Matar alguém sem encostar um dedo. Quem diria que eu teria esse poder?
Eu não segurei a faca. Eu não levantei a mão. Mas eu desejei. Eu desejei com tanta força que, por um segundo, me perguntei se o universo estava me ouvindo. E agora ele está morto. Eu deveria chorar? Deveria sentir falta? Mas como sentir falta de um homem que nunca foi pai? Como lamentar a morte de alguém que me destruiu tantas vezes que perdi a conta? Ele me fez odiar minha própria sombra, me fez sentir nojo do que sou. Então por que dói tanto?
Porque ele era meu pai. Porque, por mais que tenha sido um monstro, ele ainda era sangue do meu sangue. E parte de mim queria —não, precisava— acreditar que um dia ele poderia ter mudado. Que talvez houvesse um momento em que ele olharia pra mim e enxergaria um filho, e não um erro. Mas esse momento nunca veio. E agora nunca virá.
Eu sou um monstro por sentir alívio? Por saber que ele nunca mais vai me tocar, nunca mais vai me amaldiçoar, nunca mais vai me fazer desejar ser qualquer coisa além de quem eu sou? Eu deveria me sentir livre, mas tudo que sinto é esse peso esmagador no peito. Porque, na minha cabeça, fui eu quem matou ele. Se eu não tivesse ligado. Se eu não tivesse provocado. Se eu não tivesse cuspido cada palavra na cara dele. Talvez ele tivesse dormido em casa naquela noite. Talvez ele estivesse vivo.
Mas não, o mundo se livrou dele antes que ele pudesse encostar um dedo em mim outra vez. E eu não sei se agradeço ou se me culpo. Só sei que ele se foi. E agora... agora eu carrego essa sombra comigo.
Sabe, Léo, viver tendo contato com o Eduardo é um fardo que carrego em silêncio. É insuportável, mas eu suporto porque sei o quanto você o ama. E eu amo você. Mas sua mãe... sua mãe é outra história. Perdão? Nem sei se existe essa palavra quando se trata dela.
Tudo podia ter sido diferente. Podíamos ter encontrado um jeito de remendar tudo, de juntar os pedaços, de fingir que ainda éramos uma família, mesmo depois de tudo. Mas quando eu mais precisei, quando tudo desmoronava ao meu redor, eu fui descartado. Jogado de escanteio como se minha dor não importasse. Como se eu não importasse.
Eu ainda vejo aquela noite, Léo. Ainda sinto o vazio esmagador tomando conta de mim. Depois da morte do meu pai, a única pessoa que permaneceu ao meu lado foi a vovó. Você não estava lá. Não porque não queria, mas porque não deixaram. Sua mãe, mesmo sem meu pai, manteve a distância entre nós como se eu fosse uma doença, algo que precisava ser isolado.
E eu precisava tanto de você. Eu estava quebrado, afundado em algo que nem consigo descrever, e não ter você ao meu lado só tornava tudo mais insuportável. Você era minha âncora, a única coisa que ainda me fazia sentir humano, e me privaram disso.
No enterro do meu pai, eu te esperei. Esperei por você entre rostos desconhecidos, entre olhares que me pesavam como se eu fosse um intruso. Mas você não veio. Quando perguntei ao Eduardo, esperando algum consolo, alguma explicação que fizesse sentido, ele só me olhou com indiferença e disse que você tinha outras prioridades. E aquilo... aquilo me destruiu.
Você sabe o que mais me machucou? Eu fiquei sozinho. Em um canto, afastado de tudo, porque nem ali, no meio da despedida de um homem que me marcou com ódio, sua mãe foi capaz de me chamar para perto. Ela me ignorou. Me apagou da cena como se eu não existisse. E a única pessoa que talvez pudesse ter segurado minha mão naquele momento, a vovó, não pôde ir. Ela tinha acabado de passar por uma cirurgia nos olhos. E eu...
Eu só queria que alguém me enxergasse.
As semanas passaram depois do enterro do meu pai. A recuperação foi lenta. Cada dia parecia um arrasto, como se eu estivesse andando sobre cacos de vidro descalço, tentando não me cortar mais do que já estava. Mas, de alguma forma, eu segui. A dor não sumiu, mas adormecia aos poucos, junto com a culpa que insistia em se agarrar a mim.
Nossa avó fez tudo o que pôde. Ela me deu carinho, me ofereceu colo quando eu não tinha forças nem pra levantar da cama. Ela cuidou de mim como ninguém nunca cuidou. Mas nem todo amor do mundo seria capaz de apagar o inferno que vivi na casa dela.
Porque lá, junto com ela, morava um monstro diferente.
Seu tio, eu digo seu pois esse eu não faço questão de considerar como sendo da minha família. Ele não levantava a mão contra mim como meu pai fazia. Mas as palavras dele cortavam mais fundo que qualquer tapa.
Lembro de uma noite em especial. Minha avó já tinha ido dormir, e eu estava na cozinha, pegando um copo d'água, quando senti a presença dele atrás de mim. O cheiro de cigarro e álcool chegou antes da voz.
— Você não devia nem estar aqui.
Fechei os olhos por um segundo antes de me virar. Não valia a pena discutir com ele.
— Eu só vim pegar água.
Ele riu, um riso carregado de desprezo.
— Como se essa casa fosse sua. Como se você fosse da família.
Minha garganta secou. Eu sabia onde isso ia dar, mas mesmo assim perguntei:
— Do que você tá falando?
Ele cruzou os braços e me olhou de cima.
— Você não passa de um qualquer, um erro que minha mãe insiste em alimentar. Mas não se engane, moleque. Você não é um de nós. Nunca foi. Seu pai sabia disso. Por isso ele te odiava tanto.
O copo de água quase caiu da minha mão.
— Cala a boca.
— Ah, agora tá se doendo? A verdade incomoda, né? Eu não sei como minha mãe aguenta olhar pra você todo dia. Deve ser culpa. Pena. Porque amor, amor você nunca teve.
Senti minha respiração pesar. Parte de mim queria avançar nele, gritar, quebrar aquele copo no chão só pra ouvir outro som além da voz dele. Mas eu não fiz nada. Apenas apertei o copo com força, virei as costas e saí dali.
Não adiantava. Eu podia gritar, podia xingar, podia tentar me defender. Nada mudaria o fato de que ele estava certo. Eu era um estranho naquela casa e por mais que nossa avó me amasse, isso nunca seria suficiente para me fazer sentir que eu pertencia a algum lugar.
Eu sei que tomei muitas escolhas erradas durante minha vida, e que acabei fazendo com que você fosse sempre meu porto seguro, mas se você soubesse pelo menos metade do que eu sinto dentro da minha cabeça, Léo, acho que talvez, só talvez, você tenha noção do quanto a vida é pesada pra mim.
Dizem que ninguém escolhe as drogas. Mas será que é verdade? Talvez o caminho já esteja traçado antes mesmo de percebermos. Talvez as drogas sejam só um ponto de fuga, um desvio inevitável quando a estrada à frente se torna intransitável.
Afinal, o que leva alguém a se perder assim? O que faz uma pessoa entregar seu corpo e sua mente para algo que, no fundo, sabe que vai destruí-la?
A dor.
A dor pode ser um veneno. Pode ser um buraco cavado dentro do peito, uma ausência constante, um vazio que se expande e engole tudo. E quando a dor cresce demais, você precisa de algo para preenchê-la.
Alguns encontram esse alívio no amor. No abraço de alguém que diz “eu estou aqui”, na voz que acalma, nos olhos que enxergam além do que você mostra. Mas nem todo mundo tem isso, alguns, tentam apenas preencher a dor com ódio. Ódio é quente, é ardente, parece forte, parece suficiente. Mas o ódio também corrói, e no final, ele só te deixa mais vazio.
Outros tentam ignorá-la. Fingem que não está lá. Se enterram em trabalho, em festas, em qualquer coisa que os impeça de pensar por tempo suficiente. Mas a dor é paciente. Ela espera. E um dia, quando você menos espera, ela volta.
E aí tem aqueles que, como eu, escolheram a fuga mais rápida, Uma dose. Um trago. Uma sensação breve de alívio.
De repente, o mundo fica mais leve. O peso nas costas desaparece. As vozes na cabeça silenciam. A lembrança do passado some, nem que seja por alguns minutos. E no começo, você pensa que tem o controle. Você acredita que pode parar quando quiser. Você se convence de que é só uma válvula de escape temporária.
Mas a verdade é que, quando você entra nesse caminho, não é você que segura as rédeas e sim as sombras que te guiam. E as sombras sabem exatamente como sussurrar no seu ouvido, como te convencer de que aquele alívio passageiro é a única coisa que te resta.
Porque, no final das contas, não são só as drogas. É tudo o que veio antes.
É o abandono, é a solidão. É olhar para o lado e perceber que ninguém está ali, estender a mão e não encontrar outra para segurar. Éperder alguém e sentir que perdeu a si mesmo junto.
É querer voltar no tempo e mudar tudo, mas saber que isso nunca será possível. É precisar de algo – qualquer coisa – que preencha o espaço vazio que ficou dentro de você.
E então, sem perceber, você já está lá, preso em um ciclo que parece impossível de quebrar. Porque a dor nunca foi embora, você só a cobriu com fumaça, e quando a fumaça se dissipa…
A dor ainda está lá, e mais forte do que nunca.
Se hoje eu pudesse dizer qual dor fez com que eu me entregasse as drogas, eu te digo com toda certeza quais foram os dois acontecimentos que me levaram a esse caminho.
O primeiro foi o momento em que nossa avó me contou que continuaria pagando meus estudos.
Eu me lembro exatamente da sensação. Era como se, depois de tanto tempo vivendo no escuro, alguém tivesse acendido uma luz. Eu poderia terminar o ensino médio. Poderia seguir com minha vida. Mas o que mais importava, o que fez meu coração disparar de verdade, foi saber que isso significava que eu veria o Léo de novo.
Léo…
Faziam semanas que eu não ouvia sua voz. Que eu não via seu sorriso. Que eu não sentia sua presença perto de mim. PA sua ausência doía mais do que qualquer coisa que eu já tinha passado. Porque ele era minha âncora, minha paz, meu lar. Sem você, o mundo parecia vazio, cinza, sem propósito.
Todo dia, antes de dormir, eu me perguntava o que você estaria fazendo. Se você sentia minha falta do mesmo jeito que eu sentia a sua. Se ainda pensava em mim.
Mas agora tudo ia mudar, afinal, eu ia voltar para a escola. E, finalmente, eu ia ver você de novo.
Naquela manhã, eu acordei antes mesmo do despertador. Meu peito estava acelerado, meu estômago revirava em ansiedade, mas era uma ansiedade boa, diferente do que eu estava acostumado a sentir. Pela primeira vez em muito tempo, eu estava animado.
Vesti minha melhor roupa, ajeitei o cabelo e me olhei no espelho. Meu rosto ainda carregava as marcas do que passei, mas havia uma luz nos meus olhos que eu não via há meses.
Peguei minha mochila e saí de casa com o coração disparado. Cada passo que eu dava até a escola parecia me levar para perto da felicidade que eu tanto desejava.
E então, quando cheguei, a realidade me atingiu como um soco no estômago.
Você não estava lá.
Eu procurei por você em cada corredor, olhei para cada canto da escola, esperando ver aquele rosto familiar, aquele sorriso que me fazia esquecer de tudo. Mas ele não estava lá.
E então alguém me disse que a sua mãe o transferiu de escola.
Eu não ouvi mais nada depois disso. O barulho ao meu redor ficou abafado, meu peito apertou, e por um instante eu jurei que ia desmoronar ali mesmo, no meio do pátio. Era como se o chão tivesse sido arrancado debaixo dos meus pés.
Depois de tudo… Depois de tanto tempo longe…
Depois de tudo que eu suportei, a única coisa que me mantinha de pé tinha sido tirada de mim mais uma vez, e dessa vez, eu não sabia se conseguiria suportar.
Mas houve uma segunda coisa. Algo que me fez desistir de tudo. Que me jogou na escuridão e me fez não querer voltar. Houve um dia. Um dia que mudou tudo.
Era o terceiro dia desde que eu tinha voltado para a escola. A rotina ainda era estranha, e a sua ausência era um peso constante no meu peito. Mas eu estava tentando. Eu estava me segurando.
Naquela tarde, quando cheguei em casa, percebi que algo estava diferente. Minha avó não estava. A mulher do meu tio também não. Nem as crianças. Só ele.
Ele estava sentado na sala, um copo na mão, o cheiro forte de álcool impregnando o ar. Eu soube, no instante em que vi o jeito que ele me olhou, que deveria ter saído dali. Mas não tive tempo.
— Bastardo de merda — ele murmurou, os olhos vidrados em mim. — Nem devia estar aqui. Você não é da família.
Eu ignorei. Tentei passar reto, subir as escadas. Mas ele não deixou.
— Tá surdo, viadinho? Tô falando com você!
A palavra bateu em mim como um golpe, mas eu não reagi. Continuei andando. Até sentir o puxão.
Ele me agarrou pelo braço, forte. Me virei, tentando me soltar, mas ele era mais forte. O cheiro de bebida me enojava.
— Sempre soube. Sempre soube o que você era. Igualzinho ao seu pai. Um lixo.
Meu coração martelava contra o peito. Eu tentei puxar o braço de volta, mas os dedos dele se apertaram mais.
— Me solta — minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
Ele riu. Uma risada suja, cheia de desprezo.
— O que foi? Não vai gritar? Não vai espernear?
Então ele puxou algo do bolso. Ele havia puxado uma algema.
A respiração travou na minha garganta.
— Vamo ver o que você faz quando não tem pra onde correr.
As mãos dele eram ásperas, apertando meus pulsos enquanto me empurrava contra o sofá. Meu corpo congelou. O barulho do cinto se desenrolando. O nó apertando minha pele. O cheiro de bebida.
A respiração dele era quente e suja, um hálito podre de álcool e cigarro impregnando o ar entre nós. O couro do cinto deslizou pela minha pele, apertando meus pulsos até que o sangue parecia querer fugir das minhas veias. Eu tentei me soltar. Tentei gritar. Mas minha voz morreu na garganta quando senti as mãos imundas dele deslizando pelo tecido do meu uniforme.
Ele rasgou minha camisa como se não houvesse nada ali, como se eu não fosse nada. Meu corpo tremia. Mas não de medo. De nojo. De raiva.
As palavras que ele sussurrava no meu ouvido eram veneno puro, escorrendo como um líquido espesso e pegajoso, encharcando cada pedaço de mim.
“Você não é ninguém.”
“Você não é parte dessa família.”
A risada dele era uma navalha atravessando minha pele. Eu queria matá-lo. Queria arrancar cada um dos seus dentes com as próprias mãos.
Queria que ele sentisse na carne o que era ser reduzido a nada.
Mas naquele momento, eu era só um garoto amarrado, com um porco asqueroso sobre mim.
O tempo se estendeu em um pesadelo sem fim. Cada segundo arrastado, cada movimento dele impregnando a minha pele, cada detalhe gravado a ferro na minha memória.
Quando ele finalmente me largou, quando o peso dele saiu de cima de mim, eu só conseguia ouvir o som do meu próprio coração batendo tão forte que parecia querer explodir do peito.
Minha pele queimava onde ele me tocou. Eu queria arrancar cada pedaço que ele sujou. Eu queria me desfazer de mim mesmo.
Mas o que eu fiz?
Me levantei, ajustei as roupas rasgadas e saí daquela casa sem olhar para trás.
Naquele dia, eu morri. O Gustavo que existia antes daquele momento ficou ali, jogado naquele sofá, com as marcas do cinto nos pulsos e o cheiro podre daquele desgraçado grudado na pele.
Eu nunca contei para ninguém.
Nunca falei.
Porque parte de mim sabia que, no fundo, ninguém se importaria. Eu fui apenas mais um a ser quebrado pelo mundo.
E naquela noite, quando eu provei as drogas pela primeira vez, entendi que já não havia nada dentro de mim para salvar.
Xxxxx-xxxxx
Prontinho, como prometido, bateu o número de estrelinhas entao lancei um capítulo durante a semana pra vocês.
Aliás, esse fim de semana tem o último capítulo de "Segredos de Família".
🥰
Ah, já está chegando no fim da narração do Gustavo e brevemente voltaremos aos dias atuais, agora com nossos personagens lidando com todas as bombas que aconteceram no passado.