O olhar de Juliana ficou cabalístico, sua expressão mudou, ficou séria, vazia. Parecia estar sem alma. A noiva fungou fundo, duas vezes. Virou e olhou para os pais, depois para os convidados.
Voltou a olhar na direção do altar. Pegou o microfone das mãos do padre. E, sem gaguejar, discursou as palavras que arremessariam a igreja, os entes queridos, para o inferno:
— “Eu, Juliana Mendes Correia, não aceito você, Rafael Guilhermino de Souza Farias, como meu legítimo esposo.”
Heroína. A danada teve culhão. O pânico foi instantâneo.
Um “Ohhhhhh” coletivo andarilhou pela casa de Deus. Urros opressivos, cochichos, mãos atônitas tapando bocas escandalizadas.
As câmeras fotográficas disparavam flashes incessantes, capturando fotos e imagens, cada sílaba que começava a brotar da boca da cretina dos olhos verdes.
O padre esbugalhou as vistas.
“Perdão, minha filha? Mas não entendi. Você não quer se casar com ele?” — perguntou o padre Alberto, tentando entender a história.
Juliana já não estava ali para pedir perdão. A pequena tomou a decisão naquele instante. Sim, foi muito tardio. Mas ela é humana.
Rafael, desesperado, segurava sua mão, ainda assim, era como se já não a tocasse. O sangue havia sumido de seu rosto, sua testa suava.
— “Ju… Juliana… o que você está fazendo?”
Ela ergueu o maxilar, olhando-o com uma frieza de se prever:
“Eu não posso me casar com você, Rafael.” — disse ela, enrugando a pele da dianteira.
No altar, Plínio tentava não rir. Lembrou-se do dia, disse a Rafael que não confiava nas mulheres. Ao seu lado, Jean gritava de alegria por dentro. O ordinário sempre desejou a moça.
Na primeira fila. Frederico sentiu falta de ar.
“Não é possível. Aquela menina… aquela menina tem coragem.” — pensou ele, sentado ao lado de Magda. O coração do velho acelerou, sentia um frio na espinha, um suor subindo pela nuca.
A igreja encontrava-se barulhenta. Aqueles falares de Juliana tinham o peso de um elefante. Logo, a casa de Deus se silenciou, só era quebrada pelos cliques das câmeras e pelo sussurro de alguns.
Rafael encontrava-se de boca entreaberta, céptico, respirava fundo. O que ele ouviu? Era aquilo mesmo?
— “O quê?” — Ele perguntou, como se precisasse ouvir centenas de vezes para ter certeza.
Juliana não recuou, não piscou, e nem tremeu. Virou-se para os convidados, segurando o microfone como uma mártir diante do sacrifício.
— “Venho te traindo, Rafael. — Sua voz reverberou pelo altar. — “Quase todos os dias. A maioria deles você não conhece.”
Os olhos de Rafael esbugalharam-se.
Na igreja, o som foi um só:
— OHHHHHHHHH!
Um burburinho espalhou-se feito estopim de explosivo. O padre Alberto fechou os olhos, como se estivesse diante da maior heresia de sua carreira. A mãe do noivo arregalou a boca, enquanto Pilar, mãe de Juliana, levou a mão ao peito. Geraldo, pai da noiva, baixou a cabeça de vergonha. Frederico congelou. Jean, nem piscava ou respirava, queria desaparecer daquele lugar.
E Juliana não parava. Ela virou-se para Rafael. O olhar dela era cortante.
— “Todo começo de tarde, saio do consultório, mudo de roupa, entro no primeiro ônibus, seduzo qualquer um, seja ele preto, branco, gordo ou magro, e desço com ele.”
O rosto de Rafael ficou vermelhaço. Um vermelho de ira, de vergonha, de desgraça. Ele não sabia se sentia raiva ou nojo. O suor escorria pela testa. Se tivesse um revólver, daria nela um, dois, três tiros.
A pequena continuava proferindo:
— “Às vezes, é no carro. Às vezes, em um hotel vagabundo. Outras vezes, é num beco.”
Dona Magda — sentiu um desmaio, um desfalecimento. Frederico estava petrificado. Jean prendeu a respiração.
E então aconteceu. Rafael, fora de si, estalou a mão no rosto dela. O som seco do tapa ecoou na catedral, misturando-se ao novo coro dos convidados:
— OHHHHHHHHHHH!
Juliana cambaleou um pouco para trás, mas segurou-se firme.
Jean e Plínio saltaram para segurar Rafael. No fundo da igreja, um idoso se benzeu e murmurou:
— “Com essa formosura, até eu iria. É o fim dos tempos.”
— “Meus amigos me avisaram! — Rafael gritava, contido pelos padrinhos. — “Disseram para eu não confiar em você!”
Juliana pousou a mão no rosto ardido. Os olhos dela marejavam, mas não de arrependimento, de raiva, de vingança.
Então, Geraldo, o pai de Juliana, avançou como um touro e, num só golpe, acertou um murro no meio da cara de Rafael.
— “Desgraçado! Não toque na minha filha.”
Rafael quase caiu no chão, o nariz sangrando. Jean e outros convidados seguraram Geraldo.
— “Sua filha não presta!” — Rafael berrou, limpando o sangue com as costas da mão.
E Juliana, inalando fundo, com a mão no rosto, confessou as últimas revelações:
— “Saiba, Rafael… ontem eu transei com seu pai na cama dele.”
— OHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!
O barulho foi ensurdecedor. Um agregado de gritos, choros, gargalhadas.
Rafael olhou para Frederico.
— “Pai?”
O velho empalideceu. Frederico sentiu um aperto no peito. A gravata sufocava. Magda virou-se para o marido, a fisionomia dela se retorcendo.
— “Isso é verdade, Fred?”
O velho começou a tossir. Afrouxou a gravata. Buscava o ar.
E então veio a última bomba.
Juliana segurou o microfone e relatou:
— “Também transei com o Jean, semana passada, no motel.”
A alma de Jean quase saiu. Mayara, sua namorada, deu um tabefe no rosto dele e desceu do altar raivosa.
Rafael explodiu.
— “Canalha! Traidor! Vou te matar!” — Avançou para cima do amigo, todavia, foi contido novamente.
Foi o caos. Gritaria. Fotógrafos registrando tudo. Gente rindo e desmaiando nos bancos da igreja. Crianças sendo retiradas às pressas.
O padre Alberto, sem paciência, arrancou o microfone das mãos de Juliana.
— “CHEGA!” — bradou o sacerdote, vermelho de raiva. — “Chega disso! Vamos para a sacristia. Os dois. Agora!”
Pegou Rafael pelo braço e apontou para Juliana, que, apática, ergueu o queixo e seguiu. O padre levou os dois para uma sala nos fundos.
Enquanto isso, na igreja, o inferno apresentava-se aberto.
Na sala dos fundos da igreja, o ar pesava pior que a de um necrotério. Porém, na abadia. O cheiro de flores, vindo do altar, não foi suficiente para mascarar o cheiro azedo da vergonha.
O padre Alberto, suando sob a batina, fixou o olhar nos dois como um juiz.
“Conversem e resolvam-se. Estarei do lado de fora.” — Disse e saiu, fechando a porta com um baque seco.
Juliana sentou-se numa cadeira de madeira. Ajustou a barra do vestido, ergueu os olhos e, com uma serenidade assassina, disparou:
— “Sabe o que é, Rafael? Não quero casar com um homem preconceituoso. Um homem que odeia os meus pais, a minha família.”
Rafael, de pé, dobrou-se para a frente, os olhos faiscando.
— “Isso não é hora para termos esse tipo de conversa, Juliana! No dia do nosso casamento?” — Ele bufava. Passou a mão no nariz ensanguentado. — “Teremos essa conversa mais tarde, após o casamento. Vamos embora?”
Juliana levantou-se. O véu caiu um pouco para o lado, mas ela não se importou.
— “Não vou mais me casar com você. Não entende? Acabou!”
Foi como se ela tivesse lhe cravado um punhal no peito. Rafael arregalou os olhos. As narinas inflaram.
E então, ele se descontrolou.
— “Você vai casar comigo, por bem ou por mal, sua vagabunda!”
A palavra: vagabunda. Estalou no ar, como um chicote que corta a carne. Juliana travou a mandíbula. Os olhos escureceram de ódio.
O som do tapa dela estalou no rosto de Rafael. Uma bofetada cheia de raiva, de libertação.
Ele recuou um passo, segurando a face ardida.
“Nunca mais me ofenda.” — disse alto, a cretina.
Ele, com a boca torta de sanha, cuspiu no chão.
— “Bem que me avisaram para não confiar em você. Você não presta. Não vale um mísero centavo.”
Silêncio. Um segundo. Dois. Então, ele riu. Um riso amargo. Um riso de homem que, diante do precipício, se agarra a qualquer ilusão.
— “Mas eu caso com você do mesmo jeito, Juliana.”
Ela franziu a testa.
— “O quê?”
Rafael marchou um passo, segurou o rosto dela com as mãos tiritadas.
— “Eu te amo mais-que-tudo nessa vida. Vamos nos casar. Depois a gente resolve isso.”
Juliana estava paralisada. Rafael prosseguiu:
— “Você pode ter seus amantes…, mas… seja discreta.”
O horror refletiu-se no rosto da pequena.
— “Que nojo. Que horror.” — Murmurou ela, afastando-se, asco nos olhos. — “Não se humilha mais. Eu transei com seu pai.”
Ela abriu a porta. O padre Alberto estava lá, de braços cruzados. O velho padre ouvira tudo.
Juliana virou-se uma última vez para Rafael.
— “Não te quero mais. Viva a sua vida. Me deixa em paz.”
E então, Rafael, já sem princípio, sem freios, levantou a mão e esbofeteou Juliana outra vez. Um tapa cruel. Desumano. O lindo rosto dela virou para o lado. Ela não chorou. Sabia que merecia aquele tabefe. Somente colocou a mão na face e encarou Rafael.
Seu olhar era de desprezo. Ele saiu da sala, cruzou o corredor como um animal enjaulado e, chegando ao altar, virou-se para os pais da noiva. Pilar estava de olhos arregalados. Geraldo cerrava os punhos.
“Sua filha é uma vagabunda.” … E saiu. Atravessou a igreja sob uma chuva de cochichos, olhares chocados, flashes das máquinas fotográficas. Lá fora, entrou no carro e acelerou pela avenida.
Na porta da igreja, um cachorro vira-lata, desatento a toda tragédia, coçava a orelha.
A sala do padre. O ar, denso, romanceava sobre mãe e filha. — Pilar, de pé, bufava, as narinas infladas, os olhos faiscantes de raiva.
“Como é, que vamos ficar, agora, perante as pessoas? Você confessou, na frente de todo mundo, que virou uma vagabunda?” — A voz dela cortava o recinto. Parecia um trovão de raiva.
Juliana, sentada, olhava para as próprias mãos, trêmulas, como se ali estivessem as respostas.
— “Foi a Pérola, mãe. Disse que eu teria que tomar uma decisão. Que eu ia sofrer depois do casamento.”
Pilar jogou as mãos para o alto, como quem rogava para os deuses da paciência.
— “Casava primeiro, minha filha! Se não desse certo, se separava depois. Você é burra?”
E então, com os olhos apoucados, Pilar baixou a voz, num sussurro:
— “Na vida, nós mulheres temos que ser espertas.”
Juliana ergueu os olhos e neles havia um nevoeiro.
— “Vou sumir daqui, dessa cidade, de todo mundo que me conhece.”
Pilar cruzou os braços. O vestido azul-marinho que usava era um campo de batalha, enrugado pelo próprio corpo agitado.
— “Você vai pra onde? Sua cara deve estar em todos os lugares.”
Juliana não respondeu. Baixou a cabeça. O silêncio foi um mea-culpa. Pilar ciciou fundo. Caminhou até a porta, segurou a maçaneta e disparou um último olhar para a filha.
“Que Deus tenha piedade de você.” — E saiu, sem olhar para trás.
Juliana ficou ali, parada, suportando o peso do vestido de noiva, sentindo os alfinetes do penteado lhe espetarem o couro cabeludo.
Levantou-se. Saiu pelos fundos da igreja, sem se despedir de ninguém. Lá fora, o sol ainda brilhava. Pegou o primeiro táxi e voltou para o apartamento que dividia com Rafael.
Abriu as gavetas. Arrancou os vestidos dos cabides, os sapatos do armário, os cremes do banheiro. Pegou todos os pertences e jogou tudo em seis malas.
No quarto, a cama estava arrumada para a noite de núpcias. Lençóis brancos, almofadas de cetim, uma garrafa de champanhe esperando gelo. Ela riu. Um riso curto, seco, sem humor.
Juliana não tirou o vestido de noiva. Saiu do apartamento arrastando as malas. No estacionamento, abriu o porta-malas do carro e jogou tudo lá dentro. Entrou no automóvel. Fechou a porta. Ligou o motor. E dirigiu. Apenas dirigiu, fugindo de todos e seguindo seu destino.
Juliana dirigiu por sete horas ininterruptas. O vestido de noiva, agora um trapo rasgado, amassado, agarrava-se ao corpo suado. —As mãos tiritavam no volante, todavia, ela não parava.
Campinas ficou para trás conforme um marasmo que já não lhe pertencia. Regressou a Curitiba de madrugada. O neon da localidade refletia nos vidros do carro, tingindo-a de vermelho, azul, verde.
Parou no primeiro hotel que encontrou no centro. Uma espelunca de quinta categoria, com cheiro de bafio e cigarrilhas baratas entranhadas nas paredes.
O recepcionista, um sujeito magro, de buço mal aparado e olhos vermelhos, arregalou-se diante da figura surreal que surgia diante dele: uma mulher lindíssima, vestida de noiva, arrastando malas.
— “Um quarto. Para uma pessoa.” — disse Juliana, seca, jogando a identidade sobre o balcão.
O ciclano estranhou. Olhou para a tela do computador velho, depois para ela. A noiva fugitiva. Até o demônio, se estivesse ali, ficaria encafifado com a cena.
— “Madame… a senhora está bem?”
“Ótima. Quanto é?” — respondeu seca, sem dar detalhes.
Ele apertou algumas teclas, imprimiu um papel e estendeu para ela assinar.
— “Fique à vontade, dona… Juliana.”
Pegou a chave. Dois faxineiros ajudaram-na a subir as malas pelas escadas. No quarto minúsculo, deu gorjetas a eles dois.
Quando fechou a porta, deitou-se na cama. Os acolchoados eram duros e encararam o teto amarelado. A quietude era um campo minado. Pegou o celular e viu a tela: centenas de mensagens, dezenas de ligações perdidas.
De Rafael. De Pilar. De Magda. De Geraldo. De Jean. Até de Frederico. Juliana aspirou fundo, tirou o chip do aparelho, caminhou até o banheiro. O vaso sanitário esperava, quebrou o chip. Jogou no fundo da privada e apertou a descarga.
O casamento, a família, o passado… tudo sumindo no redemoinho da água. Agora, era só ela e o mundo.
— Até o último capítulo —