Acho que Ciço não deve está acostumado a acordar com as galinhas, mas o Gean — galo de estimação da Bisa — tem o hábito de cantar perto da janela do meu quarto, Ciço resmunga algo e cobre a cabeça com o travesseiro, diferente de mim que já me levanto e começo a me espreguiçar inteiro, que saudades que eu tava de começar meu dia assim.
Deixo meu amigo dormir mais um pouco enquanto vou tomar meu banho matinal, no sitio eu tenho tanto um quarto fora da casa quanto um banheiro também, quando saio do quarto e cruzo o quintal até o banheiro já sinto o jeito de café com cuscuz vindo da cozinha da Bisa — eu amo quando ela faz cuscuz — deve ter feito um café da manhã caprichado porque estamos com visita, no inteiro é assim tratamos visita como se fossem reis.
— Acordo dorminhoco a Bisa já está nos chamando — digo para Ciço quando o encontro no quarto ainda dormindo.
— Já vou levantar — sua cara de inchada de sono é muito engraçada — você sabe onde posso pegar sinal aqui?
— Na cidade a alguns km de distância — lembro ele de que embora tenhamos energia elétrica não temos nem sinal e nem muito menos wifi.
— Tinha esquecido desse detalhe.
— Podemos ir na cidade mais tarde e aí você vê suas mensagens — digo.
— Certo, o Ramon falou algo ontem sobre o rio que está começando a encher.
— Sim, o rio fica na cidade mesmo, então você com certeza vai ter sinal por lá, mas como hoje ainda é sexta temos alguns trabalhos antes da diversão — Ciço abre um sorriso e finalmente levanta da cama.
A Bisa está tratando o Ciço como se fosse neto dela também, servindo ele de tudo que tem na mesa, e ele por sua vez come tudo sem cerimônia, mas ele não é o único feliz, Ramon está com um sorriso de ponta a outra, que comigo aqui as tarefas vão ser divididas. Depois de comer digo para o Ciço descansar, mas ele insiste em contribuir no trabalho então levo ele para me ajudar a dar comida dos animais que criamos aqui, a Bisa sempre gostou de criar galinhas e porcos, o pai Gustavo fica com a aorta, a maior parte fica para nosso consumo próprio, mas temos alguns clientes antigos na cidade que querem produtos naturais e totalmente livres de agrotóxicos.
— Acho que nunca vi um porco de perto — Ciço está encantado.
— A gente criava carneiro também, mas é que os gêmeos se apagaram tanto que a Bisa parou de criar.
— Qual foi o problema? — Ciço pergunta confuso.
— Rapaz, se você visse o choro que foi para ela não matar a Menina — estou rindo por lembrar da cena — foi tanta briga que a Bisa acabou vendendo a Menina enquanto estavam na escola.
— Espera, o nome do carneiro era Menina? — Ele abre um sorriso.
— Quando compramos eles pensavam que era uma ovelha, o Luís colocou na cabeça que era ela e mesmo a gente dizendo que não era ele e o irmão dele colocaram o nome do carneiro de Menina e ficou.
— Seus irmão são muito comédia — ele tem razão, os gêmeos são duas figuras, não sei quem é o mais sapeca dos dois.
Depois de lavar o chiqueiro e dar a comida e água dos porcos vou pra orta ajudar meu pai, Ciço fica com Ramon ajudando com as galinhas, mesmo sendo um menino rico criado em berço de ouro Ciço é zero frescura, ele faz o que tem que fazer sem reclamar se sem nojinho, estou surpreso, sabia que ele era legal, mas imaginei que pudesse ser um pouco mimado, afinal de contas o cara sempre teve tudo.
— Como você está? — Meu pai perguntou casualmente, mas sei que ele ainda está preocupado comigo.
— Estou legal, na verdade voltar para casa está me fazendo muito bem — ele dar umas batidinhas nas minhas costas — sou um cara do inteiro, Fortaleza é muito agitado para mim.
— Filho, você pode se dar bem em qualquer lugar, não se limite.
— Eu sei pai, é só que realmente gosto da minha vida aqui — digo reflexivo.
— Mas? — Ele me entende mais do que ninguém.
— Passei tanto tempo tendo raiva do meu pai e agora que ele pediu desculpas eu só quero perdoá-lo e seguir de boas — não entendo como toda aquela raiva simplesmente desapareceu.
— Ele é seu pai filho, a bíblia diz que devemos honrar pai e mãe, sentir ódio dele é um pecado — só pode ser coisa de Deus mesmo.
— É estranho, sabe? — continuo, olhando para o chão enquanto falo. — Passei anos guardando tudo aquilo, achando que nunca ia conseguir perdoar. E agora, de repente, parece que tudo isso não importa mais. É como se um peso tivesse saído das minhas costas.
— Filho, a vida é feita de fases — ele diz, colocando a mão no meu ombro. — Às vezes a gente carrega coisas que nem deveria, só porque acha que precisa. Mas quando a gente para e olha pra trás, vê que muita coisa não valia o esforço. Perdoar não é sobre esquecer, é sobre se libertar.
Meu pai é o cara mais sábio que já conheci, ele sempre sabe o que dizer e não importa a situação ele é amoroso e gentil, mesmo quando precisa ser rígido comigo ou com os gêmeos, ele nunca grita ou se exalta, acho que no resultado final dessa equação na qual minha vida se resume me deixar aqui foi a melhor coisa que meu pai podia ter feito por mim, acho que por isso consigo perdoá-lo tão fácil assim.
— Pai ele me quer que eu vá vê-lo — digo com cautela, não quero que o pai Gustavo sinta que estou trocando ele.
— E você quer ir?
— Não sei — as palavras me fogem e não sei como me expressar.
— Ricardo, eu sou seu pai do coração, mas ele ainda é seu pai e vocês tem todo direito do mundo de se reconciliaram — esse homem é um santo.
— Não quero que o senhor ache que não ligo — ele me interrompe.
— Ricardo eu estou aqui e vou continuar, dê uma chance a ele pois perdoar é de Deus, e não tem forma de amar mais a deus do que o perdão e a caridade, ele está em busca de retidão então vamos estender a mão e ajudá-lo, sem culpa, sem vaidade.
— Te amo pai — o abraço com toda minha força, pois só nos braços do meu pai é que encontro a verdadeira paz e segurança para enfrentar a vida.
— Também te amo Ricardo, agora vamos terminar esse serviço para você poder levar o Ciço na cidade, ele vai gostar de dar uma voltinha.
— Tá certo.
Finalizamos o serviço bem a tempo do almoço e olha minha mãe e a Bisa não param de surpreender, fizeram a carne do jeito que eu gosto de comer, e tem tanta coisa gostosa na mesa que nem sei por onde começar, estava com saudades dessa comida, das conversas com meu pai enquanto trabalhamos, do bom o humor da Bisa e até do calor que faz aqui no sítio, estava com saudades de tudo.
Comemos tanto que foi unânime a ideia de deitar um pouco depois do almoço, Ramon armou umas redes para gente no alpendre para descansarmos depois do almoço, a calmaria do inteiro combinado com o fato de termos acordado bem cedo para trabalhar me fez pegar no sono, vou ter que me acostumar com os horários da roça de novo, mas não fui o único, Ciço pegou num sono bom que durou a tarde toda e assim perdemos a hora para tomar banho de rio, mas temos tempo para isso ainda.
— Não acredito que dormi e perdi o banho de rio — Ciço diz meio triste.
— Podemos ir amanhã depois do almoço, mas aí vai ter um pagode muito bom hoje lá no Vibe Nordestina.
— Não sei o que é isso mais se é pagode eu to dentro — Ciço já recuperou o ânimo.
— Bem partiu então, vamos para esse pagode hoje.
Ramon está mais do que feliz com seu parceiro de farra de volta, Ciço também parece muito animado, mas sei que parte dessa ansiedade é para ver as mensagens que recebeu no celular, ainda bem que ele não é um desses viciados em telas, definitivamente o sítio é um pesadelo para quem é viciado em celular.
De carro levamos duas horas para chegar no Vibe, nossos amigos já se encontram no local e assim que me veem é uma festa, saio comprimentando todos e aroveito para ir apresentando o Ciço pros moleques, umas meninas já começam a seca-lo assim que passa pela entrada do bar, até as acompanhadas, meu amigo é carne nova e muito lindo, claro que iria chamar atenção por aqui, mas para o azar delas ele já foi fisgado e não tem olhos para mais ninguém além do Dan.
Independente de se morar na capital ou no interior não importa se você é hetero e está em um pagode o assunto é universal — futebol — ainda mais com meus amigos que são fominhas de bola que nem eu, a banda está passando o som, mas tem um forrozinho na caixa de som para ir esquentando a turma.
— Então Ciço gosta de pagode? — Umas das solteiras da turma pergunta já com malicia na voz.
— Claro, até arranho no ukulele — até eu fico surpreso.
— Não te vi indo em nenhum lá em Fortaleza — digo.
— É que pagode é o limite pro Dan, temos um trato de ir num pagode uma vez na vida e outra na morte — Ciço abre um sorriso só por falar do namorado.
— Quem é Dan? — A jovem pergunta e Ciço responde sem nem exitar.
— Meu namorado.
— E ele não veio com você? — Um dos caras perguntou.
— Não, mas é como se ele tivesse aqui do meu lado — Ciço que não é besta já deixa claro para quem quiser dar em cima dele que não vai ter sucesso.
Minha turma não é muito mente aberta, mas a galera meio que se acostumou comigo pegando uns carinhas ai de vez em quando então eles não gritam com o Ciço por namorar um cara, fico aliviado até que ver que eles estão se dando bem, também não tem como alguém não gostar do Ciço, ele tem uma presença magnética.
Quando a banda entra começa logo com as pedradas, incluindo uma que até agora estou sem acreditar que é de uma drag, foi preciso pesquisar para ver que os meninos não estavam me tirando, nem o Ciço sabia dessa, e ainda tem quem diga que no interior os moleques não se liga nas novidades. Já conhecia os moleques que estão tocando, eles são feras.
Estou na água até porque estou dirigindo, mas Ramon e Ciço já ficaram parceiros de como, acho que finalmente Ramon encontrou alguém que acompanha ele na cachaça, esses dois bebem suas cervejas feito água, mas de boas, Ciço está merecendo um descanso. As horas vão passando e a festa só anima mais e mais, não consigo ficar parado e logo puxou uma menina para dançar, na pista eu dou o nome tenho que admitir que dançar é comigo mesmo, tanto que antes do final da música já ganhou um beijo.
Ramon também arruma um esquema enquanto Ciço fica na mesa trocando umas ideias com o pessoal, que está só bebendo. Quando a menina com quem estou ficando volta para suas amigas volto para a mesa, mas Ciço não está mais aqui, o pessoal diz que ele saiu com o celular na mão, dou um tempo para ele, mas ele não volta, então vou atrás para saber se está tudo bem.
Aviso ele sentado na calçada fora do bar, não parece tão bêbado, mas está reflexivo, então me aproximo e sento ao seu lado, ele está com o celular na mão e com uma expressão indecifrável, fico um tempo perto dele sem dizer nada até que Ciço abre um sorriso pequeno e empurra meu ombro com o seu.
— Mina gata.
— Estudei com ela, a gente sempre fica quando nos encontramos em festa — digo.
— Massa, já tive uns esquemas assim — Ciço diz rindo e então muda de assunto — liguei para ele, não aguentei.
— E ai? — Até tentei conter minha ansiedade, mas falho.
— Estamos bem, ele disse que está orgulhoso sobre o apartamento e disse que vai pensar sobre morarmos juntos — ele sorri aliviado — disse que me dará uma resposta quando eu voltar.
— Então finalmente se acertaram? — Pergunto.
— Acho que sim, ele disse que está sentindo minha falta, mas que ficou feliz por eu ter vindo e me fez prometer não adiantar minha volta.
— Sério que massa, te falei que ele não ia te deixar.
— Eu sei, só que é tão complicado quando se trata do Dan, não consigo entender ele tão bem quanto gostaria — Ele tem um pesar na voz — eu amo esse cara mais que tudo que já amei na vida Rick e eu sinto que ele me ama, mas.
— Ele não se abre — Ciço me olha e sei que falei exatamente o que ele ia dizer.
— Nunca, o cara é uma rocha, uma fortaleza de segredo, até para sofrer ele sofre só, quando ele diz que me ama meu coração só falta explodir porque sei o quanto é difícil para ele se declarar para mim.
— Dan foi abandonado muito novo, ele cresceu achando que tinha que agradar os pais para que eles não o deixassem de novo, fora que Isa não é muito fácil de lidar também, na escola ele não tinha muitos amigos, então é compreensível que ele tenha se fechado em uma casca para se proteger — Ciço me escuta com atenção.
— Eu não vou deixá-lo, pensei que isso já tinha ficado claro.
— Ele sabe, mas é difícil se apegar, quando se tem tanto medo da rejeição — Dan precisou ser forte em muitos momentos da vida, hoje em dia é um desafio se mostrar frágil para alguém.
— Eu só queria entender se fiz algo de errado, tipo ele começou a se fechar logo quando achei que estávamos nos conectando mais profundamente, depois da viagem estávamos vivendo no céu, mas ai ele começou a fugir de mim — Ciço fala como se fosse algo que tivesse instalado em sua garganta a muito tempo, ele precisa desabafar então deixo que ele fale.
— Sempre dormimos juntos desde que nos conhecemos, mas aí ele começou a pedir para dormir em casa sem mim, depois começou a não querer sair com a gente e tipo sempre me falando para ir sem ele — Ciço respira fundo — ele foi se distanciando cada vez mais, tipo saindo só com Raylan ou simplesmente ficando em casa com a desculpa de querer estudar, comecei a ficar preocupado e também meio sozinho.
— Você tentou conversar com ele ou pelo menos com alguém, um amigo que pudesse te ajudar com isso? — Pergunto, Ciço é tão querido que é estranho pensar nele como alguém solitário sem ter alguém nem para desabafar.
— Não, tipo quem eu achava que era meu melhor amigo estava querendo me roubar o Dan, Raylan é o melhor amigo do Dan e não temos essa mesma liberdade, Guigo acabou se distanciando depois que passou a cuidar mais do pai, então meio que fiquei sem muitos amigos e com meu namorado me dando foras até chegar ao ponto de me pedir um tempo.
— Por isso você ficou tão preocupado daquele jeito, sinto muito Ciço.
— Ah, deixa quieto, já me acostumei — sinto tristeza em sua voz.
— Você é um moleque incrível Ciço, se a galera não te valoriza como amigo é problema deles — ele empurra meu ombro de novo.
— A galera é mais amiga do meu cartão do que minha, por isso passo tanto tempo com Raylan e Guigo, além do Dan eles são os únicos em quem confio — ele me olha e então continua — bem até te conhecer, você é um moleque da hora Rick.
— Você meio que virou meu melhor amigo então sou suspeito para falar, mas você é um amigo incrível, me ajudou muito de verdade — passo o braço por ele o abraçando de lado — pode falar comigo sempre que precisar e até quando não precisar.
— Digo o mesmo Ricardo, acho que, quer dizer, você se tornou meu melhor amigo também.
— Ótimo agora que resolvemos isso vamos voltar pro pagode e quero ver se você manja mesmo, vou pedir para deixarem você tocar — levanto e o ajudo a levantar também — Cicero, vocês vão ficar bem, essa situação toda só serviu para deixá-los mais fortes.
O danado não mentiu, bastou pegar no ukulele que já virou parte da banda, tocou até final da festa, esse moleque é fera de mais, ele está tão feliz que sem pensar muito faço uma filmagem dele tocando e cantando com a banda e coloco no nosso grupo, depois de uns minutos recebo uma mensagem do Dan.
— Obrigado Rick.
— De nada Dan.
— Cuida dele, se o conheço bem ele deve está trilouco.
— Está, mas vai ficar de boas, e você está bem?
— Vou ficar.
— Posso colocar ele num ônibus amanhã bem cedo se você quiser — digo sério.
— Não, deixa ele curtir a viagem, Ciço ama conhecer lugares novos, quando ele voltar vou está aqui esperando por ele — finalmente ele se deu conta antes que fosse tarde.
— Ele te ama Dan, muito mesmo.
— E eu amo ele, muito mesmo — ele manda uma foto com um sorrisinho envergonhado.
— Se cuida Dan.
— Se cuida Rick.
Saímos de madrugada da festa com o bar fechando, é um desafio colocar esses dois festeiros no carro, mas por fim os moleques acabaram me ajudando, em casa ajudo Ramon a entrar em casa e deixo ele em sua cama, depois volto para o carro para levar o Ciço, mas ele está fora do carro escorado na porta olhando para as estrelas.
— Não se tem um céu assim lá em casa — ele diz.
— Não mesmo, agora vamos lá bebinho, prometi para Dan que cuidaria de ti — seus olhos se iluminam.
— Ele está preocupado comigo? — Pergunta todo sorridente.
— Claro, ele se preocupa muito com seu amorzinho — Ciço fica todo bobo agora, estou morrendo de rir do jeito dele.
Como não vou dormir com um ele suado e bêbado do meu lado jogo ele de baixo do chuveiro, ele está menos bêbado do que a última vez que bebemos juntos, então consegue se trocar sozinho dessa vez, ainda sim precisa da minha ajuda para chegar até a cama, afinal o banheiro estás mais distante da cama dessa vez. Com ele devidamente deitado e dormindo vou tomar meu banho e me arrumar para dormir, até tento não pensar no Mauro, mesmo depois de me bloquear ainda consigo sentir uma preocupação com ele, queria saber como ele está e também como o Junior está com tudo isso sobre a sexualidade do pai.