O escritório de Vincent era um santuário de ordem e poder. Cada detalhe milimetricamente pensado, cada peça de decoração escolhida para refletir controle absoluto. Mas, naquele dia, ao entrar e fechar a porta atrás de si, ele sentiu que nada ali poderia lhe devolver a sensação de domínio sobre sua própria vida.
A tempestade da noite anterior ainda rugia dentro dele, mesmo que do lado de fora o céu estivesse limpo. Seu corpo estava ali, mas sua mente ainda estava presa ao momento em que encontrou o nome Paradise Suites em um ponto no mapa do histórico de localização do celular de Clara. As provas ainda eram vagas, mas o impacto foi como um soco no estômago. Um nome. Um local. Um rastro deixado por uma mulher que sempre pareceu incapaz de errar.
Ele jogou a pasta sobre a mesa com brutalidade e caiu na poltrona de couro, o coração ainda pulsando forte. Passou as mãos pelo rosto, sentindo os dedos frios contra a pele quente, a mente acelerada como se buscasse soluções para um problema que, no fundo, não tinha solução. A traição já estava feita. O leite já havia sido derramado.
Respirou fundo. Precisava pensar. Precisava decidir o que fazer, mas tudo o que conseguia sentir era a raiva fervendo dentro dele, misturada ao gosto amargo da humilhação. Por que, Clara? Por que destruir algo que ele acreditava ser sólido? Por que jogar fora anos de vida juntos? E principalmente, quem era o outro? O suspeito não poderia ser outro. Otávio.
Foi nesse instante que a porta do escritório se abriu sem aviso. O perfume familiar de Luna preencheu o ambiente antes mesmo que ele erguesse o olhar. Ela nunca pedia permissão para entrar. Nunca precisou.
Luna caminhou até a mesa sem pressa, segurando uma xícara de café quente em uma das mãos. Usava um blazer ajustado sobre a blusa de seda, o salto dos sapatos ecoando contra o piso. Mas o que mais chamava atenção era o olhar afiado, a análise cuidadosa que ela fazia dele sem precisar dizer nada.
Vincent sabia que não adiantaria fingir que estava tudo bem. Luna percebia tudo.
— Café? — ela ofereceu, colocando a xícara sobre a mesa.
Ele soltou um suspiro curto.
— Eu não pedi café.
— Eu sei, mas tu precisa.
Vincent olhou para ela por um momento antes de aceitar. Um gesto pequeno, mas que dizia mais do que palavras.
Luna não se moveu. Permaneceu ali, apoiando-se na mesa, braços cruzados, os olhos cravados nele como se estivesse esperando que ele se quebrasse.
— Vai me contar o que tá acontecendo?
Ele desviou o olhar, girando a xícara entre os dedos.
— Não tem nada acontecendo.
— Mentira.
Ele ergueu os olhos para ela, e o que viu foi um olhar firme, impassível, desafiador. Por um instante, ele cogitou desconversar, mudar de assunto, mas não adiantaria. Ela o conhecia bem demais.
A verdade veio baixa, arrastada, como se custasse sair.
— Clara me traiu.
O silêncio que se seguiu foi denso.
O rosto de Luna permaneceu impassível, mas Vincent viu a tensão nos ombros dela, os dedos se fechando discretamente sobre os braços cruzados.
— Tu tem certeza?
Vincent soltou uma risada curta, amarga.
— Eu vi. Ela foi ao Paradise Suites. Tava no histórico do celular dela.
Luna murmurou um palavrão baixo, desviando o olhar por um segundo. A mulher que sempre teve tudo, jogando tudo fora. Ela não era ingênua, sabia que Clara era humana, passível de erro. Mas trair Vincent?
Luna cruzou as pernas e olhou para ele com mais seriedade.
— E agora?
Vincent ficou em silêncio.
O que ele queria era destruir Clara. Expô-la. Fazer com que ela sentisse cada fragmento da dor que ele estava sentindo. Mas para isso, ele precisava de provas.
— Eu preciso saber quem é o outro — sua voz saiu controlada, mas carregada de ódio — E quando eu souber, eu vou acabar com os dois.
Luna assentiu lentamente, os olhos brilhando com algo perigoso.
— Então a gente descobre.
Vincent ergueu as sobrancelhas.
— Você está comigo nisso?
Ela inclinou a cabeça de leve.
— Quando que eu não estive?
O olhar dos dois se sustentou por um momento. Luna era uma aliada. Sempre fora. Eles tinham uma relação baseada em respeito mútuo e lealdade. E agora, mais do que nunca, Vincent precisava disso.
O silêncio entre eles se alongou, carregado, denso. Vincent apertava a xícara entre os dedos, sentindo o calor do café esquentar sua pele fria. Luna não desviava o olhar, e ele sabia que sua mente trabalhava rápido. Ela era afiada, estratégica, movida por instintos tão perigosos quanto precisos.
Então, de repente, um brilho diferente passou por seus olhos. Algo mudou.
Luna recostou-se na cadeira e tamborilou os dedos na mesa. Um meio sorriso apareceu em seus lábios, um sorriso que Vincent conhecia bem demais.
— Eu acho que tenho uma ideia.
Vincent franziu a testa.
— Que tipo de ideia?
Ela inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos sobre a mesa. Seus olhos estavam afiados como lâminas.
— Uma que vai te dar exatamente o que tu quer.
O coração de Vincent deu um leve salto no peito, mas ele manteve a expressão fechada. Largou a xícara, cruzou os braços sobre a mesa e a olhou diretamente nos olhos.
— Eu tô ouvindo.
Luna sorriu mais abertamente, e o brilho predatório em seu olhar fez algo gelado percorrer a espinha de Vincent.
A vingança estava prestes a começar.
**********
A semana transcorreu como um borrão. Para Vincent, cada dia parecia trazer mais peças do quebra-cabeça que, aos poucos, tomava forma diante de seus olhos. O silêncio entre ele e Clara era preenchido pelas mensagens de Luna, que chegavam antes mesmo do café da manhã, trazendo imagens, áudios, registros de check-in. Ele lia cada um sem pressa, sem hesitação, como se estivesse se preparando para um exame minucioso. Seu coração não acelerava mais como na primeira descoberta. Agora, a dor e a raiva haviam se transformado em algo frio, preciso, calculado.
Naquela sexta-feira, como de costume, Vincent desceu para o café da manhã. O cheiro do café fresco misturava-se ao aroma suave do pão recém-saído da torradeira. Clara se movimentava com naturalidade pela cozinha, a expressão de quem acreditava que tudo ainda estava sob controle. Wagner já estava sentado à mesa, o celular entre as mãos, a mochila jogada na cadeira ao lado.
Vincent pegou uma xícara e observou os dois sem pressa. Wagner costumava ser próximo da mãe, havia um carinho evidente na forma como a tratava, no tom que usava quando falava com ela, na atenção que lhe dava mesmo nas pequenas interações diárias. Mas naquele momento, algo estava diferente. Wagner não olhava para Clara. Ele respondia às palavras da mãe de maneira breve, sem emoção, sem envolvimento.
Clara terminou de servir-se e passou uma fatia de pão para o filho. Ele pegou sem agradecer, sem erguer o olhar, mastigando distraído, os olhos fixos na tela do celular. A ausência de um gesto tão pequeno fez algo se acender dentro de Vincent. Wagner sempre sorria para a mãe pela manhã, mesmo quando estava de mau humor. Sempre trocavam alguma palavra sobre a escola, sobre os planos do dia. Mas agora, ele evitava a interação como se cada segundo fosse um esforço.
Clara notou, porque Vincent percebeu quando ela umedeceu os lábios antes de tentar puxar assunto.
— Filho, terminei de lavar tua jaqueta. Tá no teu quarto.
Wagner apenas assentiu.
Nenhum "valeu, mãe". Nenhum comentário. Nenhum olhar.
Vincent observou a cena sem desviar os olhos, tomando um gole de café. O peso no ar era perceptível, mas Clara, talvez por medo de forçar a situação, não insistiu.
A confirmação não veio de palavras, mas sim do silêncio. Wagner estava se afastando da mãe.
Vincent terminou o café sem pressa. Wagner terminou primeiro, pegou a mochila e saiu apressado, murmurando algo sobre não querer se atrasar. Clara o seguiu com o olhar, mas não disse nada. Quando a porta se fechou, ela suspirou. Vincent captou o momento exato em que ela franziu a testa, inquieta.
Subiu para se arrumar para o trabalho, mas a mente já estava em outro lugar.
Mais tarde, ele saiu mais cedo da empresa e foi até a escola de Wagner.
Encostou o carro em uma rua paralela, observando o fluxo de alunos saindo pelo portão principal. Wagner estava entre eles, a mochila pendurada em um ombro, Ellen ao seu lado, conversando com um sorriso distraído. Com ela, Wagner parecia leve, natural. O incômodo de mais cedo parecia ter desaparecido, mas Vincent sabia que não.
Ligou o pisca-alerta e baixou o vidro do carro.
— Wagner.
O filho parou no mesmo instante. O sorriso desapareceu e sua expressão ficou cautelosa. Ellen olhou de Vincent para Wagner, parecendo hesitar.
— Vou te dar uma carona pra casa.
Wagner lançou um olhar incerto para Ellen, e Vincent notou a maneira como ele segurou a alça da mochila com mais força.
— Eu posso ir de ônibus, pai, de boa.
— Prefiro te levar.
O olhar que Wagner lançou a Ellen foi breve, mas suficiente para que ela entendesse que não havia escolha.
— Te mando mensagem depois — ele murmurou.
Ellen assentiu e saiu, mas não sem lançar um último olhar para Vincent.
Wagner entrou no carro sem dizer nada, jogando a mochila no banco de trás.
O motor roncou, e o silêncio tomou conta do veículo enquanto Vincent dirigia pela avenida. O rádio tocava baixo, um jazz suave, e a paisagem urbana passava como um borrão.
Wagner mantinha o olhar fixo na janela, os dedos tamborilando contra a coxa.
Vincent dirigiu por alguns minutos sem falar nada, sem pressa, sem se entregar à pressa.
— Como você e a Ellen tão indo?
A pergunta veio casual, sem tom acusatório. Wagner piscou antes de responder.
— Ah… bem.
— Que bom.
Mais alguns segundos de silêncio.
— E em casa? Tudo certo?
Dessa vez, Wagner demorou para responder.
— Sim. Tudo normal.
Vincent manteve os olhos na estrada, mas percebeu o jeito como o filho passou a mão pela nuca, um gesto inconsciente de nervosismo.
— Você e sua mãe brigaram?
Wagner se mexeu no banco.
— Não.
Vincent sentiu uma pontada de satisfação fria.
— Tem certeza?
— Tenho.
O silêncio voltou a reinar, mas Vincent não perdeu nenhum detalhe. A forma como Wagner apertava os lábios, como sua perna balançava levemente, como evitava virar o rosto.
A mentira era tão óbvia que chegava a ser infantil.
Vincent estacionou o carro diante de casa, desligando o motor. Mas, em vez de sair, permaneceu ali por um instante.
Wagner segurou a maçaneta, esperando alguma permissão silenciosa para ir embora.
Vincent virou-se para ele e sustentou seu olhar.
— Se algum dia você quiser me contar alguma coisa, eu espero que você tenha coragem pra isso.
O ar dentro do carro ficou denso.
Wagner não respondeu de imediato. Apenas assentiu, quase imperceptivelmente, antes de abrir a porta e sair rápido demais, sem olhar para trás.
Vincent permaneceu no carro, observando o filho desaparecer dentro da casa. Não precisou de mais nada. Wagner sabia. Isso era uma certeza agora.
A questão não era mais se ele sabia, mas o que faria com isso.
O silêncio dentro do carro era esmagador. A luz fraca do fim de tarde tingia o interior do veículo com um tom alaranjado, mas Vincent não via nada disso. Suas mãos estavam firmes no volante. Não poderia entrar em casa ainda. Não agora.
Com um suspiro lento e controlado, ele pegou o celular, deslizando o dedo pela tela até abrir a última conversa com Luna.
A cada dia que passava, as evidências se tornavam mais nítidas, mais impossíveis de serem ignoradas. O nome de Clara e Otávio estava marcado em recibos, horários registrados, deslocamentos que coincidiam perfeitamente. Mas nada disso o atingia como aquelas imagens.
Ele abriu a primeira foto.
Clara e Otávio saindo juntos da clínica. As expressões eram neutras, mas havia algo na forma como caminhavam lado a lado, algo que apenas alguém que os conhecia bem notaria. A naturalidade, a proximidade controlada demais para serem apenas colegas.
Deslizou para a próxima.
Um jantar em um restaurante discreto, de meia luz, daqueles que atraíam casais que não queriam ser vistos. Otávio sorria, Clara segurava uma taça de vinho, e algo no olhar dela fez Vincent sentir um aperto no peito. Ela estava leve. Ela estava à vontade.
A terceira foto era pior.
Um hotel.
Não havia mais espaço para dúvidas, para desculpas. Clara e Otávio entravam juntos no prédio, e a forma como ela o olhava não era a forma como olhava para Vincent há anos.
Ele fechou os olhos por um instante.
O estômago revirou, um nó apertando seu peito de maneira insuportável, mas ele ainda não tinha terminado. O pior ainda estava por vir.
A última mensagem de Luna não trazia uma foto. Era um vídeo. Vincent hesitou. Por um segundo, cogitou não abrir, mas abriu.
O som abafado de um motor em marcha lenta encheu o silêncio do carro. A câmera tremia um pouco, como se tivesse sido capturada discretamente por alguém escondido à distância. As luzes fracas dos postes iluminavam o interior de um carro estacionado em uma rua isolada.
Clara e Otávio estavam lá dentro, no banco de trás.
Vincent sentiu o sangue gelar.
A tela dava um zoom, ajustando o foco. O vídeo era inegável. E quanto mais assistia, mais difícil ficava para desviar o olhar.
A lente registrava Clara, posicionada no colo de Otávio. A escuridão e o vidro embaçado borravam alguns detalhes, mas a imagem geral era clara: corpos pressionados juntos, bocas famintas uma pela outra, mãos que exploravam sem hesitação.
O murmúrio incrédulo de Luna foi registrado quando viu as mãos de Otávio segurando a cintura de Clara, puxando-a para si com uma fome que a câmera conseguia capturar perfeitamente. Os movimentos eram lentos no começo, mas cheios de tensão, como se estivessem saboreando cada instante.
O reflexo dos postes na lataria do carro piscava a cada pequeno movimento deles, uma dança silenciosa de luz e sombras, um espetáculo proibido sendo registrado quadro a quadro.
A lente captava a palma da mão de Clara deslizando pelo peito de Otávio, os dedos se enterrando no tecido da camisa dele, como se quisesse arrancá-la, como se precisasse sentir a pele dele contra a dela.
A câmera filmava quando o vidro se tornou ainda mais opaco, as marcas das mãos surgindo no vidro traseiro, prova física do calor que se acumulava lá dentro.
O vídeo durava apenas alguns segundos, mas era suficiente.
Os olhos dela rolavam para trás enquanto ela mordia os lábios, antes do botão de replay aparecer na tela.
Vincent sentiu a respiração travar no peito. O celular tremia em sua mão. O ar dentro do carro ficou pesado, sufocante. Era real. Não eram apenas registros frios de um hotel ou um jantar. Era ela. Era o corpo dela reagindo, era o rosto dela entregue ao outro.
O autocontrole que mantivera até então começou a rachar.
Seu coração batia forte, rápido, num misto de raiva e algo pior, humilhação.
O homem que sempre se orgulhara da esposa que tinha, da mulher generosa e altruísta com quem havia se casado… agora via tudo ruir diante de seus olhos.
A porta da garagem se abriu automaticamente, mas Vincent não se moveu.
Ele fechou os olhos, o peito subindo e descendo de forma irregular.
Passou a mão pelo rosto, tentando dissipar o calor da raiva que se acumulava a cada segundo. Não podia entrar naquele estado. Não ainda. O vídeo ainda rodava em sua mente como um eco insuportável. Lentamente, soltou o ar e desligou o celular.
**********
A escuridão da noite se estendia diante do para-brisa enquanto Otávio dirigia sem destino certo. As luzes dos postes passavam como borrões no vidro, refletindo o estado de espírito de Clara. O silêncio dentro do carro era tão pesado que quase se tornava tangível. O motor roncava suavemente, um ruído baixo que preenchia os espaços entre os pensamentos caóticos dela.
As mãos de Clara repousavam sobre o colo, os dedos entrelaçados, apertando-se uns contra os outros como se quisessem impedir que seu mundo desmoronasse de vez. Ela desviou o olhar para a janela, observando a cidade passar em flashes distorcidos. Ela não sabia para onde estavam indo, mas naquele momento, não importava. O único desejo era estar longe, longe de casa, longe de Vincent, longe de tudo o que a sufocava.
Otávio manteve uma mão firme no volante, enquanto a outra repousava no câmbio, os dedos tamborilando contra o couro. Seu olhar alternava entre a estrada e Clara, sua expressão séria, preocupada, mas ainda sem pressa de quebrar o silêncio. Ele sabia que ela precisava falar primeiro.
Clara respirou fundo, o ar pesado, o peito apertado, o peso do segredo aumentando a cada dia.
— Eu não sei o que fazer.
Sua voz saiu baixa, quase um sussurro, mas Otávio escutou perfeitamente. Ele apertou a mandíbula antes de responder, sentindo o impacto simples daquela frase.
— Eu tô contigo, não importa o que aconteça.
Clara fechou os olhos por um instante. Ela queria acreditar nisso, mas a verdade era que tudo estava desmoronando ao redor deles, e o tempo estava se esgotando.
Ela levou a mão até o ventre ainda plano, como se pudesse sentir ali a presença silenciosa do problema que crescia dentro dela.
— Eu estou grávida.
As palavras saíram num sopro, como se sua própria voz tivesse medo de dizê-las. O silêncio que se seguiu foi diferente. Não era apenas pesado, era definitivo.
Otávio piscou algumas vezes, absorvendo a informação. Ele não desviou os olhos da estrada, mas seus dedos no câmbio pararam de se mover.
O silêncio se prolongou, e Clara sentiu o peito arder.
— Otávio.
Ele finalmente soltou o ar que parecia estar segurando.
— Tem certeza?
Clara assentiu, engolindo em seco.
— Fiz o teste ontem.
Otávio soltou um palavrão baixo e desviou o carro para uma rua menos movimentada. Clara observou cada músculo de sua expressão se reconfigurar para lidar com aquela verdade. Ele estacionou em um local discreto, longe de olhares curiosos.
O motor ainda ligado emitia um ruído baixo, a única coisa que preenchia o silêncio esmagador.
Otávio finalmente virou-se para Clara, a intensidade de seu olhar queimando a pele dela.
— E agora?
Ela soltou uma risada curta, sem humor.
— Se eu soubesse, não estaria nesse carro contigo sem conseguir respirar.
Otávio passou a mão pelos cabelos, soltando o ar lentamente.
— A criança pode ser minha.
Clara sentiu um nó apertar seu peito. Esse era o pensamento que vinha assolando sua mente desde o momento em que viu as duas linhas no teste.
— Ou de Vincent.
Otávio virou o rosto para o para-brisa, os olhos fixos em um ponto qualquer na noite.
— E como tu pretende descobrir?
Clara fechou os olhos. Ela não queria pensar nessa parte.
— Eu não sei.
A frase soou mais como um apelo do que uma resposta.
Otávio passou os dedos pela barba, respirando fundo.
— E tu vai contar pra ele?
Ela mordeu o lábio inferior, as unhas cravadas na palma das mãos.
— Se eu disser que estou grávida, ele vai acreditar que o filho é dele. Mas se a criança nascer com olhos castanhos…
Ela não terminou a frase. Não precisava.
Vincent era um homem observador, e a chance de um erro genético improvável não era uma aposta em que Clara se sentia segura.
Otávio manteve-se em silêncio por um tempo, apenas olhando para ela. Quando finalmente falou, sua voz era mais baixa, mas carregada de algo que Clara não soube identificar.
— Então tu precisa sair dessa antes que seja tarde.
Ela franziu a testa, sentindo o coração acelerar.
— O que tu quer dizer?
Otávio inclinou-se ligeiramente em sua direção, segurando sua mão.
— Divórcio.
A palavra ecoou dentro dela como um trovão.
— Antes que ele descubra a gravidez. Antes que qualquer coisa saia do teu controle.
Clara piscou, tentando processar o peso daquelas palavras. Era isso? A única solução?
Otávio não a soltou, sua voz carregada de urgência.
— Se tu se separar dele agora, a gravidez não vai levantar suspeitas. Todo mundo vai assumir que o filho é dele, e a gente pode seguir com isso.
Clara sentiu um arrepio subir por sua espinha.
— Mas e se for mesmo dele?
Otávio apertou os lábios, sua expressão se fechando por um instante.
— Aí tu decide se quer continuar comigo ou não.
Clara sentiu a respiração falhar. Ele estava dando uma escolha. Algo que ela nunca precisou pensar.
A ideia de deixar Vincent, de simplesmente pegar suas coisas e sair, parecia ao mesmo tempo um alívio e um pesadelo. O homem com quem viveu metade de sua vida não era alguém que aceitaria um divórcio sem lutar.
E se ele já desconfiava de algo?
Ela passou as mãos pelo rosto, os pensamentos girando em sua mente.
— Não é tão simples assim.
Otávio ergueu o queixo.
— Não, não é. Mas continuar com essa farsa só vai piorar tudo. Tu sabe disso.
Clara apertou os olhos. Sabia. Mas admitir era outra história.
O medo do desconhecido a segurava presa, mas a mentira também já não a deixava respirar.
Ela olhou para Otávio, seus olhos buscando algo que a fizesse sentir menos perdida.
Ele segurou seu rosto entre as mãos, trazendo-a para perto.
— Eu tô aqui.
Clara queria acreditar, mas será que ainda havia tempo para escapar?
**********
A casa dos Weiser havia se transformado em um teatro de mentiras bem ensaiadas. Ninguém falava, ninguém confrontava, mas cada um carregava dentro de si o peso do que sabia, ou do que temia que fosse descoberto.
Vincent acordava antes do amanhecer, passava mais tempo na empresa do que o necessário, evitava conversas triviais com Clara e Wagner, mas observava tudo. Seus passos eram calculados, suas palavras sempre medidas. Dentro de seu escritório, longe dos olhares atentos, ele revisava papéis que ninguém sabia que existiam. Os documentos para o divórcio já estavam sendo preparados. Ele ainda não os assinara, ainda não dera o passo definitivo, mas o fim já estava decidido.
Clara, por sua vez, não dormia direito. Acordava no meio da noite sentindo o coração disparado, suada, com a respiração curta. A verdade a estrangulava a cada dia. O segredo da gravidez estava bem escondido, mas ela sabia que aquilo não era suficiente para manter o medo afastado. Pegava-se com os dedos deslizando inconscientemente pelo ventre quando estava distraída. Era um gesto involuntário, instintivo, mas cada vez mais frequente. Ela queria acreditar que tudo ainda estava sob controle, que conseguiria sustentar a mentira até encontrar uma saída, mas a casa parecia estar diminuindo a cada dia, como se as paredes estivessem fechando-se sobre ela.
Wagner passava mais tempo fora de casa. Quando estava lá, permanecia trancado no quarto, evitava conversar além do necessário. Não olhava nos olhos de ninguém. Se Vincent notava, não dizia nada. Se Clara percebia, fingia não notar. Mas Wagner sabia que eles viam.
Os jantares eram os piores momentos. O silêncio dominava a mesa. O barulho dos talheres era o único som além dos ruídos de respirações contidas.
Naquela noite, Wagner jantou rápido.
— Vou sair com a Ellen.
Não pediu permissão, não deu mais explicações. Apenas se levantou, pegou a jaqueta e saiu. A porta fechou-se atrás dele com um som seco, final, deixando um vazio pesado na sala de jantar.
Vincent segurou a taça de vinho entre os dedos, girando o líquido escuro devagar.
Clara manteve os olhos baixos no prato, incapaz de encará-lo por muito tempo.
Ele percebeu. Respirou fundo, deixando o silêncio se arrastar mais um pouco, antes de finalmente falar.
— Quer ver um filme?
Clara piscou, surpresa pela pergunta. Não esperava aquilo. Nos últimos dias, cada interação entre eles havia sido protocolar, distante, cuidadosa.
Ela abriu a boca para recusar, mas hesitou. Vincent não tirava os olhos dela. Havia algo na voz dele, na forma como a observava…
Um tom diferente.
— Acho que prefiro ir deitar cedo… — tentou, afastando o prato devagar.
Vincent apoiou o cotovelo na mesa, o queixo descansando sobre a mão.
— Clara.
Ela ergueu os olhos.
Ele sorriu.
— É só um filme.
Ela sentiu a respiração falhar. Vincent não sorria há dias e agora, aquele sorriso parecia conter algo que ela não conseguia decifrar.
A sala estava mergulhada em um silêncio que parecia vivo, pulsando entre as paredes, crescendo a cada segundo. Algo na postura de Vincent fez cada célula do corpo de Clara se retesar. Ele pegou o controle remoto sobre a mesa lateral, os dedos firmes, e apontou para a televisão.
A tela se acendeu.
Por um instante, o preto da tela deu lugar a uma imagem granulada, um vídeo tremido, captado por uma câmera que claramente tentava não ser percebida. A princípio, Clara não compreendeu. Seus olhos demoraram meio segundo a mais para aceitar o que via, para decifrar o que aquilo significava.
E então, seu chão se abriu.
O carro.
A rua isolada.
A silhueta de dois corpos no interior do veículo.
Ela e Otávio.
Seus olhos se arregalaram e o ar ficou preso nos pulmões.
— Não…
A palavra saiu sem força, um sussurro quebrado.
Vincent manteve-se imóvel no sofá ao lado, as pernas cruzadas, o rosto impassível. Não havia raiva aparente, não havia fúria visível, mas seus olhos… seus olhos estavam vazios.
A gravação continuava. O vidro embaçado do carro, as mãos de Otávio deslizando pelo corpo de Clara, o modo como sua cabeça tombava para trás, os lábios entreabertos em um gemido mudo que, mesmo sem som, era inegável.
O coração de Clara batia descompassado, o sangue gelado nas veias. Ela se levantou de súbito, sentindo as pernas trêmulas.
— Vincent, por favor…
A voz dela falhou. Ele não respondeu. Apenas pegou o controle e voltou o vídeo para o início.
O carro.
A rua isolada.
Os dois corpos.
A cena se repetindo.
Clara levou a mão à boca, um soluço travando em sua garganta.
— Desliga isso.
Vincent inclinou levemente a cabeça para o lado, observando-a com algo que não era raiva, mas algo pior.
Desprezo.
— Por quê? — sua voz saiu baixa, fria — Não gostou do filme?
Clara balançou a cabeça, os olhos se enchendo de lágrimas. O estômago revirava, um pânico desesperado tomando conta de seus membros.
— Por favor, Vincent, me escuta…
O vídeo continuava rodando.
O calor entre os corpos.
O brilho da pele suada.
O modo como Otávio a segurava.
O modo como ela se entregava.
A vergonha queimava como ácido sob a pele de Clara. Sua visão embaçava, o coração martelando descontrolado no peito.
Vincent não piscava.
— É engraçado.
A frase foi dita sem emoção, como se estivesse apenas comentando sobre o tempo.
Clara sentiu o peito apertar ainda mais.
Vincent respirou fundo, apoiando um dos braços no encosto do sofá, sem tirar os olhos da tela.
— Por meses, eu dormi ao teu lado. Por meses, eu me perguntei por que você parecia tão distante. Por meses, eu achei que o problema era eu.
Clara sentiu uma lágrima escorrer por seu rosto, mas ele não olhou para ela.
— E durante todo esse tempo… — Vincent descruzou as pernas e se inclinou para frente, finalmente encontrando o olhar dela. Os olhos frios, impiedosos — Você tava assim com ele.
Clara levou as mãos ao peito, tentando conter os soluços que ameaçavam explodir.
— Não foi assim…
Vincent riu. Baixo, sem humor.
— Não foi?
Ele pegou o controle remoto e aumentou o volume.
Agora, não eram apenas as imagens.
Agora, o som preenchia a sala.
O gemido abafado.
A respiração acelerada.
Os sussurros de desejo.
Clara deu um passo para trás como se tivesse levado um golpe físico.
— CHEGA!
Ela correu até a televisão e apertou o botão de desligar, a tela ficando preta num segundo. A respiração dela estava errática, as mãos trêmulas.
Vincent se levantou devagar.
A sombra do homem que ele costumava ser agora pairava sobre ele.
— Eu poderia perdoar.
A frase veio como uma lâmina.
Clara ficou paralisada, os lábios entreabertos, sem conseguir respirar.
Vincent continuou.
— Se tivesse sido só um erro. Um deslize. Um momento de fraqueza — Ele deu um passo na direção dela, e Clara sentiu os joelhos quase cederem — Mas não foi — Outro passo — Foi escolha.
Vincent se aproximou até que ela sentisse a presença dele sufocá-la.
— Foi intencional.
Clara fechou os olhos, os soluços finalmente escapando.
Vincent ergueu a mão e passou os dedos suavemente pelo rosto dela, limpando uma lágrima.
— Eu espero que tenha valido a pena.
A voz era um sussurro.
A frieza era cortante.
Clara abriu os olhos, e pela primeira vez, não viu nenhum resquício do homem que amava.
Vincent a olhava como se ela fosse um estranho.
Talvez, a partir daquela noite, fosse exatamente isso que eles seriam.