CAPÍTULO 30
A BATALHA DOS LOBOS
O uivo de Sétan ecoou em toda a Enseada, escalou as rochas e chegou ao topo da elevação onde os humanos estavam entrincheirados. Todos souberam na hora que aquele uivo não foi dirigido a alcateia, mas sim para eles que sentiram o sangue gelar em suas veias.
Como se fosse um comando dado por seu general, todos os lobos começaram a uivar ao mesmo tempo. Mais de uma centena de lobos uivando como se estivessem lançando um desafio aos humanos entrincheirados sobre as rochas. Depois de vinte minutos daquela horrível sintonia que representava uma ameaça, um silêncio profundo dominou a linda paisagem da praia. O ar pareceu congelar, pesado e sinistro. Tão pesado que a impressão era que se podia cortá-lo com o uso de uma faca.
As crianças, que não entendiam o que estava acontecendo, começaram a chorar apavoradas e Pâmela foi obrigada a abandonar seu posto de defesa para ficar ao lado delas em uma tentativa inútil de acalmá-las. Sétan tinha atingido seu primeiro objetivo, pois a batalha ainda não começara e ele já tinha disseminado o medo entre seus inimigos.
Ao perceber que era esse o objetivo do líder da alcateia, Ernesto e Henrique se dirigiram a cada um deles com palavras de incentivo e a afirmação de que cada um deles tivesse como único foco a defesa daquele lugar. Estavam empenhados nessa tarefa quando rosnados e grunhidos foram ouvidos vindo da Enseada. Todos correram para o lado do rochedo de onde tinham uma visão da praia e ficaram horrorizados ao ver a cozinha pegando fogo.
Cahya, depois de reclamar muito por ter que usar o método antigo de acender o fogo todas as manhãs, criou um fogareiro onde mantinha uma chama acesa todo o tempo. Agora, o que tinha sido criado para facilitar a vida dela, acabara de se transformar em uma arma para os lobos. Não se sabe como aconteceu, porém, o fogareiro tinha sido derrubado e o fogo se alastrou pela cozinha improvisada e Sétan viu naquilo uma oportunidade. Ele mesmo prendeu com seus enormes dentes um dos pedaços de pau que tinha uma de suas extremidades em chamas e o levou para o interior da casa, desaparecendo no interior dela. Não demorou muito e o fogo ateado nos colchões se propagou e tudo o que não era de tijolo dentro da casa começou a queimar.
Margie e Milena, que tinham abandonado o posto que ocupavam, viram o estrago que o lobo fazia e trocaram um olhar. Ninguém notou, porém, aquela comunicação dura trazia um propósito. Era como se as duas estivessem jurando se vingar do líder dos atacantes por causa da sua crueldade em destruir os abrigos que eles construíram a custas de muito suor. A única frase que disseram partiu de Margie que reiterou o que já tinha dito antes:
– O Sétan é meu, Milena. Sou eu que tenho que matar esse lobo.
Milena não disse o que pensava a respeito da determinação de Margie. Para ela, existia alguma coisa no propósito da amiga. Algo que ela guardava dentro de si e nunca falou para ninguém. Aquilo era ódio puro e não podia ser fruto do acaso. Ela sabia que, quando enfrentou os lobos pela primeira vez para defender os filhotes de Chantal, praticamente sozinha, pois a pantera ainda estava debilitada por ter acabado de parir sete filhotes e pouco pôde ajudar. Oito lobos foram mortos naquele dia e a pantera só era responsável por duas dessas mortes. Margie, com seu diminuto tamanho, encontrou forças para defender os filhotes. Porém, a determinação dela em ser a pessoa que mataria Sétan estava acima da compreensão, não só de Milena, mas de qualquer um dos outros humanos que viessem a tomar conhecimento dessa sua determinação.
Intrigada com a revelação que Margie lhe fizera, Milena a chamou para retornar ao local que estavam encarregadas de defender. Lá chegando, a loira foi direta ao assunto e perguntou:
– O que está acontecendo? Por que você está tão empenhada assim em matar Sétan?
– Eu? – Tentou desconversar Margie.
– Isso. Você mesma. Do jeito que você está agindo, não se trata apenas de nos defendermos. Você colocou na cabeça que tem que ser a pessoa que vai matar o Sétan. Isso não acontece do nada. Tem que ter alguma coisa aí que nós não sabemos.
– Não tem nada, Milena. Imagine! Isso é coisa de sua cabeça.
– Pare de me enrolar, Margie. Anda. Desembucha logo.
Margie ficou calada e pensativa. Ela conhecia Milena o suficiente para saber que ela não iria compartilhar sua suspeita com mais ninguém, mas, por outro lado, não lhe daria mais paz enquanto ela não lhe dissesse o que lhe ia à mente. Então ela começou a falar:
– Tudo bem. Vou te falar porque tenho que matar o Sétan.
Milena apenas olhou para ela e ficou aguardando. Margie respirou fundo e falou:
– Foi ele que matou o filhote da Chantal. Eu fiquei tão puta da vida com aquilo que entrei na frente dele quando ele foi na direção dos outros filhotes. Nessa hora, surgindo não sei de onde, apareceu uma loba fêmea muito parecida com ele e me atacou antes. Estendi o braço na frente do meu rosto para me defender e ela agarrou meu braço com sua presa e eu, agindo por instinto, soltei a faca que segurava com essa mão, mas não deixei que ela caísse no chão. Em vez disso, peguei a faca com a mão livre, segurando-a ainda no ar e, sem pensar, desferi um golpe que atingiu o pescoço da loba. Ela caiu ganindo e eu desferi outro golpe, esse fatal, pois atingiu seu coração.
Nesse instante, os olhos de Margie ficaram vermelhos e sua voz embargada pelo choro. Ela soluçou alto e depois se controlou para continuar sua narrativa:
– A loba estava para ter cria. Notei isso só depois que ela deu o último suspiro pelo tamanho de sua barriga. Naquele momento, Sétan e eu nos encaramos e eu soube na hora pelo brilho de ódio que reluzia em seus olhos que eu tinha acabado de matar sua parceira e todos os filhos que sequer tinham nascido. Era para eu me sentir vingada pela morte do filho de Chantal, mas em vez disso, parece que a dor que ele sentia se transferiu para mim. Naquela hora eu soube que nossas vidas, a de Sétan e a minha, estavam entrelaçadas. Ele também soube disso. Ele sabe que não pode viver em paz enquanto eu viver e é por isso que ele está aqui. Sou eu que ele quer, Milena. Ela passou os últimos três anos juntando esses lobos só para me matar. Ele não se importa com quantos de nós ele vai ter que matar para chegar até mim. Então, quanto antes nós nos enfrentarmos, ele e eu, mais pessoas e lobos serão salvos.
Dizendo isso, Margie se deixou dominar pelo pranto, repetindo sem parar que ela era a culpada de tudo e pedindo perdão para Milena, pois se sentia culpada pelos posteriores ataques dos lobos. Milena ficou com pena de Margie, porém, havia mais alguma coisa que Margie não dissera e ela já entendera do que se tratava e falou:
– Você não está pensando em descer desse morro e ir enfrentar o Sétan, não é Margie?
O olhar arregalado da ruivinha era a prova que ela estava certa. Apavorada, Milena ameaçou:
– Você não vai fazer isso. Olha aqui. Eu vou ficar de olho em você e, se você se atrever a descer desse morro, pode ter certeza de que eu irei atrás de você.
– Não seja burra Milena. Se eu for até lá, nenhum outro lobo vai me atacar. Sétan vai se encarregar disso, pois assim como eu sei que sou eu que tenho que matá-lo, ele também sabe que a minha vida pertence a ele. Eu desço daqui, os lobos vão me cercar, mas nenhum deles vai me atacar. Mas não será a mesma coisa se for você. Os primeiros lobos que te ver vão te matar.
– Não estou nem aí. Você não vai sozinha e pronto.
As duas continuaram a discutir sobre isso até que Margie cedeu:
– Tudo bem. Eu não vou. Mas eu quero que você me prometa que, quando chegar a hora, sou eu que tenho que matar o Sétan.
– Tudo bem. Isso eu aceito. Mas eu quero que saiba que, quando isso acontecer, eu vou estar ao seu lado.
Margie assentiu, mesmo sabendo que iria fazer de tudo para evitar que Milena colocasse sua vida em risco por causa dela.
Nesse momento, as duas ouviram gritos e correria. Diana e Nestor que estavam em um local de onde podiam ver o lago, corriam para seus postos gritando que os lobos estavam iniciando a travessia.
Milena e Margie pegaram seus arcos e se prepararam. Elas não tinham a vista de todo o lago, apenas da parte que ficava próxima à margem que dava acesso ao lado em que estavam e sabiam que logo os lobos surgiram ali.
Quando os lobos apareceram, Milena disparou a primeira flecha e o lobo que ia a frente foi atingido e emitiu um ganido agudo antes de ser engolido pela água gelada. Margie atirou, porém, sua flecha não chegou sequer até o lago, caindo antes, ao que Milena lhe falou:
– Melhor você não disparar ainda Margie. Espere até que eles estejam mais perto.
Mas Margie já tinha chegado a essa conclusão. Para ela, usar o arco significava desperdício de flechas e ela sabia que cada flecha perdida significava uma a menos para ser usada na defesa de suas vidas, então, abandonou o arco e segurou uma a lança que Na-Hi tinha fabricado e entregara uma para cada um deles. Era uma vara comprida com uma ponta de metal afiado na ponta. De posse dessa arma, ela se colocou na frente de Milena, ficando em uma posição em que os lobos que conseguissem subir até ali, teriam que passar por ela. Milena reclamou:
– Saia daí sua maluca. Desse jeito você vai ser a primeira a ser atacada.
– Se preocupe apenas em matar o maior número de lobos que conseguir e deixa que eu faça a minha parte.
Milena não discutiu. Ela já tinha disparado seis flechas e seis lobos estavam mortos. Mesmo assim, alguns já tinham atingido a margem e começavam a correr em direção à outra praia. Margie viu que a loira estava mirando nos lobos que agora passavam bem abaixo delas e gritou:
– Deixe que eles passem. Os outros se encarregaram de detê-los. Continue atirando nos que estão atravessando o lago.
Milena obedeceu e logo compreendeu que não era um ataque em massa. Sétan mandara alguns lobos atacarem no intuito de conhecer a força que teria que enfrentar. Eram quinze lobos ao todo e apenas sete passaram por Milena, com ela abatendo oito deles. Mas os que não foram mortos por Milena não tiveram melhor sorte, pois foram abatidos com facilidade assim que entraram no raio de ação das flechas dos cinco que estavam aguardando por eles no segundo local escolhido para se defenderem.
Depois de fazer um cálculo rápido, Milena chamou Margie e foi se juntar a eles. Lá estava Henrique, Nestor, Ernesto, Na-Hi e Diana. Pâmela e Cahya tinham sido mandadas para junto das crianças no intuito de mantê-las calmas.
– A ideia de ter alguém vigiando o lago foi muito boa. Melhor deixar alguém lá para nos avisar quando os lobos iniciarem a travessia. – Falou Milena com entusiasmo.
A ideia foi aceita e, para não desfalcar nenhum dos atiradores, pediram para Margie cumprir essa tarefa, prometendo que mais tarde ela seria substituída por Cahya. A ruiva obedeceu sem reclamar, porém, ao se afastar do grupo, trocou um olhar com Milena. Era como se ela estivesse reiterando com a amiga o seu propósito de que seria ela a matar o grande lobo negro.
Mas os lobos não pareciam estar dispostos a se empenhar em um novo ataque. Nos dois dias seguintes eles permaneceram na Enseada ou na margem do lago. Logo ficou claro que eles estavam aguardando que as provisões dos humanos ficassem escassas e eles ficassem mais fracos. Ele sabia que a fome provoca a discórdia, e esse o enfraquecimento da defesa preparada para enfrentá-lo.
O que Sétan não previu é que Milena se aproveitaria do fato de nenhum lobo ter conseguido passar para o outro lado e, no segundo dia, providenciou leite para todos e informou que, caso fosse necessário, eles poderiam até mesmo abater uma das reses para se alimentarem. O único problema era a falta de água que, mesmo com a ideia de Cahya de derreter a neve para esse fim, não era o suficiente para todos.
Na noite do segundo dia, sem avisar a ninguém, Margie pegou um dos recipientes usados para transportar água e desceu pelo lado da elevação que ficava voltada para o acampamento. Ali, ela encheu a vasilha que levava com água potável, mas quando se preparava para escalar as pedras e voltar para o topo, foi vista por um dos lobos e o inferno se formou. Sob a claridade do luar, os lobos correram para lá e se atiraram na água para atravessar. Três deles foram pegos desprevenidos e arrastados pela correnteza em direção ao mar e Cahya, ao perceber isso, se comunicou com Ruta e ordenou que os golfinhos cuidassem desses lobos que, quando ficaram ao alcance deles, foram arrastados para longe da segurança da praia e morreram afogados.
Entretanto, outros cinco conseguiram atravessar o curso d’água e já começavam a subir pelas pedras ao encalço de Margie quando Milena chegou à beira das pedras e, com sua pontaria infalível, foi matando um a um os perseguidores da ruiva.
Quem não gostou da aventura de Margie foi Na-Hi que, mesmo estando agradecida com o ato de heroísmo dela, arriscando a própria vida para buscar água, disse para que todos ouvissem:
– Isso só serviu para os lobos ficarem sabendo que é possível chegar aqui em cima escalando a encosta. Será mais um local que teremos que defender.
Serviu para mais que isso. Na-Hi não soube na hora, mas o sucesso de Margie ao conseguir suprimento de água, fez com que Sétan ficasse ciente de que o seu cerco não estava causando os efeitos que ele esperava. Ele observava o que acontecia em cima daquela elevação rochosa e o que via era pessoas tranquilas, sem nenhum sinal do desespero que a fome e a sede provocam. Pensando nisso, decidiu que estava na hora do ataque final.
Durante o dia seguinte, na Enseada, os lobos estavam em plena atividade. Eles corriam de um lado para outro, sempre depois de Sétan se aproximar deles. Era como se o lobo negro estivesse dando instruções a cada um deles sobre o que deveriam fazer.
O tratamento de todos com relação à Margie mudara. Depois de seu ato heroico em conseguir água e as informações precisas que dava para todos sobre o comportamento dos lobos, que sempre eram confirmadas, fez com que a vissem com outros olhos. De repente, ela passara a ser a pessoa que Na-Hi recorria em busca de informação e conselhos. Em uma dessas consultas, ela afirmou que os lobos atacariam durante a madrugada do dia seguinte.
Mais uma vez a garota estava certa. Quando o dia amanhecia, os lobos começaram a atravessar o lago. Não um ou dois. Não um grupo e tampouco a metade deles, mas sim a grande maioria. Eram tantos lobos nadando em direção à margem oposta que Milena não precisava caprichar na mira. Bastava atirar naquela direção que um lobo era atingido.
Entre ganidos e uivos, os lobos avançaram. Eram dezenas deles que, a toda velocidade, passavam abaixo de Milena e Margie e se dirigiam ao outro ponto, fazendo com que Milena dissesse para Margie:
– Eles estão indo todos para a outra trilha. Melhor irmos para lá.
– Melhor não. Olhe lá.
O que escapou de Milena é que ela prestava atenção nos lobos que passavam e não percebeu que alguns deles se ocultavam de suas vistas e, quando estavam em um número de dez, começaram a subir por aquele caminho. Quando Margie viu a quantidade que subia, disse para Milena:
– Pode ir lá ajudar os outros. Eu me encarrego desses aqui.
– Que jeito? Você não consegue nem disparar uma flecha direito.
– Mas eu tenho isso aqui. – Falou Margie brandindo a lança que parecia ter se tornado parte dela, pois estava sempre ao alcance de sua mão. Ao ver o olhar incrédulo de Milena, ela continuou: – Pode ir Milena. O caminho é estreito e eles virão em fila. Vou ter que enfrentar um deles de cada vez, o que me dará uma enorme vantagem.
Milena, olhando para os lobos que se aproximavam por ali, resolveu concordar. Porém, antes de se afastar, disparou três flechas sucessivas e cada uma delas abateu um dos lobos que subiam em direção a elas. Então disse:
– Agora você tem três a menos. Mas tome cuidado. Se sentir que não vai ser possível se defender, corra para o outro lado.
Margie concordou, mesmo sabendo que jamais faria isso. Correr para o outro lado significava deixar aquele ponto acessível para os lobos, Se isso acontecesse, não só estariam expostos a um ataque pelas costas, como também as crianças estariam em perigo, pois ninguém podia garantir que os lobos, em vez de atacar os combatentes, iriam na direção onde as crianças estavam protegidas por Pâmela e Cahya.
Depois que Milena saiu, Margie se posicionou em uma pedra abaixo daquela em que estava. Ali ela poderia lutar e, caso visse que estava perto de ser vencida, poderia voltar para a de cima e com isso teria tempo de se recompor e voltar a lutar.
Ela estava certa. Nenhuma vez ela foi atacada por dois lobos, pois a largura da trilha não permitia isso. Um a um, Margie foi derrotando os lobos que surgiam diante dela. Mas logo ela percebeu que não eram apenas os sete que sobraram depois de Milena atirar flechas em três deles. Outros lobos se separaram do grosso da coluna que ia em direção à outra trilha e iam em direção a ela. Margie, ao perceber isso depois de matar o último lobo, se manteve firme em seu posto pronto para continuar a defender aquela passagem.
Do outro lado, a situação estava menos tranquila. Mesmo com o reforço de Milena e sua infalível pontaria, os lobos estavam chegando cada vez mais perto e era questão de tempo para que os arcos se tornassem obsoletos e eles teriam que lutar com suas lanças e facas. Os lobos morriam como moscas, porém, havia mais lobo do que a capacidade dos humanos em matá-los.
Margie já estava exausta e sua preocupação maior era com seus amigos. Ela matava os lobos que chegavam até ela, mas não perdia de vista a quantidade de lobos que passavam abaixo dela e ela sabia que eram em uma quantidade muito grande para que seus amigos tivessem alguma chance de vitória. Ela estava tão empenhada nesses dois pensamentos, que não percebeu os ganidos de alguns lobos que ainda não tinham chegado até ela que, naquele momento, encarava um grande lobo marrom que, com os caninos à mostra, estava pronto para saltar sobre ela. Preparou-se para o ataque e quando o lobo saltou ela segurou com firmeza sua lança. O lobo foi atingido no coração e caiu para o lado, porém, ela foi vencida pelo cansaço e não teve forças para puxar a lança que lhe escapou das mãos.
Nesse exato momento um grande vulto negro surgiu na sua frente. Margie acreditou que finalmente ela e Sétan ficariam frente a frente. Puxou então sua faca e ficou preparada para se defender. O vulto negro saltou e ela se abaixou, porém, o animal pareceu ter errado no cálculo e usou força em demasia, pois em vez de atingi-la, passou voando sobre ela. Quando ela ia se virar para se defender do ataque, pois sabia que o lobo voltaria a atacá-la, viu outro vulto. Esse, porém, era totalmente branco. Tão branco que se confundia com a neve que insistia em cair sobre eles. Sem pensar duas vezes, ela gritou:
– NEVE. VOCÊ VOLTOU? OH! MEU DEUS. OS LOBOS VÃO TE MATAR.
Quando ela disse isso, sentiu uma língua úmida e quente lhe lamber o rosto. Atrás dela, Chantal a cumprimentava do jeito que era acostumada. O coração de Margie exultou de preocupação ao descobrir que não era só Neve que se colocara em perigo para ajudá-la. Chantal também estava lá e não errara o bote de propósito, mas sim saltara sobre ela cuidando para não machucá-la.
Entretanto, não houve tempo para as comemorações. Margie olhou para baixo e viu os lobos sendo atacados pela retaguarda por várias onças. Ela contou quinze delas. Entendendo imediatamente que Chantal não tinha fugido. Sua fiel companheira tinha saído em busca de reforços. Entendendo que não havia tempo para os agradecimentos que poderiam ficar para mais tarde, disse apenas:
– Vão logo. Ajudem os outros.
Chantal se virou e se afastou dela que quase foi derrubada por Neve que passava por ela a toda velocidade. Margie encostou-se em uma pedra e viu, abismada, todos os filhotes que ajudara a criar participando da luta que se desenrolava abaixo dela. Ali estavam Apolo, Ares, Afrodite, Artêmis e Atenas. Além dessas, várias outras onças que ela não conhecia e ficou aliviada ao perceber que contara errada. Não eram quinze onças. Agora, prestando atenção, percebeu que era o dobro disso.
Viu a alcateia sendo dizimada. Os lobos não tinham a menor chance e aqueles que tentavam escapar das garras e dentes afiados das panteras logo eram alcançados e destroçados. Ela foi até o lobo marrom morto, recuperou sua lança e saiu correndo na mesma direção que Chantal e Neve tinham ido.
Na outra frente de luta, tudo parecia que estava perdido. Os seis defensores brandiam suas lanças e matavam os lobos que conseguiam alcançar, porém, para cada lobo morto dois outros apareciam e investiam sobre eles. O cansaço provocado pelo tempo da luta e tensão a que foram submetidos nos últimos dias estava dominando seus corpos e apenas Nestor ainda lutava com a mesma disposição que demonstrou no primeiro ataque. O jovem negro se desdobrava em se livrar dos ataques e atingir aqueles que estavam prestes a ferir seus amigos. Na-Hi foi mordida na perna e só foi salva porque Nestor brandiu a lança com tanta força na cabeça do lobo que o animal teve morte instantânea. Henrique atingiu um dos lobos com sua lança, mas foi derrubado por outro que atacou seu flanco direito. Deitado no chão, ele sentiu que estava perdido e fechou os olhos.
Quando não sentiu os caninos do lobo que se dirigiam à sua garganta perfurar sua artéria, ele chegou a pensar que já estava morto. Mas logo a pressão que o peso do lobo fazia sobre seu corpo se aliviou e ele abriu os olhos, não acreditando no que via. Ao seu lado, o lobo jazia com o crânio despedaçado e Chantal já atacava o lobo mais próximo. Logo as outras onças se juntaram a ela e começaram a fazer os lobos recuarem. Henrique se levantou segurando sua lança e foi se juntar aos amigos e panteras que ganhavam terreno expulsando os lobos do rochedo.
Olhando para baixo percebeu que o restante da alcateia que chegavam ao local que dava o acesso à trilha não mais a usava. Em vez disso, passava direto, se dirigindo à Praia dos Tubarões. Entretanto, não teve tempo de se perguntar o motivo de isso estar acontecendo, pois logo viu o bando de onças que seguiam os lobos que fugiam e iam abatendo um a um. Henrique, assim como os outros, entendeu na hora que Chantal e seus filhotes não estavam sozinhos. A pantera tinha se ausentado para procurar por reforços e conseguiu, chegando no momento em que tudo parecia perdido.
Os lobos não tiveram a menor chance. As onças continuaram a segui-los mesmo depois que eles atingiram a Praia dos Tubarões. Margie já se juntara a eles e Milena a lembrou que nenhum lobo poderia ficar ali, pois isso deixaria o rebanho em perigo. Margie gritou com Chantal, mas não se sabe se a pantera a entendeu. Se não entendeu, não fez a menor diferença, pois as onças continuavam a perseguir os lobos que foram todos eliminados.
Quando olhavam para as onças que ainda vasculharam as matas ao lado da praia, o grupo ouviu os gritos da Pâmela e das crianças. Sem pensar duas vezes, correram naquela direção.
Cahya foi precipitada ao perceber o que acontecera e abandonou seu local de observação para se juntar aos outros que comemoravam. Bastou ela sair dali para Sétan, acompanhado de nove lobos, usassem o mesmo caminho que fora usado por Margie para buscar água e se aproximaram das crianças. Pâmela ainda tentou se defender, mas foi derrubada por um lobo que, subindo sobre o seu corpo, a manteve imobilizada. Ninguém entendeu depois o motivo dela não ter sido morta.
Com o caminho livre, Sétan foi até onde estavam as crianças. Bonaparte, bem maior que os demais, se colocou na frente do lobo que ia a frente e, quando esse o atacou, desfechou um murro na cabeça do lobo que ficou tonto momentaneamente, porém, outro lobo lhe deu uma patada ferindo seu braço ao mesmo tempo em que jogava para o lado.
Então surgiu Sétan. Sem se importar com as crianças que estavam por perto, foi até onde estava Neto e abocanhou sua perna quando o garoto lhe desfechou um pontapé. Depois disso, saiu arrastando o garoto como se estivesse carregando uma pena, voltando pelo caminho por onde viera sem ser incomodado, sendo seguido pelos outros lobos.
Nesse exato momento os demais chegaram. Ernesto correu até Pâmela que lhe informou que estava bem. Como ela tinha assistido o sequestro da criança, explicou com palavras afobadas o que tinha acontecido. Imediatamente, Ernesto saiu correndo na direção indicada por Pâmela.
Assim, enquanto os demais procuravam saber o que aconteceu, Ernesto já se aproximava dos lobos que o seguiram e dois deles ficaram à espreita. O homem não teve a menor chance de defesa e errou o primeiro golpe. Desarmado, segurou firmemente o lobo que saltou sobre ele e conseguiu atirá-lo para longe, mas nessa altura o segundo lobo já tinha sua perna presa por suas mandíbulas poderosas.
Ernesto se debateu, esperneou, mas sentiu que estava sendo arrastado e, pior ainda, o lobo que ele tinha jogado para longe, ao se livrar do primeiro ataque, se aproximava dele. No último minuto, ele conseguiu acertar um chute no focinho do lobo que prendia sua perna e rolou para o lado, justamente na direção onde sua lança estava caída. Com uma agilidade surpreendente, ele conseguiu segurar a lança e aparar o ataque do lobo que morreu na hora.
Quando se pôs em pé, o outro lobo fugiu e ele foi atrás. Saltando de pedra em pedra, ele alcançou Sétan que, por estar carregando o peso de Neto, perdera terreno em relação aos demais. O lobo negro, ao perceber que seria atacado, largou a criança e investiu sobre Ernesto que conseguiu se desviar para o lado.
Sétan emitiu um uivo breve e se preparou para atacar novamente. Os outros lobos deram meia volta e subiram velozmente para ajudar seu líder. Mas nesse momento, Nestor, Henrique e Na-Hi já desciam tentando chegar ao local da luta para ajudar Ernesto, mas quem foi mais útil foi Milena que, da borda da elevação, começou a disparar flechas logo abatendo três lobos. Sétan atacou e mais uma vez Ernesto se livrou dele, porém, quando olhou para o local que estava no Neto, percebeu que um dos lobos que escapara das flechas de Milena estava rosnando com seus dentes a poucos centímetros do rosto do garoto.
Ernesto não pensou duas vezes. Virou as costas para Sétan e atacou o lobo se jogando contra ele. Seus corpos se chocaram e rolaram sobre a pedra estreita que Neto estava e o impulso dado por Ernesto fez com que ele e o lobo caíssem. Foi uma queda superior a quinze metros que terminou sobre pedras afiadas.
Foi como se o tempo tivesse parado. Apenas Milena, antes de perceber o que acontecera com seu pai, atirou uma flecha tentando acertar Sétan que, no último momento, desistiu de atacar Neto e saltou para a pedra que havia abaixo dele. O grande lobo negro estava fugindo e isso ficou claro quando, ao passar pelos lobos sobreviventes, todos deram meia volta e o acompanharam.
Do alto, à margem da elevação, oito pares de olhos estavam fixos no corpo de Ernesto estendido sobre as pedras. Imóvel, o homem que era o responsável por eles terem alcançado aquele paraíso parecia um boneco de pano jogado sobre as pedras. Na-Hi foi a primeira a descer pelas pedras, logo seguida por Nestor e Diana. Ao chegar ao lado onde o corpo jazia, a coreana colocou os dedos no pescoço de Ernesto e não sentiu sua pulsação. Depois, agindo como uma enfermeira, olhou para os olhos de Ernesto que ainda permaneciam abertos e percebeu que suas pupilas estavam dilatadas. Imediatamente, ela fechou os olhos de Ernesto, debruçou-se sobre seu peito e começou a chorar.
Ainda em cima do rochedo, Pâmela e Milena se abraçaram, chorando copiosamente enquanto Cahya se aproximava delas e se unia naquele abraço de dor e desespero. Os demais não sabiam o que dizer e se limitaram a olhar para aquela cena dantesca enquanto tentavam controlar as lágrimas que teimavam em cair de seus olhos.
Foi Na-Hi que, com seu pragmatismo sempre presente, pediu a ajuda de Diana e Nestor e levaram o corpo para a praia, cruzando o curso d’água que vinha do lago ali mesmo, depois de gritar para o Henrique para providenciar para que as crianças voltassem para a praia.
Já na praia, Margie pediu a Diana que chamasse o Áquila até ali para ajudá-los a se livrarem dos corpos. Ela não conseguiu esconder sua raiva ao dizer:
– Pede para o Áquila e seus companheiros jogarem esses malditos no mar.
– Ainda não, Diana. Nós vamos arrancar o couro de cada um desses lobos. Vamos curtir essas peles e usá-las para nos protegermos do frio nos anos vindouros. Depois disso podem fazer o que quiserem com os lobos mortos. – Ordenou Na-Hi.
Todos começaram a trabalhar imediatamente. Aqueles lobos que foram mortos pelas onças e que os corpos estavam destroçados foram descartados, mas aqueles que morreram por terem sido atingidos pelas flechas ou pelas lanças dos humanos foram todos esfolados. Só depois dessa tarefa ter sido concluída que eles se preocuparam em homenagear Ernesto, cujo corpo foi incinerado em uma grande fogueira.
Na hora de arrancar as peles dos lobos a Margie foi a mais ativa. E quando decidiram incinerar o corpo de Ernesto, ela se fez presente e cooperativa com tudo. Ninguém entendia como ela podia agir normalmente, sem saber a dor que ela sentia pela perda de Ernesto. Só depois de encerrada a cerimônia que eles improvisaram durante o rápido funeral de Ernesto ela se deixou abater. Quando Diana se aproximou dela, não para oferecer algum consolo, pois a angolana também estava com o coração em pedaços e apenas queria sentir a proximidade de alguém. Depois de um longo tempo em silêncio, Diana falou:
– Esse lobo ainda vai nos dar problemas no futuro. Eu queria tanto que Áquila o agarrasse. Mas tinha que ser vivo. Aquele filho da puta tem que ser capturado vivo para que eu possa fazer picadinho dele.
– Isso não vai acontecer, Diana. Sétan sabe que basta ficar em meio às florestas que o Áquila não tem como atingir a ele. Mas pode ficar sossegada que ele não vai voltar. Nunca mais.
– O que te dá tanta certeza que ele não vai formar outra alcateia e nos atacar.
– A certeza de que ele vai morrer.
Milena, que ia passando por perto e ouviu a resposta de Margie, teve a certeza de que a ruivinha sairia em busca do Sétan.
No dia seguinte ao funeral de Ernesto o dia amanheceu ensolarado e logo a neve começou a derreter. Porém, ninguém teve tempo para comemorar isso, pois estavam todos preocupados com Margie que, não era encontrada em nenhum lugar na Enseada. Milena, que tinha programado trazer o gado de volta, e sendo a única que conhecia o motivo de Margie ter desaparecido, não disse nada. Ela apenas pediu para que Henrique cuidasse da transferência do gado, indo até o outro lado do lago apenas uma vez, de onde retornou acompanhada de Tornado e Raio.
Na manhã seguinte, sem que ninguém a visse, Milena se armou com três arcos e uma grande quantidade de flechas e se embrenhou na mata.