Caítulo - 01
Olá para todos. Essa é a história de uma garota muito tímida que por uma daquelas circunstâncias do destino que ninguém consegue explicar, cruzou o meu caminho.
A primeira impressão que tive dela não foi das melhores. Morena, baixinha e toda cheinha, aquela garota não tinha nenhum atrativo que despertasse o interesse de um homem, principalmente a mim que, naquela idade, estava em condições de conquistar belas mulheres. Não que ela fosse feia. Para mim era apenas um rosto comum em uma mulher com mais de trinta centímetros a menos que eu. Seus olhos eram pretos, assim como seus cabelos que estavam mais para o pixaim do que para os ondulados.
Eudora estava na agência bancária onde eu já exercia cargo de chefia quando cheguei para trabalhar naquela manhã de segunda-feira e, ao ser apresentada a mim, depois de despejar sobre ela todo o meu desinteresse, ainda fui cruel ao rir de seu nome. Por causa disso fui chamado para uma conversa em particular com o meu chefe e advertido que, a partir daquele dia, deveria fazer com que cada novo convidado se sentisse bem vindo naquela agência.
Isso só serviu para que eu ficasse invocado com a garota e passei a fazer uma pressão ainda maior sobre ela. Qualquer erro, por mais insignificante que fosse, já era motivo para que eu chamasse sua atenção. Quer dizer, chamar a atenção é uma coisa muito diferente do que eu fazia, pois na verdade ela era submetida às maiores humilhações que eu pudesse pensar na hora.
Eudora era a ‘nanica’, ‘baixinha’, ‘gordinha’, entre outros adjetivos pejorativos que eu conseguia me lembrar na hora. Agia com tanta petulância que o gerente da agência logo tomou a providência de transferi-la para outra seção onde ficaria subordinada, segundo ele, a um chefe mais humano.
Realmente eu era uma merda de pessoa. Com vinte e um anos e já a dois exercendo o cargo de chefia e indicado para a próxima promoção a um cargo superior, gozava do status de ter sido o funcionário mais novo de toda a Grande São Paulo a assumir um cargo de chefia. Nesses dois anos me tornei ‘o cara’. Conhecia as normas internas como ninguém e dominava as rotinas de todas as seções e isso fazia de mim um servidor indispensável, segundo eu mesmo.
Era assim que eu agia em minha imaturidade. Em minha soberba idiota, eu chegava a dizer que aquela agência fecharia caso eu fosse dispensado dela. Mal sabia eu que, estando no ano de um mil novecentos e setenta e seis, logo iria me deparar com a completa automatização dos serviços bancários. Sim, eu estava fadado a ser substituído por máquinas e equipamentos eletrônicos e toda aquela minha arrogância só serviria para dificultar a minha ambientação em um mundo totalmente novo.
Voltando a Eudora que, em sua nova seção, ficara livre da minha falta de educação como chefe, mas não da minha impertinência. Independente de onde eu trabalhava, ela era sempre alvo de meus comentários maldosos que não perdia tempo quando se referia a inventar apelidos humilhantes para ela. Eu me achava portador de extrema inteligência e até era mesmo. Isso ficava provado quando se tratava de aprender novos serviços e a memorizar informações, fossem elas úteis ou apenas partes do que chamávamos de cultura inútil. Foi preciso apanhar muito da vida para aprender que inteligência é uma coisa e sabedoria é outra muito diferente.
Como me disse uma vez um diretor que, apesar de gostar muito de mim, não me dava oportunidades: “A diferença entre as pessoas inteligentes e das sábias é que o inteligente sabe que o tomate é uma fruta, mas o sábio nunca vai usar um tomate para fazer uma salada de frutas”.
Para que eu entendesse o que essa frase significa, foi preciso que apanhasse muito da vida. Foram muitas reviravoltas até que eu aprendesse. Para se ter uma ideia do quanto foi difícil, houve um período em que confundi as coisas e resolvi ser esperto, sem saber que a esperteza não tem nada a ver com a sabedoria. A esperteza muitas vezes é contrária à ética e moral e, graças a Deus, essa característica dos espertos é que o tempo de ser esperto foi muito curto.
Você, leitor, deve estar se perguntando o que é que isso tem a ver com a história. Se isso aconteceu, você está certo. Desculpe. Essa história é sobre a Eudora. Então vamos a ela.
Eudora, depois que passou a trabalhar em um setor que ficava distante do meu, não era vista por mim com muita frequência. Mas isso não impedia que eu continuasse a minha campanha contra ela. A moça não abria a boca e eu insistindo em fazer com que ela permanecesse como a bola da vez. Vivia inventando comentários depreciativos sobre ela e fazia meus colegas rirem. Eu não sabia naquela época que muitos deles riam para me agradar e nunca por me achar engraçado. Afinal, eu exercia cargo de chefia sobre eles.
A coisa continuou assim até que me ocorreu que a minha campanha de ridicularizarão não estava funcionando. Eudora, como sempre, me tratava com muita educação. Ela era gentil com todos, mas comigo parecia se esforçar ainda mais para agradar, E quanto maior meu empenho em prejudicar sua imagem, maior era o dela em me deixar satisfeito e tranquilo na presença dela.
E as coisas continuavam assim. Eu já estava me tornando repetitivo com as piadas que inventava contra ela porque não tinha mais como encontrar novas. Acho que já tinha atingido os limites de ofensas, apelidos ofensivos e comentários maldosos.
– Quem desdenha quer comprar.
Essa frase dita por qualquer outra, poderia me deixar puto da vida. Principalmente porque se referia a Eudora. Mas dita por Mary, pareceu mais uma reprimenda.
Mary era uma linda mulher, a mais bonita entre todas as funcionárias daquela agência ou de qualquer outra que ela fosse trabalhar. Cabelos castanhos claros, olhos verdes, linda de rosto, alta, corpo perfeito e, somando a isso tudo, a inteligência sagaz que fazia dela uma das únicas pessoas que me faziam com que eu me calasse. Seus comentários e saídas inteligentes que ela tinha para responder às cantadas, inclusive, as minhas, fez com que eu me apaixonasse por ela. Foi uma paixão platônica, pois Mary era amante do principal gerente da agência e, apesar de cultivar a amizade com todos, nunca permitia que o relacionamento dela com os outros passasse disso. Eu pelo menos, nunca consegui dela nada mais do que um abraço apertado e, assim mesmo, quando tirei seu nome no sorteio de Amigo Secreto no final do ano.
E eu, que já tinha transado com trinta e cinco mulheres das vinte e oito que trabalhavam naquela agência (não é erro matemático, pois o turnover de pessoal era muito alto e estou contando as que já tinham sido desligadas do banco), suspirava cada vez que olhava para o corpo perfeito e me imaginava mamando naqueles seios médios e firmes ou alisando aquela bunda perfeita.
Ao ouvir o comentário irônico de Mary que dava a entender que minha implicância com Eudora era porque tinha interesse nela, respondi sem pensar:
– Nem fudendo. Podia ser a última mulher do mundo que eu não ia me interessar. Não quero nem de graça, quanto mais comprando.
– Olha Nassau! Preste bem atenção no que você está falando.
– Estou falando que não tem a menor chance de eu me embolar com a Eudora.
– Não sei não. Ninguém se dedica tanto a uma pessoa, mesmo que seja para humilhar, sem ter pelo menos um pouco de interesse nela.
– Vai se fuder, Mary.
– Vou sim. Mas nunca com você.
Aquilo doeu. Não que eu ainda tivesse esperanças de foder a minha musa. Mas ouvir da boca dela que eu não tinha chance nenhuma, abriu a ferida e doeu pra burro.
Fiquei com a cabeça baixa até que Mary saísse de perto de mim. Acho que até ela entendeu que tinha cravado o punhal fundo demais e, não satisfeita, tinha torcido para ficar na certeza de que meu coração sagrava. Quando ela saiu andando, levantei a cabeça e vi Eudora parada, olhando para mim com seus olhos pretos e reparei que, pela primeira vez, tinha visto aquela garota usando saia. Nada de especial, apenas uma saia justa que ia até os joelhos.
Eudora tinha um gosto horrível para se vestir. Parecia até um uniforme, pois ela sempre usava uma blusa de gola rolê, calça comprida e um blazer. A escolha das roupas não era tão má assim. Horrível eram as cores que se resumiam a apenas duas. Não importava se o clima estava quente, frio ou mais ou menos, lá estava ela usando roupas das cores preta ou marrom. Ela devia ter uma verdadeira coleção de calças compridas, blusas de gola rolê e terninhos nessas duas cores e essa foi a primeira vez que a vi de saia. Mas o resto era o de sempre. A saia era preta, assim como o blazer que usava e a blusa marrom. Tudo dentro dos parâmetros estipulados por ela. Ou talvez para ela, uma vez que até duvido que alguém possa ter mal gosto tão grande sem ajuda.
Nossos olhos se encontraram nessa hora. Aqueles olhos pretos e grandes se fixaram no meu e senti até um mal estar ao notar que naquele olhar intenso não existia ódio. Achei que era até sacanagem dela não me odiar, já que eu me esforçava tanto para que isso acontecesse. Ela desviou o olhar sem sorrir e virou as costas para mim saindo andando atrás de Mary e minha atenção se fixou na bunda dela. Não era grande, como se podia esperar de uma gordinha, mas também não era pequena. Eu diria que é do tamanho certo, principalmente com aquele andar dela.
Tudo ficaria nisso se não fosse o fato de Eudora ter visto algo no meu olhar que eu mesmo não sabia que existia. No dia seguinte, ela repetiu o que para ela era considerado uma ousadia e foi trabalhar de saia. E aleluia. A saia não era preta e nem marrom. Era uma saia bege e rodada, mas o que chamou mesmo minha atenção é que essa era mais curta. Lamentei que ela ainda estivesse usando o mesmo tipo de blusa e o inseparável blazer. Esse lamento, todavia, foi esquecido quando prestei atenção em suas pernas. Não eram pernas longas e esguias, mas eram grossas e roliças.
Fiquei imaginando como seriam as partes de suas coxas que estavam cobertas pela saia e como elas iam engrossando para se tornarem aquela bundinha graciosa. Senti meu pau reagir quando minha imaginação foi além e chegou na parte em que suas duas pernas se juntam e de como seria a buceta que existe no meio delas. Foi no momento em que eu me perdi com esses pensamentos que olhei para ela e encontrei seus olhos grudados em mim. A filha da puta tinha percebido que eu estava olhando para suas pernas e o brilho que vi em seu olhar me deixou trêmulo. Baixei meus olhos, não sem antes notar uma ligeira imitação de um sorriso em seus lábios carnudos.
Naquela noite, quando fui me deitar, meu pensamento era povoado pela lembrança de Eudora. Minha avaliação a respeito da aparência dela já tinha se alterado numa velocidade supersônica. Não eram apenas os lábios carnudos. O nariz perfeito, as bochechas cheinhas e os olhos penetrantes formavam um conjunto harmonioso, apenas prejudicado pelos cabelos crespos. Entre as gozações que eu fazia contra Eudora, o meu preferido era com relação aos seus cabelos. Minha frase preferida era que “os cabelos da Eudora são como assaltantes. Se não estiver preso, está armado”.
A partir desse dia, passei a olhar Eudora com outros olhos e o que mais me chamou a atenção foi a quantidade de vezes em que fui surpreendido por ela enquanto avaliava seu corpo, principalmente sua bunda cheia e firme e, sempre que isso acontecia, nossos olhares se cruzavam e o dela não demonstrava raiva em virtude de ser eu, o cara que fazia de tudo para deixá-la desconfortável, estar olhando.
Para piorar a situação, do nada, Eudora parecia ter feito uma mudança em seu guarda roupa. Suas roupas melhoraram em muito, com blusas em cores mais alegres e que destacavam os pontos fortes de seu corpo. As minhas preferidas eram uma saia rodada, um pouco acima dos joelhos e um vestido justo que lhe ia até o meio das coxas de fundo vermelho e estampado com flores de vários tons, variando de amarelo até o bege claro. O ponto forte desse vestido é que valorizava seus seios grandes e cheios. Com grande, não quero dizer que eram exagerados, apenas estavam acima da média. Eu olhava para aqueles seios e lamentava o fato de ela nunca abandonar o uso do sutiã.
Aquela situação persistiu por mais ou menos três meses. Essa demora toda foi por minha culpa. Acontece que eu não era o comedor que imaginava ser. Na verdade, era tímido até demais e o fato de ter comido mais da metade das funcionárias daquela agência se devia a alguns aspectos, como o fato de ocupar um cargo de chefia, morar sozinho em um apartamento e já ter o meu carro próprio. Era um Chevette que comprei de segunda ou terceira mão com a ajuda de um cliente do banco e proprietário de uma revendedora de carros usados. Não era nenhuma Ferrari, mas era meu e graças a eles, muitas caronas que dava às garotas tinham como destino a minha cama. Eu nem sonhava na época, mas hoje sei que essas aventuras não aconteciam por causa da minha lábia, mas sim porque, ao pedirem carona, era isso mesmo que elas queriam.
E foi meu chevetinho de segunda mão que contribuiu para que, finalmente, meu relacionamento com Eudora que tinha passado de ofensas de minha parte para olhares gulosos para sua bunda, passasse para o nível seguinte. Foi o carro porque eu, como já foi explicado, nunca tomava a iniciativa e ela, com sua timidez, jamais faria isso. Foi um acontecimento onde nenhum dos dois cantou ou provocou o outro. Só aconteceu.
No final de mês de setembro o encarregado de fechar a movimentação contábil da agência, um senhor antigo tanto na idade como na forma de agir, sofreu um princípio de infarto e foi afastado por motivo de saúde (isso que eu não entendo. Ninguém deixa de trabalhar por ter saúde, então eu penso que o certo seria dizer “afastado por falta de saúde”).
Adivinhem quem colocaram para executar essas tarefas? Ela mesma. A Eudora. Uma escolha infeliz e inadequada, pois ela não tinha conhecimento suficiente dos serviços para poder dar conta. O fato dela ter um diploma de Técnico em Contabilidade não era suficiente, pois quando se refere a esse assunto, a prática vai muito além da teoria.
O resultado dessa escolha foi desastroso. No dia primeiro de outubro, data limite para enviar os mapas de lançamentos para o Centro de Processamento, ela não tinha conseguido fechar o balancete do primeiro dia desde que assumira as funções e, ao ver que a vaca estava indo para o brejo, o Gerente Administrativo me convocou para ajudar na solução desse problema, se bem que ajudar não era o termo correto, pois logo de cara percebi que, para cumprir o prazo estipulado, teria que recomeçar do zero. Ela tinha feito tanta bagunça nos lançamentos que efetuou que percebi que encontrar os erros e acertá-los levaria mais tempo do que fazer tudo de novo.
Estávamos no penúltimo dia do mês e eu tinha aquele dia e mais dois para fazer tudo o que Eudora não tinha conseguido fazer em quatro. Nessa hora, só tem uma saída que é mergulhar no trabalho e se esquecer de olhar para o relógio.
Foi o que fiz e, no primeiro dia, consegui deixar o movimento de três prontos, porém, para conseguir essa proeza, fiquei trabalhando até às duas horas do dia seguinte. Fui para casa, caí na cama e fui despertado às seis horas e trinta minutos. Tomei um banho, enfrentei um engarrafamento monstro e cheguei à agência depois das oito horas. O administrador da agência, quando recebeu a resposta para a pergunta de como estavam as coisas, ficou otimista e ordenou que Eudora, que tinha sido encaminhada para outra seção, me ajudasse durante aquele dia para colocarmos tudo em dia.
Foi a primeira vez que ficamos lado a lado e, para complicar mais as coisas, ela estava usando o vestido estampado que eu gostava. A merda toda era que o vestido era mais curto do que eu imaginava, pois quando ela se sentava, ele se retraía em direção à sua bunda e suas coxas ficavam aparecendo. Imaginei, e estava certo, que se ela fizesse um movimento mais brusco sem tomar cuidado, a cor de sua calcinha seria revelada. Quando isso aconteceu e vi aquele tecido de seda preto cobrindo o volume carnudo de sua buceta, foi necessário mais de vinte minutos para que eu conseguisse completar uma soma correta de dez documentos.
Entre o tesão e a necessidade de completar o trabalho, optei pelo primeiro. Eu tinha pedido para que ela separasse os documentos de acordo com a conta contábil apropriada e notei que ela já tinha terminado essa tarefa. Então pedi para que ela me ajudasse na soma das mesmas, o que acabou por acelerar nossas tarefas. Eu ali, com um olho na grade de lançamento e outro nas coxas de Eudora, gastei mais tempo do que seria o normal para conseguir encerrar o fechamento de um expediente. Mas isso só quando já havia passado o horário de almoço. Mais por costume do que por cortesia sugeri à Eudora que fôssemos almoçar juntos.
Foi o que bastou para que eu fosse soterrado por uma quantidade de ironias. Passei a ser o assunto principal das rodinhas de fofocas e o comentário mais comum é de que todo aquele tratamento humilhante que eu dedicava à Eudora era apenas uma fachada para disfarçar minha revolta por querer comer e não conseguir. O único comentário aceitável foi o de Mary que disse:
– Não te falei, Nassau? Quem desdenha quer comprar.
Embora aceitável, pois ela já tinha dito a mesma coisa antes, aquilo me irritou muito, tirei coragem não sei de onde para respondeu:
– Verdade. Você falou. Mas acho isso até normal, pois desdenhar e querer comprar é uma coisa que você entende muito bem.
– Do que é que você está falando?
– Você sabe do que estou falando. Finge que não sabe, mas nós dois sabemos que é assim.
Mary ficou pensativa por um instante até que sua expressão mudou para uma de surpresa e depois raiva. Então ela contra atacou:
– Vai sonhando cara. Nem que você fosse o último homem do mundo.
Porra! Ouvir isso da mulher por quem você é apaixonado é demais para qualquer um e eu, embora não me julgasse qualquer um, chutei de vez o balde:
– Lógico que não. Talvez se eu ocupasse um cargo de gerente eu teria alguma chance.
Pronto. A merda estava feita. Como eu falei isso e depois virei as costas para Mary e saí andando, sendo acompanhado pelos insultos dela:
– Seu babaca filho de uma puta. Vai cuidar da sua vida seu recalcado de merda. Se depender de você não vai conseguir fuder nem a mulher do café.
– Não mesmo. A Conceição é casada, honesta e não é interesseira. Bem diferente de certas biscates que existem por aí.
– Filho da puta. Vai pra puta que te pariu.
Essa foi a última frase que Mary falou para mim, até os dias de hoje, Fico pensando no significado disso. A mulher por quem você sonha passar o resto dos seus dias, a gata que você nunca pensou no momento das punhetas por causa do sentimento puro que dedicava a ela, cortou as relações comigo com essa frase. Isso é uma coisa que faz você se sentir corno sem nunca ter sido.
A consequência disso foi um recuo na minha forma de agir com Eudora. Passei o resto daquele dia humilhando a garota e o tratamento de jumenta foi o menos ofensivo que dirigi a ela. Também não solicitei a sua ajuda e ela passou a tarde inteira sem fazer nada, o que fez com que o ritmo do trabalho ficasse mais lento e como resultado não consegui terminar durante o horário normal de expediente. A solução foi esticar o horário até conseguir terminar.
Eudora resolveu ficar também e, embora eu dissesse a ela que não era necessário, ela teimou em ficar e encerrou o assunto dizendo:
– A obrigação é minha. Então eu vou ficar aqui mesmo que você não deixe eu fazer nada.
Aquela foi a maior frase que ouvi de Eudora até aquele dia.
Já que ela insistiu em ficar ali e a alfinetada que ela deu com relação a eu não ter pedido sua ajuda, passei a solicitar a sua intervenção e com isso tudo ficou pronto quando passava um pouco mais das vinte e duas horas. Com tudo pronto, me despedi dela deixando que ela saísse da agência antes que eu, mas quando fui sair do banco, lá estava ela sob a marquise se protegendo de uma chuva fraca e insistente. O tipo de chuva que costumo chamar de “chuva de molhar bobo”. Bom, isso é o que eu ouvia das pessoas mais velhas do que eu e nunca entendi direito o que significa. Hoje acho que molha os bobos que ficam desprotegidos sob ela e ficam todos molhados.
Apesar da raiva que sentia, raiva essa que tinha como combustível a dor de cotovelo por causa da reação da Mary, ofereci carona para ela que aceitou sem falar nada. Corremos até o estacionamento onde o meu chevetinho ficava protegido dos olhares invejosos durante o dia, ou talvez fosse apenas para que ninguém arrombasse as portas e cagasse dentro dele, porque roubar um Chevette, mesmo naquela época, era coisa de ladrão de galinhas.
Não rodei duzentos metros e a raiva deu lugar a uma fome incrível. Fome para mim não é sintoma de falta de alimentação. Fome para mim é um estado de espírito. Quer me ver triste, raivoso e com dor de cabeça, é me deixar com fome. Foi esse o motivo de ter perguntado para Eudora:
– Estou com muita fome. Você se importa se pararmos para comer alguma coisa?
– Não.
Só isso. Podia ser um ‘obaaaaa’, um ‘eu topo’ ou algo como ‘tô dentro’. Em vez disso, um simples e direto não. Então arrisquei:
– Não para se incomodar ou não para comermos alguma coisa?
– Não me incomodo.
Já eram duas palavras a mais. Eu estava obtendo um sucesso bastante rápido.
Justo nesse momento avistei os letreiros de uma franquia que eu sempre gostei. Tratava-se de um Chicken In. Para quem não se lembra, Chicken In era um restaurante que servia frangos fritos em uma máquina que mantém o óleo em altíssima temperatura e frita qualquer coisa em questão de minutos. O frango que eles serviam era sequinho e com um tempero que lhe emprestava um sabor muito bom, mas o forte mesmo é que esse frango era acompanhado por fritas ou polenta frita e essa polenta, para mim, era o ponto forte do restaurante. Tanto é que, sendo um famigerado consumidor de fritas, quando ia naquele tipo de estabelecimento, desprezava aquele meu amor pelas ditas e me afundava em uma porção generosa de polenta frita.
As porções eram identificadas por número e, como estávamos em dois, optei pelo número correspondente a esse número de pessoas. Não deu certo porque Eudora mal beliscou uma coxa de frango e dois pedaços de polenta enquanto eu fiquei na obrigação de consumir todo o resto. Não foi uma obrigação que me contrariou, o problema é que, para empurrar tanta comida, a quantidade de chope ultrapassou a que seria aconselhável para quem tinha que dirigir.
Senti o drama quando voltamos para o carro. Como eu já tinha provocado um acidente alguns anos antes por dirigir depois de sair de uma balada e tive um prejuízo que atrasou um pouco a realização dos meus sonhos, sonho esse como conseguir pagar o aluguel de um pequeno apartamento e ter o meu próprio carro que, na época ia além de um Chevette, estava indeciso sobre dirigir naquelas condições. Dirigir até o prédio onde eu morava até podia ser, mas levar Eudora até sua casa e depois voltar já representava um risco bem maior. Então perguntei a ela:
– Não estou me sentindo bem. Você sabe dirigir?
– Não sei.
“Agora fudeu”. Pensei antes de tomar a decisão que informei a ela:
– Não estou muito bom para dirigir. Você se importa em pegar um táxi?
Eudora não respondeu. Apenas ficou olhando para mim que entendi ser aquele olhar a comunicação de um problema. Algo do tipo: estou sem grana. O cavalheirismo falou mais alto e disse:
– Não se preocupe, eu te dou dinheiro para o táxi.
Ela me olhou durante um bom tempo antes de respondeu:
– Eu tenho dinheiro. O problema é que não vou conseguir pegar um táxi com esse tempo.
Opa! Isso é um novo recorde. Dezesseis palavras contra dez da frase anterior.
– E agora? O que vamos fazer?
– Me deixe em um ponto de ônibus.
– Mas está chovendo. Como você vai fazer?
A resposta de Eudora foi um leve levantamento dos ombros que eu traduzi como um “sei lá”.
Fiquei pensando com aquela cara típica de quem quer perguntar: E agora? Eudora deve ter entendido que para mim aquilo estava sendo um grande problema e perguntou:
– No caminho de sua casa tem algum hotel?
Tinha. Por sinal, a menos de cem metros do meu apartamento. Mas minha dúvida era outra:
– Você vai dormir no hotel? O que seus pais vão pensar?
Novo mover de ombros. Mas esse com um significado de “Tô nem aí”.
Bom, se não havia problema para ela passar a noite fora de casa, eu podia pelo menos colaborar para que ela economizasse o valor da diária do hotel. Então propus:
– Se você não se importar? Pode dormir no meu apartamento. Tem um sofá que não é nada confortável, mas dá para passar uma noite.
O terceiro mover de ombros. Porra, eu precisava estudar mímica. Esse eu não sabia se queria dizer “tudo bem” ou um “nem pensar, seu safado”. Para me livrar de uma acusação no caso do significado ser o último, afirmei:
– Não precisa se preocupar. Não vou tentar fazer nada com você. É só para passar a noite mesmo.
Falei isso e aguardei. Se ela respondesse com um movimento de ombros novamente, eu juro que ia sair daquele carro e procurar por uma livraria, para achar um livro que traduzisse esses gestos. Mas, espere um pouco! Uma livraria aberta quando os relógios estavam prestes a dar as doze badaladas? Deve ser por efeito do chope.
Pelo sim, pelo não, tomei a decisão por ela e, colocando o carro em movimento, fui em direção ao meu apartamento.