— Você o quê?! — exclamei, sentando no sofá e deixando o pirulito cair da minha boca. A situação já tinha começado absurda, mas agora estava indo para um nível que eu não esperava.
— Foi um erro, cara. Eu tô com medo, Joel. — Fernando falou, a voz tremendo. — Ele tá pedindo R$ 100 mil. Eu não tenho esse dinheiro.
— Deixa eu ver esse celular. — pedi, estendendo a mão. Fernando me entregou o aparelho com um olhar de desespero.
Na tela, um vídeo do Fernando transando vestido de Link. Sim, o Link, do Zelda. Eu não sabia se ria ou se chorava. Como ele teve a ideia de profanar a fantasia do Link? Olhei pra ele, depois pra tela, e de volta pra ele. Aparentemente, o cara com quem ele tava se envolvia, filmava tudo e postava na internet. Um verdadeiro golpe.
— Tipo, nem dá pra ver que é você. — menti, tentando aliviar a situação.
— A minha vida acabou, Joel. Eu vou me matar. — ele disse, com uma voz tão baixa que quase não ouvi.
— Ei, ninguém vai se matar não. Eu vou te ajudar. — falei, tentando soar convincente.
— Vai? — ele perguntou, com um fio de esperança.
— Sim, porque não? Eu não sou tão rancoroso não. Apesar de você ter me dado um ghosting. — entreguei o celular de volta pra ele. — Sabe onde encontrar esse cara?
— Sim. Eu sei onde ele trabalha.
— Ok. — cruzei os braços e pensei por um instante. — Já sei. — peguei meu celular e digitei o número do Murilo.
Sem explicar nada pro Fernando, liguei pro Murilo e contei a história do meu "amigo" que tinha caído num golpe e estava sendo chantageado. Murilo é daqueles caras que tem contato com todo mundo, inclusive na polícia. Não demorou muito, e ele apareceu no meu kitnet. Sabe aquela sensação de mundos colidindo? Pois é, eu estava sentindo isso na pele.
Murilo e Fernando são completamente diferentes. Enquanto Fernando tava ali, desmontando a fantasia de patrulheiro e vestindo minhas roupas, Murilo chegou com aquele jeitão de quem resolve as coisas. Expliquei de onde conhecia o Murilo e repassei a história toda de novo. Os olhos do Fernando estavam vermelhos, e eu não conseguia imaginar o que passava na cabeça dele, mas devia ser uma mistura de medo e arrependimento. Sentei ao lado dele e, sem pensar muito, acabei segurando a mão dele.
— Hoje é difícil saber em quem confiar. Eu tenho um amigo que pode ajudar, mas não é uma coisa "normal". — falei, olhando pro Murilo.
— Eu não quero matar ninguém! — Fernando soltou, assustado.
— Bem que merecia. — eu brinquei, e ele ficou ainda mais pálido. — Mas não vamos matar ninguém. Só vamos dar um susto.
— Só precisamos de um ator bom. — Murilo comentou, cruzando os braços.
— Putz, eu tenho a pessoa ideal. — falei, pegando o celular de novo.
E, sim, todos os meus mundos estavam se colidindo. Mandei uma mensagem pro Lucas, que respondeu na hora. Contei o caso do Fernando e garanti que rolaria uma grana. Ele topou na hora. Não demorou nem 30 minutos, e o Lucas apareceu na minha porta, com a cara mais lavada do mundo. Ele olhou em volta e disparou: "Festa?". Murilo olhou pra mim e riu.
— Eu preciso de uma cerveja. — admiti, andando até a geladeira e pegando quatro latas. Joguei uma pra cada um dos meus amigos.
— Então, como vai ser a missão 'resgatar a dignidade do nerd'? — Lucas brincou, sentando no sofá e piscando pro Fernando. — Você é gatinho, apesar da peruca estranha. — ele comentou, e Fernando, sem graça, arrancou a peruca da cabeça.
A gente ficou ali, planejando a operação enquanto tomava uma cerveja. Lucas, com seu jeito descontraído, já tava sugerindo que a gente usasse uma fantasia do Mario pra assustar o cara. Murilo, mais sério, falou sobre como ia fazer o cara pensar duas vezes antes de chantagear alguém de novo. E o Fernando? Bom, ele tava ali, meio perdido, mas parecia um pouco mais aliviado.
— Então, é isso. — eu falei, levantando a lata. — Pela dignidade do Fernando. E pelo Link, que não merecia isso.
Todos riram, e a gente brindou. O dia prometia ser longo, mas, pela primeira vez em dias, eu estava me sentindo útil. E, quem sabe, até um pouco no clima natalino.
O grupo passou a maior parte da tarde criando um plano. Fernando, ainda nervoso, pediu uma pizza para tentar aliviar a tensão. Enquanto esperávamos a resposta dos amigos policiais do Murilo, a gente ficou ali, comendo e discutindo os detalhes. Lucas, como sempre, estava à vontade, devorando uma fatia de pizza enquanto fazia perguntas.
— Mas você não mexe com computadores? — ele perguntou pro Fernando, com a boca cheia.
— Sim, mas se eu contar pra alguém... — Fernando começou, mas parou, como se estivesse com medo de continuar.
— Relaxa, Fernando. A gente vai dar um jeito. — eu falei, pegando na mão dele e acariciando. Sabia que o medo do julgamento estava o travando, e isso era o pior que podia acontecer. Imagina a família dele descobrindo tudo? Capaz de ele ser deserdado.
Depois de um tempo, os amigos policiais do Murilo finalmente entraram em contato. A primeira parte do plano era simples: Lucas ia até o salão onde o tal cara trabalhava e tentaria seduzi-lo. Enquanto isso, Fernando e eu ficaríamos no carro da polícia, na frente da casa do sujeito. Fernando já tinha contado toda a história, mostrado as mensagens, e os policiais já tinham conseguido um mandado de busca e apreensão. Contatos são tudo, né?
Fiquei no carro com o Fernando, e o silêncio entre a gente estava me deixando maluco. Decidi puxar assunto, tentando aliviar a tensão.
— Sabe, eu senti falta de você no meio de toda essa bagunça. — eu falei, olhando pra ele. Fernando virou o rosto, mas eu continuei. — Quando tudo aquilo, do posto, explodiu, eu pensei em você. Pensei em como a gente podia ter se ajudado, mas você sumiu.
Fernando baixou a cabeça, como se estivesse carregando o peso do mundo.
— Eu não soube lidar, Joel. Quando vi tudo no jornal, fiquei em choque. E te reconheci em um dos vídeos... foi demais pra mim. — ele confessou, a voz tremendo. — Eu não sabia que você tinha entrado naquele esquema de prostituição pra aumentar a verba. Eu só... eu só não soube lidar.
— Desculpa te deixar na mão em um momento tão ruim. — ele se desculpou, olhando pra mim com os olhos cheios de arrependimento.
— Tudo bem. — eu menti, mas uma lágrima escapou do meu olho e escorreu pelo rosto.
— Não. — ele virou pra mim e limpou a lágrima com o dedo. — Não está. Olha isso, Joel. Você montou uma operação policial inteira pra me ajudar, e eu fui um covarde que não soube lidar com meus sentimentos. Você é mais jovem que eu, enfrentou cada barra na sua vida, e tá aqui, me ajudando. Eu não mereço isso.
— Deixa quieto... — eu tentei cortar, mas ele não deixou.
— Não. Eu cansei de me esconder, Joel. Cara, eu não vivo mais desde que me afastei. Fiquei chateado, entrei em aplicativos, transando com pessoas diferentes pra tentar te esquecer. Mas não deu certo. Eu te amo, Joel. — ele se declarou, e eu senti o coração acelerar.
Fiz uma reflexão rápida sobre ser amado e desejado. Sempre sonhei em ter uma família, em ser amado, mas corri deste sentimento por medo de me machucar. E agora, ali, um cara lindo, inteligente e cheio de defeitos — assim como eu — estava abrindo o coração. Mas o clima foi cortado por uma ligação do Murilo. O cara tinha caído na isca do Lucas, e os dois estavam a caminho do apartamento.
Não demorou muito, e o carro de aplicativo parou na frente do prédio. Lucas saiu do carro com o homem, e eu consegui ouvir a conversa fiada pelo telefone que o Lucas deixou ligado. O som de latinhas abrindo, risadas, e então o Lucas começou a beijar o cara.
— Você quer ir pro quarto? — escutei a voz do homem.
— Claro. — Lucas respondeu, com a naturalidade de um ator global.
— Só espera um minuto. Preciso ajustar a luz do quarto. Já te chamo.
— Foi isso! — gritou Fernando, como se tivesse descoberto uma fórmula importante. — Ele disse que ia ajustar a luz do quarto. Pela posição do vídeo, deve ser essa lâmpada.
A polícia se preparou para entrar em ação. Bateram na porta, e o homem saiu, surpreso. Mostraram o mandado de busca, e ele tentou correr, mas foi detido na hora. Os policiais entraram no apartamento e encontraram quatro câmeras escondidas no quarto. Todo o material foi apreendido, e um dos policiais pediu para Fernando olhar os computadores, enquanto seguravam o pilantra na sala.
Rápido, Fernando tirou uma espécie de pen-drive da mochila e colocou no notebook. Eu não sei bem o que aconteceu, mas diversas pastas abriram, então o Fernando teve acesso às principais contas do tal homem. Em menos de 20 minutos, ele deletou todos os vídeos em que aparecia.
— E ai, parceiro. Tudo certo? — questionou um dos policiais ao entrar no quarto.
— Sim, senhor. — Fernando respondeu como se estivesse falando com o Presidente da República.
— E o maluco vai ser preso? — quis saber Lucas que continuava jogado na cama do homem.
— Vamos levá-lo para a delegacia. Seria bom que vocês fossem fazer uma denúncia formal. — pediu o policial.
— É Lucas. — olhei para o meu colega. — Você foi tão vítima quanto o Fernando.
— Eu sei. — Lucas começou a fingir um choro e, por incrível que pareça, caíram lágrimas.
Mesmo relutante, Fernando concordou. Foi a segunda vez que fui a uma delegacia, mas dessa vez pra apoiar alguém que eu... amo. Sim, eu amo o Fernando. Quando o vi saindo da delegacia, não pensei duas vezes. Corri pra ele, o abracei e o beijei. Eu amo esse homem.
— Eu te amo. — admiti, enquanto o abraçava.
— Tem certeza? — ele perguntou, com os olhos vermelhos. — Eu sou medroso, complicado. Você merece alguém como o Murilo ou o Lucas...
— Cala boca. — eu pedi, beijando ele de novo. — Você é o homem ideal pra mim. Eu que tinha medo de estragar a tua vida, mas olhando pra trás, percebi que era a minha cabeça me trollando. — o beijei mais uma vez. — Você quer namorar comigo?
— Quero. É o que eu sempre quis. — ele disse, chorando e me dando um beijo.
— Xi, Lucas. — brincou o Murilo. — A gente sobrou nessa equação.
— Porra, eu tô cheio de tesão. — admitiu o Lucas. — Topa um motel?
— Claro. Vamos lá. — respondeu o Murilo.
E assim, surgiu um casal improvável. Fernando e eu voltamos pra casa, um pouco mais aliviados. Ele me contou que a equipe de TI da delegacia ia excluir todas as plataformas do cara e que entrariam em contato com outras vítimas. Enquanto caminhávamos de mãos dadas, eu fiz uma retrospectiva de tudo que a gente viveu desde o primeiro dia que nos conhecemos, quando ele foi roubado perto do posto. A primeira vez que ficamos na minha kitnet, quando fomos ao evento de anime com ele fantasiado de Link... Todos os momentos em que me senti desejado e amado por ele.
— Eu te amo. — eu disse de novo, apertando a mão dele.
— Eu também te amo, Joel. — ele respondeu, com um sorriso que iluminou a noite.
— Você tem planos para o Natal? — perguntei.
— Eu topo o que eu meu namorado quiser. — ele afirmou.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu me senti em casa.