Dores do amor

Um conto erótico de Ana
Categoria: Trans
Contém 1945 palavras
Data: 24/02/2025 02:51:20

— Ainda dói às vezes, sabia? — comentou Paula, deslizando os dedos de leve pela lateral da saia, como se pudesse sentir a marca sob o tecido. — Faz meses e, de vez em quando, arde só de lembrar.

— Normal, dizem que algumas sentem dor por anos — respondeu Gabriela, cruzando as pernas com cuidado. — Eu mesma demorei semanas pra me sentar direito.

Ana ouviu em silêncio, a mão descansando discretamente sobre o quadril. Ainda podia sentir o calor fantasma da marca em sua pele, mesmo depois de semanas. Lembrou-se do cheiro do ferro quente, da sala fria e dos bloqueadores de som. Lembrou-se dos gritos — seus próprios gritos — abafados por paredes espessas.

— É estranho — murmurou Fabiana, quebrando o silêncio — como uma coisa que dizem simbolizar amor e compromisso pode doer tanto.

Os olhares se voltaram brevemente para Ana. Ela manteve o sorriso no rosto, mas ele não chegou aos olhos. Cada uma ali carregava a marca. Cada uma com sua história. E, embora ninguém dissesse em voz alta, todas sabiam que aquele símbolo tinha um peso que ia muito além da pele queimada.

A sala ficou em silêncio por um momento após o comentário de Fabiana. As amigas retomaram a conversa aos poucos, mas Ana não conseguia se concentrar. As vozes ao redor soavam distantes, abafadas. Sua mão deslizou instintivamente para a nádega esquerda, onde a pele, embora curada, ainda parecia queimar em sua memória.

Era impossível esquecer.

O cheiro metálico do hospital invadiu sua mente. As paredes frias e brancas, sem janelas, pareciam se fechar ao seu redor. A sala da marcação era pequena, revestida com painéis cinza que abafavam qualquer som. Bloqueadores de som, disseram. Para que os gritos não vazassem.

Ana lembrava-se de ter tremido ao ver a maca estreita no centro da sala. Duas enfermeiras a aguardavam, impassíveis. Paulo estava lá, do lado de fora — não era permitido aos maridos entrar. Diziam que era um momento da mulher, algo que ela precisava suportar sozinha. Uma prova. Um rito de passagem.

A voz da profissional soou fria e ensaiada em sua lembrança:

— Vai doer. É normal. Respire fundo.

Ana se lembrou do metal brilhante sobre a bandeja. O ferro quente, incandescente, formando o símbolo que agora carregava para sempre. Um traço curvo com linhas finas em volta, elegante e cruel. Bonito, diziam. Um símbolo de compromisso. De pertencimento.

Ela fechou os olhos. A dor.

Foi pior do que imaginava. Uma queimadura profunda, que parecia rasgar não só a pele, mas algo dentro dela. Quis gritar — e gritou —, mas o som morreu ali mesmo, bloqueado pelas paredes. As lágrimas escorreram antes que percebesse. As mãos agarraram a maca, os nós dos dedos esbranquiçando.

“Seja forte.” Ela repetia para si mesma, mas a dor parecia não ter fim. Cada segundo se esticava em horas.

Quando tudo terminou, o cheiro de pele queimada permaneceu no ar. As enfermeiras agiram rápido: pomadas, curativos, e orientações práticas. Nenhuma palavra de conforto. Ana mal conseguia se sentar.

— Levante-se quando estiver pronta — disseram, como se o que tinha acontecido ali fosse algo comum.

Mas não era.

Ela se lembrava de ter saído da sala com as pernas trêmulas. Paulo a esperava do lado de fora. Ele sorriu ao vê-la, mas o sorriso não alcançou os olhos. Ana se perguntou se ele sabia o quanto havia doído. Se ele sabia que uma parte dela tinha ficado naquela sala.

— Você foi incrível — ele disse, abraçando-a de leve, tomando cuidado para não tocá-la onde a marca ainda ardia. — Agora somos um do outro. Pra sempre.

Ana respondeu com um aceno de cabeça e um sorriso frágil. Mas dentro dela, algo se contorcia.

De volta ao presente, sentada na sala com as amigas, Ana forçou um sorriso ao ouvir Gabriela fazer uma piada. Mas a lembrança da sala fria e do ferro quente ainda queimava em sua mente.

A marca estava ali. Invisível sob o tecido do vestido, mas real, profunda. Uma cicatriz que contava uma história de amor, posse e dor.

— Tem dias que eu ainda me pergunto se isso é mesmo certo — comentou Paula, rompendo o breve silêncio. Ela cruzou as pernas devagar, ajeitando o tecido do vestido sobre a coxa. — Quer dizer, é o símbolo do compromisso, claro… Mas precisava doer tanto? Às vezes eu acho que é uma dor que não tem propósito.

— Propósito tem, Paula — retrucou Gabriela, com um tom mais firme. — É pra lembrar a quem pertencemos. É uma prova de amor. Se fosse fácil, não teria valor. Meu marido diz que a marca mostra que a gente aceitou tudo o que o casamento representa.

— E desde quando amor tem que doer? — questionou Fernanda, a única cis do grupo, olhando as amigas com um ar pensativo. — Não me levem a mal, eu entendo o significado. Mas do jeito que é feito… sem anestesia, com todo aquele ritual? Eu fico pensando se não existe outra forma.

Fabiana, até então calada, passou a mão pela barriga arredondada de oito meses, pensativa.

— Acho que é mais sobre eles do que sobre a gente — disse ela, sem encarar ninguém em particular. — Eles precisam saber que somos delas. Que passamos por algo que vai ficar na nossa pele pra sempre. Talvez seja isso que mais doa.

Ana permaneceu em silêncio, a mão deslizando inconscientemente pelo quadril, onde a marca ainda ardia em sua memória. Ela sabia exatamente o que Fabiana queria dizer.

A tarde estava perfeita para o chá de fralda. A casa de Ana estava decorada com flores suaves e balões em tons pastel. As amigas conversavam animadas, enquanto Ana, com a barriga já grande na reta final da gravidez, sorria ao ouvir as brincadeiras e conselhos. Mas, apesar da descontração, todos sabiam que o momento mais aguardado ainda estava por vir.

— Ele tá vindo mesmo? — perguntou Paula, ajeitando-se na cadeira, os olhos brilhando de curiosidade. — João? O intelectual?

— Claro que está — respondeu Fabiana, com um sorriso. — É o chá da Ana. Ele nunca perderia.

Enquanto esperavam, Ana não pôde evitar um sorriso ao pensar em João. Sempre fora assim. Desde pequena, João exercia sobre ela um fascínio que ninguém mais conseguia. Lembrava-se de quando ele ainda estudava na faculdade do estado. Ela, apenas uma criança, corria para encontrá-lo sempre que ele voltava à cidade. Diferente dos outros adultos, ele nunca a tratou como alguém que sabia menos. Quando brincavam juntos, ele explicava tudo com paciência — como se ela fosse capaz de entender o mundo tanto quanto ele.

“Você tem a mente afiada, Ana.” Ela lembrava com carinho de como ele dizia isso, sorrindo, como se enxergasse algo nela que nem ela mesma via.

E, como se sua chegada tivesse sido convocada por essas lembranças, a porta se abriu. João apareceu, elegante como sempre, vestindo um terno leve e um sorriso acolhedor. Os olhares se voltaram imediatamente para ele. As conversas cessaram. Era como se, de repente, tudo na sala girasse em torno de sua presença. Seu andar era calmo e confiante, e cada movimento parecia medido. Havia algo em João que impunha respeito e admiração sem esforço.

— João! — exclamou Ana, os olhos brilhando. Ela se levantou com um pouco de dificuldade, e ele a abraçou com carinho.

— Minha querida, você está radiante — disse ele, afastando-se um pouco para observá-la. — Tão linda e tão próxima de um momento que transcende o comum. A gestação, minha cara, é o fenômeno mais sublime da natureza humana.

As amigas de Ana se aproximaram discretamente, formando um círculo ao redor deles. Era sempre assim. João tinha o dom de capturar a atenção de todos, como se carregasse em si as respostas para qualquer pergunta. Seus olhos brilhavam com uma inteligência calma, e sua voz, firme e pausada, dominava o ambiente com naturalidade.

Antes que João pudesse se sentar, uma voz infantil quebrou o silêncio.

— João, o que você faz no governo? — perguntou uma menininha de olhos curiosos, segurando a barra do vestido. — Todo mundo diz que você sabe de tudo. É verdade?

João sorriu, abaixando-se para ficar na altura da criança.

— Ah, essa é uma boa pergunta. — Ele olhou para a sala, agora novamente em silêncio. — Vamos ver… Como posso explicar? O que faço está além de simples definições. Trabalho junto ao primeiro-ministro mundial, ajudando a moldar as decisões que afetam a vida de todos. Diríamos que atuo na engenharia invisível da sociedade.

A criança franziu a testa, pensativa.

— E como você aprendeu tudo isso?

— Com estudo e contemplação. — João se levantou, seus movimentos elegantes. — A Faculdade do Estado é a única instituição do país destinada a formar aqueles capazes de compreender e administrar a complexidade do mundo. Poucos têm o privilégio de estudar lá. Os intelectuais, como eu, carregam o dever de refletir sobre o futuro. Somos guardiões da ordem, arquitetos de um equilíbrio delicado.

As mulheres se entreolharam, impressionadas. Paula suspirou discretamente, e Fernanda, com um sorriso quase tímido, comentou:

— Sempre achei fascinante como você fala, João. É como se enxergasse além do que qualquer um de nós pode ver.

João inclinou levemente a cabeça, aceitando o elogio com um sorriso contido.

— Talvez porque nossa função seja justamente essa: olhar além do óbvio, interpretar o que não é dito. A estabilidade da sociedade depende disso.

Ana observava tudo em silêncio. Ela sempre se impressionava com a forma como João parecia pairar acima das preocupações comuns. Seu tom sofisticado e seguro fazia com que até as palavras mais complexas parecessem claras.

Mais tarde, enquanto os convidados ainda se distraíam entre doces e conversas animadas, Ana percebeu João afastado, próximo à janela, observando o quintal com um olhar distante. Aproveitando a oportunidade, aproximou-se lentamente.

— Pensando no quê? — perguntou, encostando-se ao batente ao lado dele.

João sorriu levemente antes de virar o rosto para ela.

— Em você. — Ele suspirou, estudando-a com aquele olhar atento que sempre tivera. — Eu precisava ver isso. Não poderia perder essa imagem por nada.

Ana arqueou as sobrancelhas, confusa.

— Isso?

— Você. Grávida. — A resposta veio sem hesitação. — Uma transformação magnífica. Não apenas física, mas essencial. Seu corpo, sua mente, tudo se moldando para criar vida. É um evento que transcende qualquer lógica.

Ela sorriu, mexendo distraidamente nos próprios dedos.

— É assim que você vê? Uma transformação?

— Claro. — Ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Como você tem sentido isso? A mudança? Quero detalhes.

Ana riu.

— Você realmente quer detalhes?

— Todos. — Ele cruzou os braços. — Como estão os seus sonhos? Suas percepções? Os toques? Como sente sua pele? Como sente o peso da vida crescendo dentro de você?

Ela ficou em silêncio por um instante, surpresa com a profundidade da pergunta. Então, começou a falar. Aos poucos, foi descrevendo cada sensação, desde os primeiros meses até aquele momento, o peso do ventre, a hipersensibilidade, os pensamentos confusos que iam e vinham.

João escutava sem interromper, apenas acenando lentamente, os olhos semicerrados, analisando cada palavra como se estivesse processando uma grande verdade.

Quando ela terminou, ele sorriu de leve.

— Fascinante. — Ele murmurou. — Você é mais forte do que imagina.

Ana observou aquele olhar calmo e impenetrável e percebeu, mais do que nunca, a confiança inabalável de João. Um homem que parecia ter todas as respostas. Alguém que nunca hesitava.

Foi então que algo lhe ocorreu.

Se havia alguém a quem poderia fazer aquela pergunta… seria ele.

Ela umedeceu os lábios, respirou fundo e o encarou nos olhos.

— João… Se eu te perguntar algo muito pessoal… muito íntimo… você responderia com total sinceridade?

João permaneceu em silêncio por um instante. Então, inclinou-se levemente para frente, o olhar fixo no dela.

— Sempre.

Ana hesitou. O ambiente ao redor parecia ter sumido. Então, finalmente, ela perguntou.

Mas sua voz foi engolida pelo vento leve que soprou pela janela.

João ouviu. Seu olhar permaneceu impassível, mas um brilho diferente passou por seus olhos.

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