sobre o dia do outro? Isso era algo raro.
Ela terminou de lavar os pratos e secou as mãos antes de responder:
— O Dr. Paulo vai se aposentar.
Vincent ergueu as sobrancelhas.
— Isso é uma pena.
— Sim. E parece estar decidido.
— E como vai ficar a clínica?
Clara suspirou, apoiando-se na pia.
— O filho dele, Otávio.
Vincent assentiu, pegando a xícara de café que ela havia deixado na mesa.
— Ele é bom no que faz?
— Muito. Trabalhou no Médicos Sem Fronteiras nos últimos anos. Tem experiência na área.
Vincent bebeu um gole do café.
— Então a clínica estará em boas mãos.
Clara mordeu o lábio inferior, hesitante. Ela não sabia exatamente por quê, mas havia algo na transição de poder da clínica que a deixava inquieta. Talvez fosse a ideia de perder Paulo ou talvez fosse a incerteza do que viria depois.
Vincent notou o jeito pensativo dela e franziu o cenho.
— Você está preocupada com isso?
Clara piscou, voltando à realidade.
— Um pouco. O Dr. Paulo foi mais do que um chefe para mim, Vincent. Ele foi um mentor. Um amigo.
— Então você deve confiar que ele escolheu alguém capaz de continuar o legado dele.
Ela olhava para Vincent, ainda sentado à mesa, bebendo seu café com a mesma tranquilidade de sempre. Para ele, as coisas eram simples. Mas, para ela, tudo era um emaranhado de emoções e sentimentos.
Suspirou e tentou afastar as preocupações. Talvez fosse só cansaço.
— Quer assistir a um filme? — sugeriu, forçando um sorriso enquanto guardava a louça do jantar.
Vincent olhou para ela por alguns segundos, como se estivesse avaliando a proposta. Ele não parecia animado com a ideia, mas assentiu.
— O que você quer ver?
— Algo leve. Talvez uma comédia romântica.
Ele arqueou uma sobrancelha, mas não contestou. A resposta dele era exatamente como tudo em sua relação ultimamente: uma aceitação resignada, sem entusiasmo.
Sentados no sofá, lado a lado, começaram a assistir ao filme. A história na tela desdobrava um romance intenso, cheio de paixão e momentos impulsivos. Aqueles personagens se entregavam ao amor com uma intensidade quase irreal. Clara se viu presa à cena de um casal correndo pela chuva, rindo, incapazes de manter as mãos longe um do outro. E então, veio a lembrança.
Havia um tempo em que ela e Vincent eram assim. Lembrou-se do jovem sombrio e misterioso que ele era quando se conheceram. Do olhar cheio de desejo, da forma como ele a puxava para perto sem hesitação. Lembrou-se das noites em que ele não conseguia esperar que chegassem ao quarto, e a tomava ali mesmo, na sala, no corredor.
Do jeito dominante, intenso, visceral. Mas agora… Agora, Vincent não era mais aquele homem. Ele não era mais ferido, bruto e cheio de fúria. Agora, ele era um homem pragmático, racional, tranquilo e Clara não sabia se aquilo era algo bom ou ruim.
Ela desviou os olhos da tela por um momento e olhou para Vincent. A luz da TV projetava sombras sutis em seu rosto, agora mais maduro, mais endurecido pelo tempo.
O mesmo homem, mas ao mesmo tempo, tão diferente. Clara se perguntou se os sentimentos também envelhecem. Se o amor se desgasta, se atenua, se torna apenas um reflexo do que já foi. Talvez fosse natural. Talvez fosse assim para todos os casais. Mas então, por que aquela inquietação dentro dela não ia embora? Por que ela sentia que algo estava faltando?
Em um momento do filme, o casal na tela se beijava apaixonadamente, como se não houvesse mais nada no mundo além deles. Clara sentiu o peito apertar. Ela se mexeu no sofá, aproximando-se levemente de Vincent, como se, instintivamente, buscasse alguma conexão. Ele percebeu o movimento, olhou para ela brevemente, mas não fez nada. Não estendeu a mão nem passou o braço ao redor dela. Nada.
Clara percebeu o que a incomodava tanto. Vincent ainda a amava. Mas talvez ele não a desejasse mais. Pelo menos, não como antes. O toque casual de um casal que se acostumou com a presença um do outro já não era suficiente para preencher o vazio dentro dela e pela primeira vez, ela se perguntou se Vincent sentia o mesmo. Se, para ele, também havia algo faltando. Mas Vincent nunca falava sobre sentimentos. Se ele sentia falta da intensidade de antes, ele jamais diria.
Quando o filme acabou, Vincent se levantou primeiro.
— Vou dormir. Você vem?
Clara piscou, demorando um segundo para responder.
— Daqui a pouco. Vou só desligar as coisas aqui.
Ele assentiu e foi para o quarto. Clara permaneceu ali por mais alguns minutos, sentada no sofá, tentando encontrar alguma justificativa para o que sentia. O incômodo dentro dela não era passageiro e, se continuasse ignorando, ele só iria crescer.
Respirou fundo, levantou-se e desligou a TV.
Enquanto caminhava até o quarto, tentou convencer a si mesma de que estava tudo bem, mas nem mesmo ela acreditou nisso.
Vincent já estava deitado, o corpo relaxado contra os lençois, mas os olhos seguindo cada movimento da esposa. Ele a observava em silêncio, absorvendo a visão dela de costas, os dedos deslizando distraidamente pelo tecido fino do baby doll enquanto retirava os brincos.
O tempo não parecia ter deixado marcas nela. Seus quadris continuavam graciosos e bem desenhados, suas pernas longas e femininas moviam-se com uma leveza quase hipnótica.
Mesmo sem maquiagem, Clara permanecia tão bela quanto nos primeiros anos de casamento. Talvez ainda mais. Havia nela um charme maduro, um refinamento que só o tempo poderia esculpir, mas havia também um certo distanciamento, algo nos olhos dela, nos gestos, que Vincent não conseguia definir. Algo que a fazia parecer distante, mesmo ali, a poucos metros dele.
Quando Clara se deitou ao seu lado, Vincent não hesitou em abraçá-la por trás. Seu braço deslizou ao redor da cintura dela, puxando-a contra si com um movimento natural, instintivo. Ele sentiu o corpo dela ceder ao toque, o calor da pele contra a dele.
Por um momento, os pensamentos dela se dissiparam. Tudo o que importava era aquele instante, o calor reconfortante do marido, o toque firme e protetor. A certeza de que Vincent ainda era o homem com quem queria estar. Ela segurou o sorriso, mas Vincent percebeu.
Ele deslizou os lábios pela nuca dela, a barba roçando de leve contra sua pele sensível.
— O que foi? — murmurou contra a pele quente — Você está tentando esconder esse sorriso de mim?
Clara sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
Ela fechou os olhos, absorvendo o prazer daquela sensação, o conforto de saber que, apesar das dúvidas, Vincent ainda a queria.
Ele beijou sua nuca novamente, desta vez um pouco mais demorado. As mãos dele, antes repousadas em sua cintura, deslizaram preguiçosamente pela curva de seu quadril.
A voz dele veio baixa, carregada de um tom instigante.
— Você tem pensado demais ultimamente, amor.
Clara entreabriu os olhos, o coração acelerando.
— E tu não pensas?
Vincent riu baixinho contra sua pele, apertando levemente sua cintura.
— Não quando eu tenho coisas melhores para fazer.
Ela sorriu apesar de si mesma.
Havia algo em Vincent que sempre a fazia se render, um domínio discreto, um controle silencioso sobre ela. E, naquele momento, ela quis esquecer tudo o que a preocupava. Quis se perder na presença dele.
Clara se virou lentamente na cama, ficando de frente para Vincent. Os olhos azuis dele brilhavam na penumbra, analisando-a. Ela deslizou os dedos pelo peito dele, sentindo a firmeza de seus músculos, o calor da pele contra sua palma.
Vincent segurou o pulso dela, puxando sua mão para perto de seus lábios, depositando um beijo suave no dorso. Seus olhos nunca deixaram os dela. E então, ele sorriu de lado, provocador.
— Você está tensa. Precisa relaxar um pouquinho.
O coração de Clara acelerou. Ela sabia exatamente o que Vincent estava oferecendo e, naquele instante, tudo o que ela queria era aceitar. A respiração de Clara estava quente e entrecortada quando ela deslizou sua perna suavemente sobre a cintura de Vincent, trazendo-o para mais perto.
O toque era um convite silencioso, um gesto instintivo que desfazia qualquer hesitação restante. Vincent respondeu imediatamente, segurando-a com firmeza, seus dedos explorando as curvas de seu quadril, apertando sua carne e encaixando-se.
Sob os lençois, não havia espaço para incertezas. Os movimentos começaram lentos, uma dança ritmada pelo desejo e pela necessidade de conexão. Os olhos de Vincent permaneceram fixos nos dela, intensos, como se tentassem capturar cada nuance do prazer que crescia entre os dois.
Clara sentiu seu corpo se dissolver naquele momento, os músculos relaxando, os pensamentos se dissipando até que tudo o que restasse fosse o presente. Ela deslizou as mãos pelas costas dele, puxando-o mais para si, como se o simples contato não fosse suficiente, como se precisasse senti-lo de todas as formas possíveis.
E então, ele mudou de posição, ficando sobre ela.
As pernas de Clara envolveram sua cintura em um abraço firme, prendendo-o ali como se aquele fosse o único lugar onde ele deveria estar. A noite se aprofundou no quarto, preenchida por sussurros e murmúrios que escapavam dos lábios de Clara sem que ela pudesse contê-los.
Vincent conhecia cada reação dela, cada ritmo, cada pausa que a fazia se perder. Não havia preocupações. Não havia dúvidas. Havia apenas eles dois. Os movimentos se intensificaram, seus corpo, tomados de energia, se tencionaram anunciando um orgasmo arrebatador.
Clara se agarrou a Vincent, o corpo trêmulo, a mente em um estado de torpor que ela não sentia há tempos. Vincent se manteve sobre ela por alguns segundos, os rostos próximos, as respirações entrelaçadas. Ele sorriu contra seus lábios, murmurando algo baixo, um elogio, uma promessa. Clara apenas fechou os olhos e se permitiu acreditar que, naquele momento, tudo estava no lugar certo.