Acordei com a luz do sol atravessando as frestas da cortina, aquecendo meu rosto de forma preguiçosa. O aroma familiar de café recém-passado e pão de queijo assado invadia o quarto, despertando meus sentidos aos poucos. Era impressionante como Gustavo tinha aprendido a cozinhar tão bem apenas assistindo vídeos no TikTok e no YouTube.
Me virei na cama, tateando o criado-mudo em busca do celular. Quando a tela acendeu, uma mensagem dele piscava na notificação. Droga. Já eram dez da manhã. Suspirei frustrado. Eu queria ter acordado mais cedo, queria ter visto ele sair para seu primeiro dia de curso. Depois de tanta insistência, ele finalmente tinha se matriculado em um curso de culinária. Era um passo enorme para ele, uma conquista. E vê-lo retomando a própria vida me dava um alívio indescritível.
Passei as mãos pelo rosto, tentando afastar o peso do sono, e me levantei lentamente. O chão frio sob meus pés me despertou um pouco mais enquanto eu seguia para o banheiro, lavando o rosto com pressa.
Ao chegar à cozinha, fui recebido por uma cena que aqueceu meu coração. Sobre a mesa, um café da manhã impecável, preparado com o carinho que só Gustavo tinha. Tudo estava ali: café quente, pão de queijo dourado, suco fresco. Senti um aperto no peito. Ele tinha pensado em mim antes de sair. Ele sempre pensava.
Foi então que meus olhos pousaram sobre um objeto que não deveria estar ali. Meu caderno. Ele estava bem no centro da mesa, ao lado de uma xícara de café já fria. Meu coração acelerou. Isso significava que ele tinha terminado. Finalmente, eu poderia entender sua história através dos olhos dele.
Engoli em seco e me aproximei, passando os dedos pela capa gasta. Por mais que eu quisesse ler, parte de mim temia o que encontraria ali. O que quer que estivesse escrito, seriam palavras que vinham diretamente da alma dele. Palavras que, talvez, eu não estivesse preparado para enfrentar.
O silêncio na cozinha era opressor. Passei os dedos trêmulos sobre a capa do caderno, sentindo o couro desgastado sob a ponta dos dedos. Eu não sabia se estava pronto para ler, mas algo dentro de mim me obrigava a abrir aquele livro de memórias que Gustavo havia deixado. Respirei fundo, sentei-me e virei a primeira página.
Conforme os minutos passavam e os parágrafos se desenrolavam diante dos meus olhos, a angústia foi crescendo no meu peito como um nó sufocante. A cada linha que lia, sentia meu estômago se revirar. O horror das palavras de Gustavo se enraizava em mim como garras afiadas. Abuso. Violência. Dor. Dentro da própria família. O lugar onde ele deveria ser protegido, amado, onde deveria ter sido apenas uma criança. Mas não. Ele sofreu, e eu não estava lá para impedir.
Meu coração começou a martelar contra as costelas. Minhas mãos apertaram as laterais do caderno com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Meus olhos ardiam, mas não eram lágrimas de tristeza. Eram de fúria. De ódio. De desejo de vingança.
Empurrei a cadeira para trás bruscamente, levantando-me de um salto. Meu corpo estava quente, fervendo em raiva. A adrenalina pulsava como fogo em minhas veias. Cada lembrança que lia se transformava em um golpe que eu queria desferir. Eu precisava fazer algo. Precisava acabar com aquilo. Gustavo carregava aquelas cicatrizes há anos. E eu não suportava a ideia de que aquele monstro ainda estava livre.
Vesti-me apressadamente, os movimentos bruscos e descontrolados. Peguei as chaves do carro com um puxão e saí batendo a porta. O mundo ao redor parecia um borrão enquanto eu dirigia. O motor roncava alto, mas o barulho não chegava a abafar os pensamentos que gritavam em minha mente. Cada cena que lia se repetia em minha cabeça como um filme de terror sem fim. O rosto pálido de Gustavo. Os olhos dele quando se lembrava do passado. O jeito que sua voz tremia quando falava sobre coisas que não conseguia dizer em voz alta.
O velocímetro marcava acima do permitido, mas eu não me importava. Meu sangue fervia. Minhas mãos apertavam o volante até que meus dedos começassem a doer. Meu maxilar estava travado. Eu não sabia se conseguiria falar quando chegasse lá, mas não precisava de palavras. Apenas minhas mãos. Apenas minha raiva.
Ao chegar em frente à casa da vovó, freei bruscamente, jogando o carro para o lado. Saí batendo a porta, atravessei o pequeno portão sem me dar ao trabalho de bater. Meu coração martelava contra o peito, minhas mãos estavam cerradas em punhos tão firmes que minhas unhas cravavam na palma. Eu queria que doesse. Eu queria sentir a dor antes de entregá-la a quem realmente merecia.
A porta se abriu. E ali estava ele.
Meu tio.
O homem que destruiu Gustavo. O homem que transformou sua infância em um pesadelo. O homem que eu odiaria para sempre.
Sem pensar, sem hesitar, sem ouvir qualquer palavra que pudesse ser dita, avancei. Meu punho encontrou o rosto do homem com toda a força que carregava. O som do impacto ecoou pela casa. O homem cambaleou para trás, surpreso, mas eu não dei tempo para que ele reagisse. Minha visão estava turva de ódio. Minha respiração era um turbilhão descontrolado.
Golpeei de novo. E de novo. E de novo. Cada soco era uma palavra que Gustavo não conseguiu dizer. Cada golpe era uma memória que Gustavo tentou esquecer. Eu não parava. Eu não conseguia parar. Meu corpo se movia sozinho, movido pelo ódio, pela impotência que senti ao ler tudo que o meu amor havia sofrido.
Ele tentou se defender, tentou se afastar, mas eu o joguei contra a parede, acertando-o no estômago, no rosto, em qualquer parte do corpo que minhas mãos encontrassem. O homem começou a gemer, a tentar falar, mas eu não queria ouvir. Eu não queria desculpas, não queria justificativas. Eu só queria que aquele monstro sentisse pelo menos um décimo do sofrimento que causou.
O sangue começou a se misturar ao suor. O corpo do homem já não reagia como antes. Mas eu ainda não parava. Eu não podia parar. O ódio dentro de mim era maior que qualquer coisa. Meu corpo inteiro tremia, minha respiração vinha em arfadas descontroladas.
Até que uma voz me chamou.
Uma voz que, mesmo abafada pelo som da fúria em meus ouvidos, eu reconheci.
E então, congelei.
A voz ecoou no ambiente carregado de tensão.
— Léo?!
Meu corpo travou no mesmo instante.
Minha respiração estava descompassada, meu coração martelava no peito. Meus punhos doíam, latejavam, mas eu não sentia nada além da raiva queimando dentro de mim. O sangue escorria pelos meus dedos—meu sangue, o sangue dele. Minha visão estava embaçada, mas eu enxergava o suficiente para ver aquele desgraçado caído no chão, gemendo, sem forças pra sequer se mexer.
Foi quando ouvi os passos correndo pela escada.
Minha mãe surgiu primeiro, os olhos arregalados de pavor. Atrás dela, Eduardo, meu irmão. Ele parecia confuso, mas minha mãe… Minha mãe parecia aterrorizada.
— Meu Deus… — Ela levou as mãos à boca, olhando para o tio caído, mal conseguindo respirar. O rosto dele estava inchado, um olho fechado, o nariz quebrado, o corpo tentando se arrastar para longe, mas as pernas tremiam demais.
— O que você fez?! — Ela gritou, a voz embargada. — Léo, pelo amor de Deus!
Minha mãe. Meu irmão. Minha família.
A família que nunca fez nada.
Apertei os punhos, sentindo o sangue seco entre meus dedos. Respirei fundo e levantei a cabeça, olhando direto para o homem caído no chão. Minha voz saiu baixa, arrastada, carregada de um ódio que eu nem sabia que podia sentir.
— Ele destruiu a vida do Gustavo.
Minha mãe piscou, confusa. Eduardo franziu o cenho.
— O quê? — ela balbuciou.
Dei um passo à frente, apontando para aquele desgraçado.
— Pergunta pra ele. Pergunta o que ele fez quando o Gustavo era criança.
O silêncio caiu como uma pedra.
Minha mãe olhou para o irmão no chão, depois para mim. Sua boca se abriu, mas nenhuma palavra saiu.
— Léo… do que você tá falando?
Eu não respondi. Não precisava. Apenas virei as costas e comecei a andar.
Eu precisava sair dali.
Mas Eduardo correu atrás de mim, segurando meu braço com força.
— Espera aí! Você não pode simplesmente… — Ele começou, mas eu me soltei dele com um puxão brusco.
— Me solta.
— Não! Você tá completamente fora de si! O que aconteceu com você?!
Eu virei de uma vez, sentindo meu peito explodir.
— O que aconteceu comigo?! — soltei um riso seco, sem humor. — O que aconteceu foi que eu finalmente percebi o tipo de família de merda que a gente tem!
Eduardo deu um passo para trás, surpreso.
— Que merda é essa, Léo?
— Quer saber o que é?! — cuspi as palavras, avançando pra cima dele. — A gente sempre se dividiu em família, né? Sempre teve o nosso lado e o lado deles. Mas na hora que o Gustavo precisou, ninguém fez nada! Quando eu precisei, ninguém fez nada!
Ele franziu o cenho.
— Do que você tá falando?
— Você sabe que o Gustavo foi abusado?!
Eduardo empalideceu.
Minha mãe arfou atrás de nós.
— Léo, isso não pode ser verdade…
— NÃO PODE?! — ri de novo, sem acreditar. — Claro que não pode! Porque é mais fácil fingir que não aconteceu, né?! É mais fácil fechar os olhos do que encarar a merda que essa família realmente é!
Eduardo balançou a cabeça, parecendo perdido.
— Eu não sabia…
— NÃO SABIA PORRA NENHUMA! — gritei, sentindo minha garganta queimar. — Você nunca quis saber! Você tava ocupado demais sendo o filho perfeito, fingindo que nossa família era um comercial de margarina! Você nunca percebeu nada porque nunca quis olhar!
Ele abriu a boca pra responder, mas eu não deixei.
— Você era meu irmão! Você deveria ter me protegido! Deveria ter protegido o Gustavo! Mas sabe o que você fez?! NADA! O mesmo que todo mundo nessa família! Você olhou para o outro lado! E sabe o que dói mais?! — minha voz falhou, mas eu continuei. — É que você sempre foi meu melhor amigo. E mesmo assim, me deixou sozinho nisso.
Eduardo piscou, os olhos brilhando, mas eu não me importava mais.
— Léo…
— Não. — ergui a mão, cortando qualquer coisa que ele fosse dizer. Minha respiração estava pesada, meus olhos ardendo. — Eu não quero ouvir mais nada. Eu tô cansado. Cansado de vocês. Cansado dessa família.
E então, sem olhar para trás, eu saí.
Entrei no carro, liguei o motor e acelerei, sem destino, sem arrependimentos. Só com a certeza de que, dessa vez, eu finalmente tinha dito tudo.
A cidade passava borrada pela janela do carro enquanto eu dirigia em silêncio, os dedos ainda sujos de sangue seco e a respiração pesada, tentando se ajustar ao que havia acabado de acontecer. Meu peito subia e descia, e o gosto amargo da raiva ainda não saía da minha boca. Tudo que eu queria agora era chegar em casa, contar tudo para o Gustavo. Ele precisava saber que aquele desgraçado finalmente pagou, nem que fosse um pouco, por tudo o que fez. Mas como eu ia dizer? Como eu poderia colocar em palavras todo o ódio e a revolta que me consumiam?
Ao chegar no prédio, estacionei na garagem e desliguei o motor, mas fiquei ali por alguns segundos, sentindo o silêncio esmagador do carro ao meu redor. Minha cabeça latejava, e a exaustão começou a pesar nos meus ombros. Eu estava acabado. Forcei-me a sair e segui para o elevador, apertando o botão do sétimo andar antes de encostar as costas na parede metálica. Fechei os olhos por um momento, tentando organizar meus pensamentos, mas tudo era um turbilhão. Eu precisava pensar no que dizer, precisava encontrar uma forma de contar tudo ao Gustavo sem parecer tão destruído como me sentia.
O elevador parou no térreo, e um homem entrou. Ele parecia ter uns vinte e poucos anos, era moreno, alto, de óculos, com um ar tímido e deslocado. Era bonito, bonito demais até, mas de um jeito quase angelical, que não combinava em nada com o caos que eu estava carregando. Ele olhou para os botões, hesitou por um instante e não apertou nada. Só então me dei conta: ele também estava indo para o sétimo andar.
O silêncio entre nós era pesado, e eu só queria que a viagem terminasse logo, mas ele resolveu quebrar o gelo.
— Eu sou o vizinho novo do sétimo andar. 702.
Levantei o olhar para ele, sem muito interesse.
— Ok. — Minha voz saiu seca, sem paciência para conversas triviais.
Ele me olhou de relance e, por um segundo, percebi que ele estava analisando meu estado. Eu devia estar um lixo, com o rosto machucado e a camisa manchada de sangue.
— Eu sou médico. — Ele disse, a voz calma, quase cuidadosa. — Se você precisar de alguma ajuda, tô vendo que você tá machucado.
Minha mandíbula enrijeceu, e a irritação cresceu dentro de mim. Eu não precisava da piedade de ninguém, muito menos de um estranho.
— A última coisa que eu preciso agora é de ajuda de alguém. — Minhas palavras saíram duras, carregadas de um peso que eu nem tentei esconder. — Eu só quero ficar sozinho.
Ele desviou o olhar, parecendo desconfortável.
— Desculpa.
O resto do caminho foi feito em silêncio, e eu agradeci por isso. Quando o elevador abriu, saímos ao mesmo tempo e foi só então que percebi que ele morava exatamente em frente ao meu apartamento. O número 702 ficava logo de frente para o 701. Ótimo. Como se eu já não tivesse problemas o suficiente, agora tinha um vizinho curioso e solícito.
Ele me olhou mais uma vez, como se quisesse dizer algo, mas desistiu. Apenas pegou as chaves do bolso e entrou no apartamento dele. Fiz o mesmo, trancando a porta atrás de mim antes de soltar um longo suspiro. A casa estava escura e silenciosa, e a primeira coisa que fiz foi ir direto para o banheiro.
Tirei a camisa suja e liguei o chuveiro, sentindo a água quente escorrer pelo meu corpo, levando consigo parte da sujeira e do sangue. Mas a culpa, a raiva e o peso do que aconteceu continuavam lá, impregnados na minha pele. Minha mente não parava. O rosto do Gustavo, os gritos da minha mãe, o olhar chocado do Eduardo, o sangue nos meus punhos… tudo girava na minha cabeça como um filme acelerado e distorcido. Passei as mãos pelo rosto molhado e respirei fundo.
Quando saí do banho, vesti uma roupa limpa e me joguei no sofá. A sala estava escura, iluminada apenas pela luz fraca da cidade entrando pela janela. Fiquei ali, encarando a parede, esperando o tempo passar. Esperando o Gustavo chegar. Esperando para contar tudo.
Xxxxx-xxxxx
Começo pedindo desculpas pela demora, fiquei doente o carnaval todo, não conseguia sair da cama. Ainda estou mal, mas ja consigo escrever e não deixar vocês na mão. Me perdoem.
Curtam o conto que batendo nossa meta eu posto outro hoje a noite 🥰