Iniciamos o dia novamente correndo, dessa vez sem o tradicional mergulho. Achamos importante tirar um tempinho para conversar. Júlia queria saber mais sobre o que eu pretendia fazer.
O que eu tinha em mente para o início era comunicar aos meus colegas e saber se eles aceitariam me atender. Se sim, marcaria o início do acompanhamento; se não, iria atrás de outros profissionais. Não seria tão difícil, pois conheço vários excelentes como eles, mas eu tinha certa preferência pelos meus amigos, porque não precisaria mudar muito a minha rota. Geralmente, tenho dias bem corridos, algo que eu não queria era modificar muito a minha rotina.
Juh me perguntou se eu pararia de atender. Eu já tinha pensado sobre isso, me sentia apta para continuar o meu trabalho, mas, se a recomendação fosse fazer uma pausa, eu aceitaria sem resistência.
— Você tá com medo? — Ela questionou, sentando no meu colo.
— Não... — Respondi pensativa. — O meu medo é só não ser uma boa paciente, querer fazer uma autoavaliação a todo tempo e atrapalhar o progresso do tratamento, entende?
— Acho que você vai se sair bem, amor. Vai dar tudo certo, você vai ver! — Juh falou e me deu um selinho.
— Deus te ouça, amor... — Finalizei, mas sem muita convicção.
Eu queria muito crer nisso, porém sabia que seria muito difícil. Eu tinha um verdadeiro caos dentro de mim.
Voltamos para casa, acordamos os guris e fomos tomar banho enquanto eles faziam o mesmo.
— Gatinha, você não quer fazer meu dia começar ainda mais animado, não? — Perguntei, segurando-a pela cintura e a puxando para mim.
— Huuuuuum... — Ela riu como se pensasse no assunto. — Não quero me atrasar, mas eu prometo que a gente comemora à noite para finalizar o dia bem, pode ser? — Propôs e virou para me beijar.
— Olhe lá o que você tá me prometendo, porque eu vou cobrar. — Falei no ouvido dela, que riu e novamente me beijou.
Quando já estávamos a caminho do colégio, Juh abriu um áudio da minha sogra, que dizia em um tom animado: "Filha, precisamos conversar com vocês, principalmente com você. Se puderem dar um pulo aqui no final de semana, seria bom, mas se não der, nos avise que daremos um jeito de ir aí."
— Xiiiii, mamãe, o que a senhora aprontou? — Perguntou Mih, de forma natural, e nos fez rir.
— Acho que a mamãe se encrencou, viu?! — Brinquei.
— Pior que não faço ideia do que possa ter acontecido. — Disse Juh.
— A senhora vai ficar de castigo. — Zoou Kaique.
— Só indo lá para descobrir. Confirma no final de semana. — Falei, estava curiosa.
— Tem certeza? Não te atrapalha com... — Júlia vacilou, mas deu continuidade ao seu pensamento. — Não vai atrapalhar sua rotina?
— Não, vai estar tranquilo e quero saber logo o que você aprontou. — Brinquei, e as crianças riram.
Os deixei na escola e fui direto para um prédio comercial que fica em frente à clínica. Como não teríamos silêncio lá durante a ampliação, precisava encontrar um lugar temporário para os atendimentos.
Gostei e tinha a quantidade de salas que eu precisaria. Assinei um pré-contrato para reservar, eu não sabia o tempo de obra ainda. À tarde, eu já teria uma estimativa, pois ia conversar com a arquiteta, o engenheiro e o mestre de obras.
Um pouco antes do almoço, fiz uma reunião com todos os funcionários, comunicando sobre as modificações que seriam feitas e nosso provável futuro local de trabalho. Quando a maioria saiu, pedi que meus amigos ficassem e finalmente abri o jogo com eles sobre o que eu achava que estava acontecendo comigo.
Foi uma situação um pouco cômica. O clima entre nós não estava tão favorável por conta das últimas discussões. Aí fui falando sobre o que havia observado sobre o meu comportamento e deixei claro que precisava de ajuda para me reerguer e colocar a cabeça no lugar. Ficaria feliz se pudesse contar com eles.
Eles são muito importantes para mim, e eu sou o tipo de pessoa que consegue superar algumas barreiras em nome do amor e da amizade. Não estávamos vivendo o melhor momento de nossas vidas, porém a confiança que tenho na nossa relação e na competência deles era maior do que aquela fase.
Para mim, foi engraçado, porque eles foram murchando, derretendo, como se fossem um sorvete no meio do deserto do Saara, sendo que antes estavam bem fechados.
— Não precisam me olhar como se eu fosse um alienígena — brinquei, e ninguém riu.
Mas entendia perfeitamente o susto. Às vezes, a gente parece estar bem por fora, mas a cabeça está um turbilhão por dentro. Eu continuava sorrindo, brincando, falando normalmente, mas a minha mente estava cheia de preocupações e pensamentos que não paravam de correr, como se estivessem tentando encontrar a saída de um labirinto. Era como se os problemas fossem grandes demais para que eu os encarasse de frente, então a minha mente começava a tentar fugir, a procrastinar, a buscar distrações em esforço físico ou entretenimentos. A sensação era de estar o tempo todo tentando controlar algo que parecia estar escapando pelas mãos, como se fosse areia escorrendo pelos dedos, e o estresse ia crescendo a cada dia, enquanto eu tentava me manter em pé, sem que ninguém percebesse o peso que eu carregava... Era uma luta silenciosa, um fardo invisível e pesado. O meu exterior e o meu interior pareciam ser mundos completamente diferentes.
Eu entendia o susto deles ao me ver nessa situação, pois me viram enfrentar e superar tantas adversidades no passado. Desde o esforço para me manter na faculdade até a prisão em um relacionamento tóxico, passando pela privação das minhas próprias vontades, agressões e muitas outras questões sérias. Tudo isso parecia me empurrar para um lugar sem saída, mas consegui me reerguer e seguir a vida de forma saudável. Agora, quando finalmente estava no meu melhor momento, com uma esposa amorosa, que sempre se preocupa com o meu bem-estar, filhos incríveis sendo criados com o melhor de nós e uma situação financeira favorável, apesar de não estar satisfeita com meu desempenho no trabalho, os resultados permaneciam de alta qualidade. E, ainda assim, minha mente resolveu pirar... São coisas que sabemos que podem acontecer com qualquer um, mas não deixa de surpreender quando acontece com um amigo, ainda mais quando não se deixa transparecer.
No fundo, fica como um lembrete da complexidade da experiência humana. Apesar de todo o conhecimento técnico, teoria e ferramentas que adquirimos ao longo da carreira, nunca deixamos de ser vulneráveis como qualquer outra pessoa. Costuma-se pensar que, por estarmos imersos nesse universo, temos a capacidade de evitar ou lidar com tudo de forma mais eficiente. Mas, na realidade, a saúde mental não é algo linear ou previsível. Às vezes, o peso se acumula de maneira silenciosa e, por mais que saibamos reconhecer os sinais, não estamos imunes à nossa própria vulnerabilidade. Passar por isso de maneira tão discreta, sem deixar transparecer o que está vivenciando, é também um convite à reflexão sobre como muitas vezes ocultamos nossas lutas internas, mesmo sendo profissionais que ajudam outros a enfrentá-las. Isso revela que, independentemente da profissão ou do papel que desempenhamos, somos seres humanos com limitações, e a necessidade de apoio é algo que todos, sem exceção, precisam.
— Vocês me aceitam como paciente? — Perguntei, enquanto o silêncio insistia em reinar.
Após algum tempo, conseguimos montar um esquema legal. Me senti até especial, parecia uma força-tarefa a junta médica que foi criada.
Mostrei a rotina que estabeleci e encaixamos as sessões de terapias e o atendimento psiquiátrico. Naquele mesmo dia à tarde, eu teria a minha primeira consulta com João, o meu amigo que é psicólogo. Tem Laura também, que é ótima no que faz, contudo, ela cuida da cabeça da minha muié. Todos nós achamos melhor não misturar as coisas.
Recebi um carinho muito grande de todos, eles me deram força e me elogiaram pela coragem de me abrir, especialmente para eles, que são meus colegas (da área 🤣) e amigos.
Tem males que vêm para o bem. Pelo menos conseguimos restabelecer melhor uma comunicação profissional. Ela não havia sido perdida, mas voltou a se tornar mais amigável e descontraída. É o clima que gosto de manter em todos os lugares que já trabalhei.
Assim que encerramos, fui correndo receber o pessoal da obra que já me esperava. Me desculpei pelo atraso e conversamos sobre a ampliação. Eu solicitei a presença dos três porque detesto quando ficam jogando as respostas que preciso de um para o outro. Foi uma decisão acertada, porque consegui expor minhas ideias e recebi todas as informações que até então eu precisava.
Quando terminei essa reunião, percebi que talvez não fosse tão legal ter marcado a terapia para aquele dia, mas também não queria furar logo de cara. Eu me sentia completamente exausta, fiquei conversando um pouco com Juh, que me incentivou a prosseguir e entrei na sala do João quando o último paciente agendado dele saiu.
A primeira consulta na terapia, principalmente quando há um problema evidente, nunca é de leve. Durante diversos períodos da minha vida, já fiz acompanhamento psicológico para me ajudar melhor a lidar com questões da minha vida, porém essa mexeu bastante comigo. Apesar de estar em uma posição vulnerável, acredito que por João ser um amigo, me senti à vontade. A vontade até para ficar em silêncio sem qualquer constrangimento.
Permaneci alguns minutos ali, calada, tentando organizar o que eu ia dizer. Ao mesmo tempo que eu sabia o que desejava falar, parecia tão difícil colocar em palavras o que eu estava vivendo, como se eu tivesse uma bagunça total que não sabia como organizar. Comecei a relatar, e ele me ajudou fazendo algumas perguntas essenciais para iniciar uma abordagem focada nas minhas necessidades. Naquele momento, foi como se todas as questões que estavam rodando na minha cabeça começassem a ganhar forma.
Trabalhar com um bom profissional é bom, mas ser atendida por um, não tem preço.
Eu comecei a falar sobre tudo (nem gosto 🤣): o estresse no trabalho, as pressões que eu estava enfrentando, a luta para manter tudo funcionando bem, mas sem conseguir lidar com minhas próprias emoções. Sentia a minha cabeça sobrecarregada e não estava satisfeita com minha atuação profissional.
Eu não esperava que fosse tão intenso. A sensação era aliciadora, mas muito estranha. Ao mesmo tempo, eu comecei a perceber algumas coisas sobre mim, algumas reações e padrões que não havia notado antes, e foi um pouco assustador entender que eu estava lidando com tanto e não tinha me dado conta de como aquilo estava me afetando. Tentei não focar em analisar minhas próprias palavras, porém não consegui.
Quando a sessão terminou, eu me senti exausta, coloquei muita coisa que estava guardada para fora de vez e ouvi. Eu não saí de lá com respostas, óbvio, era a minha primeira de muitas sessões, mas percebi que, talvez, a jornada para me entender melhor seria mais longa do que imaginei. Não importava, contanto que a confusão fosse desfeita.
Um combinado feito em relação ao trabalho foi: fazer de tudo para resolver coisas relacionadas à profissão no tempo regulamentar.
~ Agora me digam, como fazer isso organizando uma obra na clínica?
Quando ia saindo, a recepcionista me entregou uma encomenda que tinha chegado para mim. Uma rosa com um cartãozinho escrito:
"Parabéns pelo primeiro passo, meu amor. Estou com você nessa corrida também! - Com carinho, sua gatinha!"
Um inevitável sorriso brotou no meu rosto. Ela é demais...
Fui buscar meus amores no colégio, aquele dia me deixou zonza, parecia ter vivido 48h em menos de 24h.
Os levamos para o jiu-jitsu. Mesmo com o braço quebrado, Mih fez questão de ir. O sensei disse que ela vestiu o kimono, alongou o que pôde e ainda incentivou o irmão e os colegas enquanto assistia. No próximo treino, ela ficaria de juíza dos rolas (claro, infantis). Ela adorou, Milena realmente ama o esporte.
Juh e eu ficamos esperando no carro. Ela veio para o meu colo e me deu o que eu mais precisava: o seu abraço. Agradeci pela rosa, por ela ser tão altruísta, generosa e atenta às necessidades que eu nem imagino que tenho.
Sem essa muié ao meu lado, eu não sei o que seria de mim.
Ela parecia querer conversar, mas, ao perceber que eu estava mais quieta, reflexiva, respeitou o meu momento e ficamos em silêncio, só fazendo carinho uma na outra.
Seguimos para casa. Kaká, muito animado com suas primeiras aulas, perguntando para Mih quando ela achava que ele trocaria de faixa. Milena explicou que demorava um pouco, mas que ele era muito bom e, com certeza, avançaria no tempo mínimo.
Quando chegamos, fiz questão de brincar um pouco com eles dois e com Brad, porque sabia que, após o banho, não ia descer como era de costume. A gente sempre fica junto fazendo alguma bobeira quando eles não têm atividades escolares.
Dito e certo, me joguei na cama e fiquei esperando Juh. Ela entrou no quarto e eu falei para ela pedir uma pizza. Além de não estar disposta para ajudá-la com nossos filhos, queria muito a companhia dela, e assim minha gatinha fez.
Os meninos subiram para me dar boa noite. Falei que estava só com dor de cabeça.
— A senhora pode sentir um pouquinho de dor de cabeça amanhã também para a gente comer pizza de novo? — Brincou Kaique, e eu ri.
— Vai para a cama, seu relaxado. — Falei, o empurrando, enquanto ele tentava me agarrar a todo custo.
— É brincadeira, mãe. — Ele confirmou, me dando beijinhos.
— A senhora tomou algum remédio? — Mih questionou, quando o riso cessou.
— Acho que é só cansaço, amanhã estou cedinho no quarto de vocês gritando para acordarem. — A tranquilizei.
Os dois ainda ficaram um tempinho ali por cima de mim. Na verdade, estava um pouco cedo para dormirem. Juh chegou e pediu que eles fossem para o quarto. Deixamos eles jogarem, o que não é comum no meio da semana, muito menos antes de dormir, contudo, foi necessário. Aquele foi um dia atípico.
Enquanto Juh os acompanhava, recebi uma mensagem da minha sogra falando sobre o final de semana. Ela tinha um tom empolgado, portanto, eu não me preocupei. Eu estava bem curiosa para saber do que se tratava.
— Amor, sua mãe me mandou mensagem falando da nossa ida lá, meio que confirmando — falei, quando minha gatinha retornou.
— Nossa, de novo isso? O que você acha que é? — ela me questionou.
— Será que eles vêm morar aqui em Salvador? — perguntei.
— E deixar a pousada? Nunca... Minha mãe nunca conseguiria — Júlia respondeu.
— Mas eles estão vindo bastante para cá, reparou? — disse-lhe, e ela balançou a cabeça como se estivesse em dúvida.
Juh deitou-se finalmente e me chamou para um abraço. Foi terno, acolhedor e bem apertado.
Eu fechei os olhos por um momento, sentindo o seu toque e o conforto do seu corpo junto ao meu. Foi como se todo o peso que eu carregava durante o dia tivesse sido finalmente depositado naquele abraço. E, sem perceber, as lágrimas começaram a cair. Eu estava chorando, e aquilo me pegou de surpresa. Só então percebi que havia passado o dia inteiro lidando com tantas emoções, sem deixar que as lágrimas caíssem. Foi de forma inconsciente; eu não tinha engolido o choro nem sequer tentei me manter firme. Acredito que somente naquele instante, a sós, naquele gesto de carinho da minha esposa, eu me senti segura para liberar o que ainda estava preso. Foi como se, na terapia, eu tivesse quebrado algumas barreiras e ali, naquele abraço, deixasse desmoronar. Liberei algo importante, eu precisava chorar.
Ouvia sua voz suave me acalmando, me dando a certeza de que estava comigo, sempre estaria, e que tudo ficaria bem. Juh afirmava e reafirmava que nós duas estávamos juntas nessa.
Seus carinhos em mim foram todos necessários, e fiquei em seus braços até me tranquilizar totalmente. Após algum tempo em silêncio, ela perguntou: — Se sente melhor, Lore?
Ergui a cabeça, encarando-a diretamente nos olhos, e respondi: — Se eu soubesse que você ia me consolar dentro desses seus saborosos peitos, tinha chorado bem antes.
— Amoooor! Eu não acredito nisso! — ela falou, rindo.
Eu ri também e a apertei. Dei um beijinho em sua boca e me joguei para o lado.
— Seu senso de humor segue intacto... Adoro isso em você... — Juh comentou.
— Estou melhor, gatinha... Obrigada, tá? — finalmente respondi, passando o dedo em seu rosto em forma de carinho.
Júlia me abraçou e eu adormeci nos seus braços, me sentindo extremamente leve e... Bem!