Hiroshi sempre preferiu o papel. Mensagens de texto podiam ser apagadas, alteradas ou lidas por quem não devia. Palavras faladas eram traiçoeiras, mutáveis, vulneráveis ao tom e ao contexto. Mas a tinta sobre o papel? Aquilo era definitivo. Um registro inquestionável, algo que ninguém poderia mudar depois de escrito.
Desde pequeno, aprendeu com Bianca que documentos eram armas. Seu caderno de anotações era um reflexo de sua mente: metódico, preciso, uma coleção de estratégias e possibilidades. No cabaré, onde tudo se baseava em ilusão, Hiroshi queria algo concreto. Algo que pudesse ser lido e relido, analisado e refletido. A carta para Léo era um pedido de socorro mascarado como uma tentativa de manipulação. A carta para Bianca, um documento de guerra.
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PARTE 1 - CARTA PARA MÃE (ESCRITO À MÃO)
Minha querida mãe,
Antes de mais nada, preciso pedir um favor enorme. O Felipe é gente boa, tá? Só que, há um tempo, eu pedi pra ele fingir que te odeia. Estranho, né? Mas confia em mim. É parte do plano. Preciso que você entre no jogo e arrume um jeito de colocar ele como conselheiro da Sirena. Mas calma! Não é pra fazer isso agora. Espera eu conseguir meu próprio quarto e ganhar a confiança dela primeiro.
Ah, outra coisa: ele sabe que você é minha mãe. Um dia ele me ouviu chamar o seu nome escondido e juntou as peças. Mas fica tranquila, ele é um amigo e gosta de mim. Só que, quando chegar o momento certo, eu não vou pensar duas vezes em deixar você fazer o que quiser com ele. Se for o caso, posso até te ajudar a tirar ele daqui quando tomarmos o cabaré pra gente. Por enquanto, vou precisar que ele continue por perto. Então lembra: nenhum amigo é mais importante que você. Nunca.
Confia em mim. Tenho um plano pra lidar com o Diego, e os outros meninos que trabalham aqui não vão ser problema. Tá difícil, sabe? Fingir que você é só uma amiga da minha “mãe” tá acabando comigo. Quando eu finalmente tiver meu quarto, vem me visitar, nem que seja só pra eu poder te chamar de mãe de novo.
Te amo demais.
PS.: QUEIME APÓS LER
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PARTE 2: O DOCUMENTO PARA BIANCA (DIGITADO E IMPRESSO)
Bianca,
Estive observando algumas coisas que podemos ajustar para aumentar o faturamento do cabaré. São ideias que não só otimizam os lucros, mas também tornam o funcionamento da casa mais eficiente e estratégico. Vou listar as principais sugestões:
1. Regras sobre o consumo de drogas pelos clientes: Precisamos aumentar o preço das drogas fornecidas pela casa e, ao mesmo tempo, proibir que os clientes consumam substâncias trazidas de fora. Se essa regra for descumprida, podemos aplicar penalidades severas, como multas altas ou até mesmo o banimento do cliente. Essa medida não só garante mais controle, mas também protege o lucro.
2. Cobrança dos quartos: Os quartos devem ser cobrados por hora, e não oferecidos como cortesia. A ideia é maximizar o uso do espaço e garantir que cada minuto dentro do cabaré tenha um valor financeiro.
3. Estratégia com as bebidas: Devemos remover a comanda de bebidas que não sejam servidas em doses, como cervejas e energéticos. Assim, quando o cliente estiver bêbado, podemos estrategicamente colocar latas vazias na mesa para inflar a conta final. Isso evita questionamentos, já que é mais difícil controlar o consumo visualmente, e ao mesmo tempo a remoção da comanda cria a falsa ilusão de que confiamos neles.
4. Diferenciação das drogas para GP e clientes: As drogas usadas pelos garotos de programa devem ser diferentes das fornecidas aos clientes. A ideia aqui é evitar que os GP desenvolvam dependência química enquanto induzimos os clientes a tornarem-se cada vez mais dependentes. Clientes viciados retornam com frequência, aumentando o faturamento.
5. Maximizar o lucro com clientes de baixa renda: Clientes que claramente não têm condições financeiras devem ser explorados ao máximo. Como eles não costumam ser fiéis e só aparecem ocasionalmente, é essencial que extraiamos o maior valor possível de cada visita.
6. Cobrança por incidentes de higiene: Qualquer acidente de higiene (sexo anal) durante o programa deve ser cobrado em dobro. Para que essa regra funcione sem prejudicar a reputação do cabaré, os GP que forem passivos devem abrir mão do pagamento do programa caso estejam despreparados.
7. Uso de lubrificante especial para "cheque": Tenho uma fórmula de lubrificante (glicerina estimula a zona intestinal) que pode ser usada para induzir clientes “preparados”. Isso nos permite cobrar a multa correspondente ao incidente. Porém, essa prática deve ser reservada apenas para clientes mais ingênuos, pobres ou bêbados, para evitar complicações desnecessárias.
8. Clientes carentes: Os GP devem ser instruídos a explorar emocionalmente clientes carentes. Eles precisam criar a ilusão de exclusividade e envolvimento emocional, além de insinuar que estão enfrentando dificuldades financeiras. Isso geralmente resulta em presentes, gorjetas generosas ou mesmo transferências em dinheiro. Isso garantirá um extra para as peças sem afetar nosso faturamento.
9. Clientes ricos: Já com clientes ricos, a abordagem deve ser diferente. Os GP podem mencionar que não se alimentam bem devido à alta taxa cobrada pela casa. Essa tática desperta compaixão e incentiva os clientes a gastar mais ou a fazer doações.
10. Aumento da taxa da casa: A taxa de comissão cobrada pela casa deve ser aumentada para GP que não atingirem uma meta mínima semanal ou mensal. Isso os obriga a serem mais produtivos e cria uma pressão saudável para otimizar o trabalho.
11. Incentivos sobre vendas de bebidas: Para motivar os GP a aumentarem as vendas de bebidas, podemos oferecer um percentual de comissão sobre os itens consumidos na mesa de seus clientes. Isso estimula os profissionais a incentivarem os clientes a gastar mais em bebidas, garantindo que a casa lucre ainda mais.
12. Ejaculação: Se o cliente exigir finalização, precisamos cobrar uma taxa extra com a justificativa de que os rapazes ficam exaustos.
13. Multas: Todas as multas oficiais precisam ser divididas em 30% para o GP e 70% para a casa.
Meus cumprimentos a Sirena.
Por Hiroshi.
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PARTE 3 : CARTA PARA LÉO (ULTIMA FOLHA - ESCRITA À MÃO)
Léo,
Sei que você deve estar se perguntando que porra de carta é essa, mas preciso que me escute até o fim, sem rir ou fazer piada antes de terminar de ler. Você sabe que eu não sou do tipo que pede ajuda. Mas cara, eu não tô pedindo ajuda. Eu tô te dando uma chance. Uma chance de estar do lado certo quando as coisas virarem.
Eu sei que você vai falar que isso não é pra você. Que tem outros planos. Mas e se eu te disser que a gente pode construir um plano junto? Que você pode ser o único cara em quem eu confio pra isso? Porque, no fim das contas, eu não confio em ninguém. Mas confio em você.
Não sei o que vai acontecer comigo nos próximos anos. Minha mãe me fez pra ser uma ferramenta dela. E eu quero dar tudo que ela quer. Quero ser o cara que manda nessa merda de lugar, quero fazer dela a mulher mais poderosa desse jogo. Mas tem um lado meu que sabe que, quando isso acontecer, eu não vou ser mais nada. Eu vou sumir.
A Bianca sempre fala que eu sou inteligente. Que eu sou esperto pra caralho. Mas então por que eu sinto que não sei de nada? Por que eu tô aqui escrevendo essa porra de carta como se fosse um moleque assustado? Eu não sei, Léo. Eu queria que você soubesse.
Eu queria que você entendesse que, se um dia eu for longe demais, não é porque eu quis. É porque eu não tinha outra escolha.
Se você quiser entrar nessa comigo, me manda um sinal. Se não quiser... pelo menos não me esquece. E, por favor, não me odeia.
Se cuida, irmão.
PS.: QUEIME APÓS LER.
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O fogo consumia lentamente as folhas amassadas, reduzindo-as a cinzas que dançavam pelo ar noturno antes de desaparecerem na escuridão. Axel observava as chamas engolirem cada palavra escrita. Ele sabia que Hiroshi não havia escrito aqueles documentos para convencer Léo a entrar no jogo. Hiroshi queria que Léo os mostrasse a Axel, que fosse o intermediário para um pedido de socorro silencioso. Mas, acima de tudo, Axel percebeu que Hiroshi não sabia como pedir ajuda.
A carta de Bianca era uma farsa, um disfarce cuidadoso para manter as aparências e deixá-la convencida de que tudo estava nos eixos. As palavras frias e calculadas no documento para Bianca fizeram Axel sentir um aperto no estômago. Ele não sabia o que era pior: o fato de Hiroshi ter criado aquilo ou o fato de ele mesmo saber que aquelas regras funcionariam perfeitamente.
Mas a carta para Léo? Aquela carregava uma angústia real, escondida entre tentativas de manipulação e desespero. No fundo, Hiroshi não queria se tornar o "guia" daquele lugar. Ele só não via outra escolha.
O título "O Guia Definitivo de um Garoto de Programa" parecia frio e calculado, como um manual de mercado negro. Mas Axel enxergava além. O verdadeiro guia não era um papel, não era um conjunto de regras. O guia era o próprio Hiroshi, perdido em um caminho que ele nunca quis seguir.
Queimar aquelas páginas era um ato de revolta. Era Axel dizendo, mesmo sem palavras: "Você não precisa ser isso."
"Mas e Léo? Ele simplesmente jogou fora ou queria que eu os encontrasse? Era descuido ou intuição?"
Axel sabia que Léo era desleixado, impulsivo. Mas havia outra possibilidade: talvez Léo tivesse deixado os documentos para que Axel os encontrasse. Talvez, no fundo, Léo soubesse que Hiroshi precisava ser salvo, mas não tivesse coragem ou capacidade para isso.
Axel deixou o olhar vagar pela cidade iluminada, sentindo o peso daquela descoberta após ler aquelas palavras por muitos dias. Se Hiroshi tinha usado Léo para chegar até ele, isso significava que Hiroshi via em Axel a única possibilidade de escapar.
E Axel não podia ignorar isso.
Ele fechou os olhos por um instante, sentindo o vento frio invadir o apartamento.
No cabaré, a dança já havia começado. Agora, era a vez de Axel ditar o ritmo.
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Por R. Rômulo (Novatinho)
Agradecimento especial a TITO JC, por seu apoio e contribuições na estrutura deste capítulo. Seu incentivo sempre fez a diferença.
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