Toda vez que lembro daquela noite me vem a mente uma sensação pavorosa de opressão. Às vezes, sinto como se meu corpo fosse lentamente amarrado por cordas que ficam cada vez mais apertadas caso eu me mexa. O que eu irei narrar agora pode ser nomeado como o “começa do fim” da minha história em Três Colinas, já que foi nessa noite em particular que tudo foi esclarecido. Sabe aquele vazio que me acompanhava enquanto eu olhava para a paisagem pela janela do trem enquanto vinha para cá? Então, ela também se fez presente, mas acompanhada de muito medo.
Estávamos passando por uma estrada com grandes árvores de ambos os lados, que estaria completamente escura se não fossem os faróis do nosso carro. Marinho falava comigo sobre como a família Castanho agiu pelo mal daquelas pessoas durante todos aqueles anos, obviamente cada vez mais indignado. A questão era bem mais complexa do que imaginávamos: a companhia agia de má fé na exploração das riquezas naturais e das pessoas há anos, para ser mais preciso há quase dois séculos. O que se sabia era muito pouco em comparação aos absurdos que descobrimos também com a apreensão dos computadores do escritório da madeireira, que a essa altura estavam na perícia digital, onde absurdos maiores iriam aparecer depois. Provavelmente eu perderia meu emprego ou receberia uma severa punição administrativa, mas não me importava muito com isso naquele momento.
Muito sentimentos se passavam na minha cabeça confusa, e ao saber que eu torturei Thomás e matei seus seguranças Marinho nada fez a não ser preocupar-se com minha integridade física. Ele evidentemente sabia que eu estava aos poucos entrando em colapso. Aquele som do vento nas árvores me trazia uma sensação estranha, como se eu estivesse sendo observado por pessoas ou seres na floresta, as vezes eu olhava pelo lado de fora e tudo era como um grande borrão. Senti uma mão quente na minha nuca me puxando para perto dele, onde recostei minha cabeça em seu ombro e respirei aliviado por senti-lo tão perto de mim.
Era engraçado pensar que mesmo em circunstâncias tão ruins a sua presença por si só me acalmava. Tantos anos de relacionamento e essa sensação ainda é constante. Minha mente, que sempre é um lugar tão difícil de estar, torna-se um quadro branco quando ele toca em mim ou beija meu pescoço e rosto. Assim como as trevas se apoderam de mim e me fazem ser uma pessoa muito ruim, ele consegue trazer o sol para meu corpo e iluminar meus dias. Naquele momento, sentia que tudo estava sob controle, mesmo não sabendo nem um terço de tudo o que estava para acontecer. Chegamos a uma entrada de terra com uma porteira caindo aos pedaços, onde alguns carros da política estavam estacionados ali.
Aquelas luzes, o barulho da chuva, cachorros latindo, vozes ao nosso redor... Tudo contribuía para uma atmosfera completamente caótica, mas que possuía um tom de místico. Não dava para vermos a lua, pois o céu estava completamente escuro, mas sabia que ela nos via. Naquele momento, tinha certeza de que Deus havia nos abandonado.
***
Na frente da caverna, um grande tronco apodrecia, se não fosse pelas lanternas direcionadas para aquele lugar dificilmente veríamos alguma coisa. A passagem era muito estreita, e dentro dela não se via nada. Raízes, galhos e muito musgo cobriam aquele buraco (literalmente).
_ A questão é que não sabemos quais partes da mina estão acessíveis, sabemos que algumas vias estão interditadas pelos alagamentos, o que torna ainda mais perigoso entrar lá. – Falava o geólogo que nos acompanhava durante essas missões, continuava:
_ Pelo mapa que você nos mostrou – disse apontando para mim – a única entrada que faz sentido seria a quinta na lateral, já que é uma passagem mais recente feita a alguns anos atrás antes da desativação. De toda forma, temos que ter muito cuidado nas buscas, porque os deslizamentos podem acontecer a qualquer momento já que a chuva não parou nesses dias. Temos que ter muita cautela a entrar lá. – Concluiu nos mostrando a passagem do mapa que, segundo ele, poderia ser a alternativa mais viável até alcançar o centro da mina e de lá seguir para o caminho que daria para as galerias, que por sua vez era a parte que faltava do mapa. Ele ainda acrescentou que não fazia ideia de como e onde acessar o outro mapa, mas que sem ele as chances de nós nos perdemos lá dentro seriam certas.
Eu afivelava o colete de balas de Marinho, enquanto ele carregava sua arma. Em determinado momento, enquanto eu colocava uma lanterna no meu cinto e um capacete de mineiro com uma luz branca forte, ele se vira para mim, falando de forma rápida e firme:
_ Você não vai! – Disse olhando nos meus olhos.
_ Como assim, porra? – Falei sem entender.
_ Você não vai, irei entrar com o geólogo e os policiais com treinamento para buscas, e você fica aqui. – Falou guardando a arma no coldre.
_ Tu só pode tá maluco se acha que vou ficar aqui enquanto tu tá lá dentro... Ninguém sabe o que vai rolar lá dentro e tu acha que vou ficar aqui te esperando como um donzela? Não sei qual parte do “a gente tá junto agora” tu não entendeu, mas nem vou entrar muito no assunto... Cala a boca e se adianta, a gente precisa entrar na caverna o quanto antes.
_ Eu não sei o que fazer da minha vida se eu perder você. Por favor, fica aqui e me deixa entrar sozinho. Eu aceito que aconteça qualquer coisa comigo, mas, se algo acontecer com... – Não esperei ele terminar de falar. Ele estava de frente para mim, eu o puxei pela alça do colete e o beijei.
Não sei exatamente quanto tempo durou aquele beijo, mas foi um dos melhores que já dei na vida. Havia espaço para tudo naqueles breves segundos. Foi o gosto da saudade do lar que nunca tive, o gosto dos quilômetros até onde eu estava a uns dias atrás, pensava que o espaço tinha gosto de solidão. Também, aquele beijo tinha gosto de nostalgia de um futuro que ainda não vivi, de filhos que ainda não tive e que ele seria o pai. Era gosto de brigas, discussões e sexo de reconciliação. Sentia que toda a natureza me abraçada e que Deus estava comigo naquele lugar. Enquanto o mundo desabava, eu me sentia em pé em meio a ruínas.
Foram poucos segundos que me marcaram para o resto da vida. Naquele momento eu tive a confirmação espiritual que era ele, e que era justamente para ele que o universo havia me preparado. Não sei o que se passava na cabeça dele naquele momento, Marinho nunca me falou, mas sabia que provavelmente um filme também se passava na cabeça dele. Ele me beijava igualmente apaixonado... Ao nosso redor, ninguém parecia se importar ou qualquer coisa, não ligávamos nem um pouco para nada nem ninguém. Eu me desfiz do beijo e coloquei minhas mãos em seu rosto:
_ Eu te amo, cara. Você razão, lá dentro tudo pode acontecer. Não sei o que virá daqui a umas horas, só sei que vou estar ao seu lado em todos os segundos daqui por diante encarando não somente isso, mas tudo o que vier depois. Agora vamos agir e resolver isso de uma vez por todas. – Ele não disse mais nada, beijou minhas mãos e me olhou terno.
***
Nos primeiros momentos, uma frágil paz se instalou em mim. Senti como se todo meu corpo estivesse relaxado, algo que não fazia muito sentido levando em consideração onde eu estava. Éramos iluminados somente pela luz das lanternas.
Estávamos em seis: eu, Marinho, o geólogo e três policiais com treinamento de resgate. Em breve, mais equipes estariam entrando no local, mas não poderíamos esperar. O geólogo, que estava com o mapa em mãos estava atrás, enquanto nós estávamos com nossas armas sacadas e andando com extrema cautela. Como se não bastasse a tensão do momento, o ambiente em si era desafiador: úmido, estreito em vários momentos e escorregadio. Percebi que as paredes da mina possuíam uma cor diferente das que visitamos até então, segundo o geólogo, o Álamo crescia com maior desempenho em regiões rica desse minério e como aquela mina era rica em vários deles, incluindo o Cobre Branco, as árvores fora dali pareciam centenárias.
Tudo era calmo demais. Eu conseguia ouvir a respiração dos outros, alguns pingos de água, as vezes o som de correntes de ar... Fora isso, um silêncio ensurdecedor. Não sei quando tempo fazia, mas com certeza estávamos a mais ou menos uma hora ali dentro e nada, tudo era somente uma passagem que parecia nos levar ao coração da montanha. Havia um trilho que nos guiava pelo caminho, mas que acabou encerrando próximo a um elevador desativado. Era bastante nítido que há tempos aquele lugar não era habitado, ou será que eu estava errado? Por um momento pensei que estávamos em uma trilha errada, uma pista falsa... Minha vontade de matar o Tomás triplicou e me questionei se a melhor opção não seria matá-lo. Depois do elevador consumido pela ferrugem com sua descida submersa encontramos uma pequena passagem entre algumas pedras. Fui o primeiro a entrar.
Minha primeira perna entrou buscando o chão, mas não encontrei de imediato. Decidi jogar minha lanterna lá dentro e tentar ver alguma coisa, percebi alguns objetos distantes naquela câmara. Um pressentimento ruim tomou conta de mim quando senti um cheiro inflamável vindo com uma brisa, fazendo todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Respirei fundo e busquei usar todo meu conhecimento em entrada furtiva e armadilhas para detectar alguma coisa dali, pois eu sabia que havia alguma coisa errada.
Fui tateando o espaço abaixo da entrada até sentir um quase invisível fio no nylon esticado, do qual fui acompanhando com as minhas mãos até um gatilho. Sabia exatamente do que se tratava, puder perceber a bomba armada com Napalm, que basicamente é a mistura de isopor com gasolina que cria queimaduras terríveis que queimam por horas seguidas, mesmo dentro da água. Era preciso ter muito cuidado. Consegui desarmar a bomba e colocar o recipiente em uma pedra de forma que não caísse, falando em seguida para os outros. Marinho tentava esconder o incômodo, mas no fundo sabia que ele estava extremamente preocupado comigo, passando o braço em minha cintura prestes a me arrancar dali. Depois de resolver por hora o perigo, todos estávamos dentro.
_ Essas roupas pertencem a uma das vítimas desaparecidas, elas estão aqui dentro. – Disse um dos policiais apontando para algumas roupas que estavam separadas em um canto.
_ Estamos perto, eles estão aqui ainda, posso sentir. Onde estamos exatamente agora? – Disse Marinho, se referindo ao geólogo agora.
_ É difícil dizer, o mapa está incompleto e muitas dessas câmaras da mina não gostam nesse mapa que tenho. Seguimos esse caminho principal... – Disse nos mostrando no mapa em suas mãos – Até essa região do elevador, que nos leva a outro nível, mas aparentemente está submerso. Acredito que há alguma forma de passar para o outro lado e continuar nesse nível, mas temos que procurar a câmara certa.
_ Essa deve ser a câmara certa, caso não fosse não teria uma bomba aqui. Além disso, quem armou a bomba não poderia ter saído daqui sem desarmá-la, então a pessoa que armou ela ainda está aqui, ou passou por alguma passagem secreta. – Conclui.
Na hora, pareceu que eu estava falando algo técnico, mas estava longe disso. Todos nós nos olhamos desconfiados por uma fração de segundo, se lentamente levantamos nossas armas, aquele espaço poderia estar ocupado por mais alguém além de nós. Lentamente, fomos apontando ao redor, analisando com mais calma o espaço. Era um lugar relativamente grande, sem passagem aparente para outro lugar. Como se fosse uma chave que vira algo de sentido, o alívio por detectarmos a bomba mudou imediatamente para uma tensão absurda. Alguém poderia estar nos espiando.
Fomos fazendo uma vistoria no lugar a passos curtos. Todo barulho poderia atrapalhar nossa investida, e, portanto, todos estávamos em silêncio absoluto. Colocamos o geólogo atras de nós, e aos poucos nos aproximamos do fundo daquele lugar, que possuía uma dobra que ficava completamente escura. Marinho tomou a frente e com sua arma e lanterna fui se aproximando. Aqueles poucos segundos pareciam uma eternidade, até que, de forma quase que instantânea, uma sombra voou em cima dele.
A única coisa que ouvi foi um urro e um tiro. Silêncio em seguida. Marinho caído no chão e um corpo ao lado dele. Corri desesperado para ver o que havia o atacado. O desespero tomou conta do meu corpo e tudo o que eu pensava era no seu bem-estar... E se ele estivesse morto? E se eu o perdesse? Obviamente eu estava pensando nas duas meninas desaparecidas, mas pensar em perdê-lo parecia o fim da linha para mim. Perder tudo o que não vivemos ainda. Todos esses pensamentos foram desfeitos quando ele abriu os olhos soltando um sonoro “porra, como eu tô velho!”.
Havia um ferimento sua bochecha que sangrava um pouco. Era somente um corte, mas que mesmo assim exigia cuidado. O corpo ao lado, já sem vida, vestia uma manta preta, com pequenos ossos costurados nela. Virei o cadáver, era uma pessoa da comunidade tradicional que vivia na região. Um dos policiais queria falar alguma coisa, mas acabou não dizendo nada. Os conflitos na região ainda ocorriam com intensidade, e isso obviamente afetava todos, e muitos do corpo da polícia estavam contra a comunidade pesqueira. Era um jovem que fazia algumas entregas de pescado na região, o geólogo quem o reconheceu. Examinei seu corpo, pele altamente desidratada e cabelos secos, bem como a pupila dilatada... Era o Cobre Branco, com toda certeza ele estava fazendo uso a dias a fio.
Ajudei Marinho a levantar, em seguida estancando o sangue e limpando o ferimento. Não falei nada, mas ele entendeu meu olhar. Era preciso ter cuidado, pois ainda estávamos sob risco de vida. Ali, definitivamente, não era um lugar seguro. Sabíamos que recentemente uma das vítimas estava ali ou as duas, e que estávamos chegando mais perto. Eu sabia que era questão de pouco tempo até descobrir o que de fato estava acontecendo, mas uma coisa era certa: era tudo sobre a exploração do Cobre Branco. Para mim, as vítimas eram drogadas e conduzidas pelas cavernas sem resistência, o que explicaria a falta de violência nos corpos.
O Cobre Branco causava um estado de alucinação e controle sobre quem usava, de forma que era comum que a pessoa cumprisse ordens assim. Outra coisa que caracterizava o uso era sua inibição de fome, sede, frio, calor, entre outras coisas, o que foi um dos motivos, inclusive, da epidemia de uso pelos trabalhadores da mina nos anos de 1980. Naquele momento, como se Deus estivesse tocando minha mente, algumas coisas ficaram claras, para além do claro envolvimento da família Castanho nisso tudo, já que agora tínhamos documentos que comprovam isso.
Primeiro, a comunidade pesqueira estava diretamente envolvida. Não sabia exatamente até que ponto, mas um dos seus membros estava agora morto no chão, ao lado de Marinho desconcertado. Segundo, todos os acontecimentos até então foram influenciados diretamente pelo consumo do Cobre Branco e pelo ritual de passagem, que naquele momento não sabíamos exatamente do que se tratava, já que os registros históricos da cidade não faziam aluzam a alguma prática que envolvessem sequestro e morte de dez jovens garotas. Terceiro, a política e mineiros provavelmente estava envolvida também, já que dificilmente algo daquela magnitude seria possível acontecer passando despercebido por todos. Por fim, e não menos importante, eu preciso resolver isso logo e tirar férias com o Marinho.
Mal pude terminar de pensar nisso e um barulho de pedra me faz tirar os olhos do meu amado para olhar dois dos policiais que estavam conosco movendo uma pedra de lugar, que estava posicionada estrategicamente para esconder uma passagem secreta. Fomos em frente, comigo falando ao rádio com Tom e uma equipe de cachorros farejadores que acabou de chegar no local e estaria ali em alguns minutos. Logo não teríamos mais comunicação dado a própria dinâmica de área de rádio da montanha, de forma que sabia que em breve seria somente os seis homens que ali estavam. Avançamos.
***
O corredor de pedras claras ficava cada vez mais estreito, de forma que era quase impossível passar em alguns momentos. Andamos, andamos e andamos, sem saber exatamente para onde estávamos indo. Não sei quando tempo exatamente, mas depois de bons minutos chegamos a uma bifurcação, o que gerou um incômodo imediato em mim. Qualquer ideia, nem que fosse mínima de nos separar me dava calafrios, e pensei que isso iria acontecer, quando Marinho tomou a inciativa e se adiantou em separar dois grupos: dois dos policiais e o geólogo para a esquerda, e eu, Marinho e o policial restante para a esquerda. O policial que nos acompanhou era muito jovem, apesar disso muito competente e habilidoso.
Seguimos nossos caminhos com a seguinte promessa: se houvesse outra bifurcação, não escolher um lado e irem todos juntos. Quer queira, quer não, fragmentar mais ainda os dois grupos poderia ser perigoso. Andamos por um corredor de pedras que era mais amplo, porém, estava ficando cada vez mais inundado. Quando avistamos uma possível saída a água já batia em nossas cinturas. Eu estava com frio, mas não sentia nada além de toda a adrenalina que aquele momento estava nos proporcionando.
Saímos por uma passagem bastante esteira, percebendo imediatamente a mudança de tonalidade das pedras. Agora elas pareciam bastante escurar, e o policial que estava conosco falou que era preciso ter cuidado porque isso poderia representar mais fragilidade no caminho dali por diante. Tomei um susto quando vi que ao nosso lado havia um grande abismo. Nessa parte do trajeto, uma cachoeira muito escura inundava o ambiente com seu som, que naquele momento parecia ficar cada vez mais alto. Algo dentro de mim, assim como há alguns minutos na câmara do ataque me fez temer.
Marinho estava na frente com sua arma e lanterna, olhando desconfiado aquela situação. “Tem alguma coisa errada aqui”, falou ele olhando para nós dois com um olhar desconfiado. O barulho de água ia aumentando. Nenhuma experiência é individual, eu sabia muito bem disso. Mesmo com a pouca comunicação, todos estávamos sentindo. O barulho da água estava ainda maior. Lembro que os indígenas nos mandavam “ouvir a voz da montanha” e era isso que os três homens estavam fazendo. Foi telepático.
De forma muito rápida o jovem policial nos olhou assustado, “precisamos sair daqui AGORA!” falou já movendo seu corpo para trás, disparando para o lado oposto de onde eu e Marinho estava. Percebi que as pedras vibravam e que o som da água, agora, mostrava toda a agressividade possível para aquele momento. Em poucos minutos o policial que nos acompanhava estava fora da nossa vista, mas a salvo, enquanto eu e Marinho disparamos para o fim daquele lugar. Meus pulmões doíam de tanto que corri e os dele provavelmente também. Eu acabei cortando meus braços, mas não senti dor. Somente corremos por nossas vidas.
A cachoeira, antes com um aspecto mais calmo, agora jorrava milhares de litros de água e pedras para todos os lados nos separando. Nada se ouvia ou se via, inclusive, nessa hora pensamos que o outro rapaz estava morto, mas naquele mesmo dia soubemos que ele conseguiu sair dali. Uma feliz surpresa.
Sentimos que logo mais aquele espaço estaria submerso ou desabado, então escalamos com muita dificuldade uma pedra e passamos para um nível superior com uma cena muito curiosa. Havia uma instalação elétrica na parede que perpassava por uma passagem de água, com um barco de remo em sua margem como se cuidadosamente estivesse lá nos esperando. Eu pensei “bom, então é isso, estamos perto do fim!”, já me dirigindo ao pequeno barco de madeira e pegando um dos remos, quando sinto uma mão firme puxando meu braço para um abraço. Não que eu não quisesse abraçá-lo, ele sabia que não era o caso, mas tudo o que eu não queria era passar mais nenhum segundo naquele lugar.
Marinho me abraçou. Senti meu corpo desesperado ao encontro do meu, ele estava com medo. Há poucos minutos poderíamos ter morrido, ou podemos morrer alguns minutos a frente... De toda forma, ele me apertou, chorando baixo. Eu sempre soube de toda a pressão que ele e os demais profissionais do caso estavam submetidos, mas aquilo era diferente. Era humano. Medo de não ver a filha outra vez, medo de fracassar com as vítimas, medo de me perder, medo de não ser feliz outra vez. Tantos medos que ficaram resguardados em poucas lágrimas, mas que cada uma pesava uma tonelada. Ele se afastou de mim as enxugando com vergonha, dizendo de forma desconcertada somente um “Eu te amo!”. Eu o puxei para outro abraço, beijando seu rosto e secando uma lágrima de seu rosto.
_ Falta pouco agora, eu preciso que você esteja em alerta máximo somente por mais alguns minutos. Em breve estaremos confortáveis tomando um café em frente a uma lareira depois de fazer amor. Eu não sei exatamente o que você tá sentindo, mas quero que você se concentre agora, tá bem!? Eu te amo muito mais, e tudo o que quero é sair daqui e casar com você. Eu não sei como as coisas vão acontecer, mas sei que estaremos juntos e felizes. Vamos acabar com isso agora! – Conclui beijando-o e indo até o barco. Ele sacou sua arma, verificou a mesma e remamos pelo caminho.
***
Era como estar em um trem fantasma. Não era possível ver o fundo do lugar, pois a água era escura, e tudo o que era possível de ser visto era iluminado pela luz da parede, que deixava tudo em um tom azulado. Eu e ele não falamos durante o trajeto, pois nossa concentração era máxima. Ele estava com a arma sacada, enquanto eu remava vendo suas costas. Ele não abaixou a arma por um segundo sequer.
A nossa surpresa foi imensa quando chegamos a uma câmara com uma pedra como altar e uma figura com um manto azul claro cobrindo seu corpo. Marinho pulou para fora do barco falando que qualquer movimento que essa pessoa realizasse, ele atiraria. Eu saquei minha arma e fui conferir o local, havia somente aquela pessoa. As duas meninas restantes estava bem, mas desacordadas naquele lugar.
Marinho se aproximou, e a pessoa revelou o rosto. Foi terrível saber que a mulher que alguns dias atrás nos recebeu estava por trás disso, pude ver o rosto furiosos de Marinho naquele momento. Ele estava com a arma apontada para a mulher prestes a atirar, enquanto ela não expressava nada se não um olhar frio e calculista. Ela começou a falar:
_ Você é filho dessa terra tanto quanto qualquer outro, mas há coisas aqui que você não entenderia. A terra dá, a terra leva. Nenhuma delas sentiu dor, fome, sede ou frio. Todas fizeram a passagem em paz. Na noite em que tudo aconteceu alguma coisa mudou nesse lugar, por noites eu sonhei com visões de outro mundo mostrando que algo precisava ser feito, que os deuses antigos estavam nos cobrando... – Falou a mulher enquanto eu me colocava em frente as meninas que estavam em transe e não pareciam perceber o que estava acontecendo, ela continuou. – Dez dos nossos foram levados, dez dos deles precisavam equilibrar a balança ou todos iríamos sofrer. Dez filhos que nunca viram o mundo, dez filhas que jamais veriam o mundo outras vez.
_ Eu não faço a menor ideia do que você tá falando, sua maluca do caralho, o que eu sei é que vou meter uma bala no meio da sua cabeça se você se mexer ou tentar alguma coisa contra nós. – Disse Marinho com a irá de mil homens.
_ Eu sou só uma mulher velha, não seja tolo! – Rebateu ela, sem ação aparente para fazer qualquer coisa. Marinho olha rapidamente para mim, confirmo de forma breve que “está tudo bem!”.
_ Que história é essa de “dez filhos que nunca viram o mundo”? – Perguntei tentando entender tudo o que estava acontecendo ali.
_ Nosso povo está morrendo. A água nunca esteja tão tóxica, a vida nova não vem. Mulheres perdem seus filhos por um castigo que parece ser da natureza, mas é do homem. A água do nosso rio já não é mais a mesma, e em breve não existiremos mais. É preciso dar aos deuses e tirar dos homens. – Falou ela olhando para as meninas.
_ Então há um envenenamento por Cobre Branco? Mas porque não denunciar? A justiça dos homens existe para resolver esse tipo de coisa, nada justifica esses sequestros. – Completei, onde a mulher fala em seguida.
_ Você se engana, o mundo colocará o olho em nós novamente, e dessa vez, os deuses iram revelar toda a verdade. – Disse isso puxando um punhal e cortando sua garganta, fazendo com que o sangue jorrasse para todos os lados. Marinho correu incrédulo para onde ela estava caída, tentando estancar seu sangramento, mas em vão. Ela somente agonizou até, então, não se mexer mais. Ele me olhou perdido, tentando encontrar respostas em mim, mas eu não as tinha. Eu realmente não sabia o que se passava exatamente, por mais que me esforçasse para isso.
Cada um de nós pegou uma das meninas nos braços e saímos por um caminho, agora com uma brisa diferente. Caminhamos muito, até chegarmos em uma câmara com uma estrutura esculpida em pedras. Não fazíamos a menor ideia de onde estávamos, mas até aquele momento não tivemos grandes problemas. Mesmo com ambos exaustos, avançamos por longas escadas de madeira até o que parecia ser o interior de uma construção.
Havia uma biblioteca muito antiga. Livros para todos os lados, alguns artefatos antigos que não sabíamos exatamente o que eram, fetos humanos em potes de vidro, entre outras coisas. Tudo era muito estranho, e tudo o que gostaria para aquele momento era uma saída. Continuamos a andar por entre aquele espaço, até chegarmos em uma porta de madeira muito grande, da qual tivemos uma dificuldade imensa em abri-la. Depois de passarmos por ela, para nossa surpresa estávamos na parte de dentro da prefeitura, com um prefeito incrédulo nos olhando. Ele parecia não entender nada do que estava acontecendo, e tudo o que falamos naquele momento foi para ele sair do local.
Em poucos minutos, diversas viaturas estavam ao nosso redor. Fomos até o hospital com as meninas, que foram internadas imediatamente. Antes disso, um grupo de policiais já começou a vasculhar o lugar de onde saímos para tentar entender o que, de fato, era aquilo. Marinho parecia satisfeito, talvez aliviado, mas não feliz. Eu sabia que ele teve uma perda. Era a dor da traição.
Fomos para a delegacia resolver alguns trâmites. Marinho parecia estranho, mas sabia que ele só estava processando tudo o que aconteceu. Algo naquilo tudo me chamou atenção: sua frieza com Tom. Ele somente disse o que aconteceu e o velho parecia entender que algo mudou. Percebi um abismo se formando entre eles, mas não me detive muito nisso. Aparentemente, tudo estava resolvido, mas era como se, ao mesmo tempo, não estivesse. Famílias chorando e berrando comemoravam em frente ao hospital, policiais gritavam eufóricos comemorando, mas Marinho parecia querer somente se afastar de tudo e todos. Respeitei seu espaço.
Depois de tudo isso, fomos ao restaurante. Já estava perto do final da tarde quando fizemos uma refeição decente, tinha pudim de café, mas ele acabou não querendo. Escolheu invés disso algumas cocadas junto ao nosso jantar para viagem. Ambos estávamos cansados, e tudo o que mais queríamos naquele momento era um banho e uma boa noite de sono. Tudo estava encaminhado: guarda fortificada no hospital, a prefeitura e sua passagem secreta sendo vasculhada, os policiais que estavam em missão seguros, as meninas desaparecidas foram encontradas... Tudo parecia bem, exceto pelo fato de que faltava prender toda a família Castanho e encerrar seu império de terror.
Já no carro, nos dirigindo para nossa casa, fomos em silêncio, sentindo sua mão em minha cocha. Eu intercalava entre ter seus dedos entrelaçados nos meus e o volante, tudo o que eu queria naquela hora era ser quem ele precisava. Ainda no carro ele recebeu uma ligação da filha e falou brevemente com ela, dizendo que a amava e que em breve iria visitar ela. Outro detalhe que me chamou atenção na ligação foi o fato de que em determinado momento ele fala, “tá aqui dirigindo, mando sim, obrigado, te ligo depois!”. Era óbvio que ele falava com a ex-mulher, e que agora eu sabia que ela sabia de nós. Não soube o que fazer com aquela informação e somente segui com meus pensamentos. Chegamos em caca com ele cochilando em meu ombro.
***
Acendi a lareira e coloquei na estação de rádio de costume. Entre já sem roupa no banheiro o vendo água quente caindo do seu corpo, ele fazia esforço para relaxar. Me aproximei devagar, de forma que ele somente percebeu minha presença quando o toquei. Abracei seu corpo por trás beijando devagar sua nuca, massageando seu peitoral e barriga com suavidade. Queria que ele descansasse por algumas horas sem ser interrompidos pelos pensamentos que ele estava tendo, que pareciam ruins.
_ Engraçado que quando tu faz isso a minha mente vira um quadro em branco. – Falou terno.
_ Tu tá bem, Marinho? – Pergunto de forma carinhosa.
_ Tô sim, só quero dormir. Dorme comigo, por favor. – Me perguntou de forma confusa e triste, como se eu fosse de alguma forma me retirar daquele lugar... Era onde eu exatamente gostaria de estar.
Eu dei seu banho como um ato de amor. Sentir seus pelos e deu corpo entre os meus dedos era algo engraçado, pois havia toda uma percepção do imenso tesão que eu sentia por ele, mas acima de tudo um sentimento que transcendia a matéria. Era como se, para além dos nossos corpos nus, nossa energia se conectasse, só existindo naquele breve intervalo de tempo ele e ele no mundo. Eu estava igualmente cansado, triste, estressado, feliz, surpreso, com medo..., mas havia o efeito “ele” em mim, e tudo isso não havia. Era ele e eu. Somente. Fim.
Sequei seus cabelos enquanto ele estava apoiado no meu corpo. Quase cochilando, mas ainda elétrico para dormir. Ao invés disso nos deitamos no sofá. Felizmente a casa estava sem marcas de sangue e sem cadáveres, e toda aquela estética de cena de filme de terror vivida antes já não se enquadrava. Tudo era aconchego. Comemos mais um pouco e nos deitamos ainda pelados em frente a lareira. Aos poucos o clima foi acontecendo.
Eu o penetrei ali, vendo seu rosto iluminado pelas chamas que nos esquentava. Não foi sexo, foi amor. Ele não deu para mim, mas se entregou. Eu sabia o que era. Nunca havia sentido o que eu senti naquela noite, eu tinha meu mundo em uma pessoa e isso era maravilhoso, mas me assustava muito também. Eu gozei dentro dele com nossos dedos entrelaçados, vendo que ele gozou em seguida sem ao menos se tocar. Acabei repousando meu rosto em seu peito, enquanto ele afagava meus cabelos.
Sequer nos lavamos. Eu somente o virei com cuidado de lado e o abracei, encaixando meu pau ainda duro dentro dele e adormecendo e repousando sentindo seu cheiro. Nessas horas chovia forte lá fora, mas o mundo parecia não existir para mim e ele naquele momento: nada além de nós existia. Ele estava quase dormindo, eu sentia todo seu corpo colado ao meu como se fossemos somente um. Nossas mãos juntas, seus pés dando um nó nos meus, suas coxas coladas nas minhas, o cheiro que emanava de seu cabelo... Todos os detalhes naquele encontro de corpos e almas me fez entender que aquele era o lugar que eu gostaria de passar o resto da minha vida.
Eu sabia o que fazer. Não hesitei, não pensei em mias nada: “Marinho, eu te amo! Quer casar comigo?” Eu disso quase adormecendo. Meu membro saiu de dentro dele quando ele se virou para mim, me beijou muito apaixonado e aninhou-se em meu peito, me abraçando feliz, dizendo somente um cansado “Eu aceito!”. Era tudo o que eu precisava ouvir. Adormecemos em seguida.