O silêncio do apartamento se arrastava, como se o tempo ali fosse lento, esperando que eu tomasse a próxima decisão. Olhei para a mala fechada, sentindo o peso das escolhas que estavam por vir. Uma parte de mim queria ignorar o que estava dentro dela, esquecer o que planejava fazer, mas a outra parte de mim — a parte que sentia que finalmente tinha uma chance de controlar seu destino — me dizia para não olhar para trás.
A mala estava agora no meu controle, as decisões estavam em minhas mãos. O que aconteceria amanhã seria a minha única chance de finalmente escapar daquilo tudo. Uma fuga, sim, mas uma fuga para algo que eu nem sabia ao certo o que era. O que eu sabia é que o que quer que fosse, seria melhor do que continuar naquele pesadelo. Melhor do que continuar sendo o prisioneiro das minhas próprias memórias e do que o Mark me fizera.
Me sentei na cama, o peso de tudo aquilo me esmagando, mas uma sensação estranha de alívio começando a tomar conta de mim. Eu estava indo para algo novo, para o desconhecido, e a ideia disso me dava uma espécie de liberdade. Uma liberdade que eu não sentia há tanto tempo que até me surpreendia.
Eu olhei para o espelho, e a imagem do meu novo eu me encarava de volta. Era como se fosse alguém completamente diferente. Era eu, mas não era. Uma camada de proteção que eu estava colocando sobre mim, talvez. Para que eu não me perdesse no caos da minha própria mente, para que o Iago que eu fui e o que me causou tanto sofrimento ficassem para trás.
Amanhã eu me encontraria com essa pessoa que ninguém sabia quem era. Essa pessoa que estaria esperando por mim em algum lugar, pronta para me guiar para o que fosse o meu futuro. E eu faria o que fosse necessário para seguir em frente. O peso do passado não era mais meu para carregar.
O relógio na parede marcou uma hora mais tarde. Eu estava deitado, a mala ao lado da cama, e o sono não vinha. Meu corpo estava exausto, mas minha mente estava em completo alerta, fervilhando com o que aconteceria no dia seguinte. Não conseguia parar de pensar em tudo o que passei. Não só o Mark, mas as escolhas que fiz, as pessoas que feri — as pessoas que ainda me procuravam, esperando por algo.
Eu estava tentando me convencer de que não seria tarde demais. Mas algo dentro de mim ainda se perguntava se eu realmente sabia o que estava fazendo. Ou se era apenas mais uma tentativa desesperada de fugir de algo que, no fundo, talvez não fosse totalmente culpa minha.
O celular vibrou de repente, quebrando o silêncio pesado do quarto. Olhei a tela: era uma mensagem, mas não era de quem eu esperava. Uma notificação inesperada. O nome "Yuri" apareceu. Eu nunca disse a ele sobre tudo isso. Nunca mencionei nada sobre o meu encontro com o Mark, ou mesmo o que realmente estava acontecendo. Era uma mensagem simples, mas carregada de algo que eu não sabia exatamente o que era.
— Como você está?
Eu hesitei. Não sabia o que responder. Como eu estava? Como eu poderia explicar para Yuri? Ele nunca saberia o que eu estava fazendo. Ele não sabia da verdade, e eu não tinha coragem de contar.
— Eu estou... indo embora.
Foi tudo o que consegui digitar. Eu não sabia como mais me comunicar. A minha própria vida estava se dividindo em pedaços, e eu estava apenas tentando manter tudo junto, como um castelo de cartas prestes a desabar.
Yuri não respondeu imediatamente, mas o som de uma nova mensagem fez meu coração bater mais forte.
— Onde você vai?
Respirei fundo. Esse era o ponto de no retorno. Eu estava sendo puxado de volta para algo que eu tentava evitar, mas no fundo, eu sabia que não poderia mais fugir de mim mesmo.
— Para longe de tudo isso.
A tela ficou em branco por alguns segundos, e então a resposta chegou.
— Eu não entendo o que você quer dizer. Fique em contato. Eu me importo com você.
As palavras foram como uma faca afiada. Eu não sabia o que sentir. Ele se importava, sim, mas o que eu estava prestes a fazer não era algo que alguém como ele compreenderia. Eu não queria mais ser esse Iago. Eu precisava deixar tudo para trás, não apenas os erros, mas as pessoas que eu machuquei ao longo do caminho.
Levantei da cama, fui até a janela e olhei para as ruas abaixo. A cidade parecia dormir enquanto eu estava prestes a tomar uma das decisões mais difíceis da minha vida.
Voltei para a mala, olhei para o celular e depois para o dinheiro. Isso era tudo o que eu tinha agora. Tudo o que restava de mim.
Amanhã, as coisas seriam diferentes. Eu não sabia o que me aguardava, mas sabia que o que eu estava deixando para trás era o fim de algo e o começo de outra coisa. A única coisa que eu sabia é que eu precisava fazer isso. Eu não poderia continuar vivendo no medo do que poderia acontecer se eu não tomasse essa decisão.
Fechei os olhos e me preparei para a noite que viria. Amanhã, o que fosse acontecer, aconteceria. E eu estaria pronto para lidar com isso.
Nos meses anteriores, quando eu ainda estava no barco com o Marcos, as coisas estavam pesadas. As noites longas e abafadas me sufocavam, e, mesmo entre os olhos frios de Marcos, havia uma sensação de opressão que não me deixava em paz. A cada movimento que ele fazia, a cada palavra que saía da sua boca, eu sentia que o chão estava mais distante. O ar pesado no iate, o cheiro de mar e de álcool, a rotina cruel e insustentável. Tudo parecia estar sempre à beira do colapso. O passado me perseguiu por muito tempo, mas a situação com Marcos havia sido o golpe final. Não podia mais aguentar. Eu precisava de uma saída.
E foi nesse momento, no auge do meu desespero, que recebi aquela mensagem. O celular estava escondido, o que Marcos nunca soubera, e eu o usava poucas vezes, com medo de ser descoberto. Eu sabia que, se ele soubesse que eu ainda tinha algum meio de contato fora daquele inferno, não hesitaria em destruir tudo.
Naquela noite, sentado no sofá do iate, o telefone vibrou com uma notificação silenciosa. Quando vi a tela iluminada, o nome desconhecido me fez estremecer. Nunca havia visto aquele número antes. A mensagem que estava ali era curta, mas carregada de uma promessa que fazia o meu estômago gelar e ao mesmo tempo despertar algo sombrio dentro de mim.
"Quer acabar com tudo isso?"
A pergunta parecia simples, mas era um convite tentador. Algo dentro de mim, uma voz que eu tentava suprimir, queria saber mais, queria entender o que estava por trás daquela mensagem. Por um instante, eu hesitei. Marcos estava dormindo na cabine, e eu sabia que qualquer movimento meu poderia ser observado. Mas eu precisava saber, precisava entender. Se alguém me oferecia uma chance de sair daquele pesadelo, eu não podia recusar.
"Quem é você?" Eu respondi rapidamente, ainda com o dedo tremendo na tela.
A resposta veio quase instantaneamente.
"Não importa quem sou. O que importa é o que você quer fazer. A polícia não está do seu lado, você sabe disso. Eles não vão te ajudar. Eu posso te ajudar a resolver tudo isso, e, no final, você vai sair com o bolso cheio e a cabeça limpa."
Aquela mensagem foi um choque. A ideia de que alguém sabia o que eu estava vivendo, que alguém estava vendo tudo e me oferecendo uma saída... Não era uma chance qualquer. Era a única chance que eu tinha de escapar do controle de Marcos. Eu podia sentir a raiva crescendo dentro de mim, a sensação de ser manipulado, de estar preso em uma vida que não escolhi, de estar sob o domínio de alguém que não tinha nenhum respeito por mim.
"O que você quer de mim?" Eu perguntei, já sentindo o peso de minhas palavras, sabendo que estava fazendo uma escolha irreversível.
"Eu tenho todas as informações que você precisa. Eu sei onde Marc guarda o dinheiro. Sei onde ele tem as contas no exterior. Sei de tudo o que ele está fazendo. Você tem a faca e o queijo na mão. Só precisa tomar a decisão certa."
Naquele momento, algo dentro de mim mudou. O medo e a repulsa pela ideia de continuar sob o controle de Marcos foram substituídos por uma sensação fria de clareza. Se eu seguisse esse caminho, não teria mais volta. Mas eu sabia que, de alguma forma, aquilo era tudo o que eu tinha.
"Como eu sei que posso confiar em você?" Eu ainda precisava de mais garantias, precisava sentir que estava tomando a decisão certa. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de ter a chave para escapar da prisão que era minha vida com Marcos me atraiu, quase como uma força magnética.
A resposta foi simples, direta, e me fez entender que não havia mais espaço para dúvidas.
"Você não pode confiar em ninguém mais. Só em mim. O resto é um jogo. O que você decidir agora vai mudar tudo. Você sabe disso."
A mensagem ficou gravada na minha mente, e, a partir daquele momento, eu comecei a me envolver nesse jogo sujo. Com cada palavra trocada, o plano foi tomando forma. O que antes parecia impossível agora parecia uma necessidade. A ideia de se infiltrar mais e mais na vida de Marcos, de desmantelar tudo o que ele havia construído, me excitava e me assustava ao mesmo tempo. Mas a promessa de liberdade, de uma vida onde eu não fosse mais uma peça no jogo de alguém, onde eu pudesse finalmente ter controle sobre minha vida... era tentadora demais.
Passávamos horas trocando mensagens, cada uma mais detalhada do que a anterior. A pessoa do outro lado me guiava, me instruía sobre como conseguir informações, como invadir as contas de Marcos, como pegar tudo o que ele possuía. Eu aprendi sobre os esconderijos, os pontos fracos, tudo o que ele achava que estava seguro, mas que, na verdade, era uma armadilha. E, ao mesmo tempo, eu também me via me distanciando da pessoa que eu costumava ser, me tornando algo que eu nem reconhecia mais.
Cada passo que eu dava, cada informação que eu conseguia, me aproximava mais da minha liberdade. Mas, ao mesmo tempo, me afastava de mim mesmo. Eu estava me perdendo na escuridão desse plano, sem saber onde ele me levaria. O que aconteceria quando eu finalmente tivesse tudo o que Marcos guardava? E quando tudo isso viesse à tona?
Mas, no fundo, eu sabia. Eu não podia voltar atrás. Eu estava já muito dentro disso, já muito longe de tudo o que era familiar. O único caminho era seguir em frente, sem olhar para trás, sem pensar nas consequências.
E assim, os planos foram tomando forma. O futuro parecia se estender à minha frente, cheio de possibilidades, mas também repleto de riscos. Cada decisão me levava mais fundo nesse jogo perigoso, mas eu já não me importava. Eu estava em busca de uma vida que não dependia mais de ninguém, uma vida onde eu pudesse controlar minha própria narrativa.
E, assim, a história de minha queda e ascensão começou.
A manhã chegou arrastada, como se o tempo estivesse tentando me dar uma última chance de desistir. Mas não havia mais volta. Não agora. Não depois de tudo que aconteceu. Permaneci deitado por alguns minutos, olhando para o teto, sentindo aquele peso familiar no peito, aquela dúvida irritante tentando me puxar de volta. Mas eu já estava muito além disso. Minha vida tinha se resumido a perdas, a uma dor que me acompanhava como uma sombra constante. Perdi minha mãe. Perdi minha paz. Perdi a ilusão de que algum dia as coisas ficariam bem. Não sobrava nada. Nada além de mim. E se eu não lutasse por mim agora, então ninguém faria isso.
Levantei com esforço, sentindo meu corpo mais pesado do que deveria. Cada passo era uma confirmação de que eu estava indo até o fim dessa decisão. A mala já estava pronta, o dinheiro guardado, o plano traçado. Tudo o que me restava era seguir em frente. Me arrastei até o banheiro e encarei meu reflexo no espelho. Eu parecia um fantasma, as olheiras fundas denunciando noites sem descanso, mas meus olhos tinham algo diferente. Uma faísca. Uma convicção que eu não via há muito tempo. Respirei fundo e sussurrei para mim mesmo que agora não havia mais para onde correr. Ou eu fazia isso ou passaria o resto da vida nessa miséria sufocante. Me vesti sem pressa, sentindo o tempo escorrer pelos meus dedos. Cada peça de roupa era como um lembrete de que eu estava prestes a cruzar uma linha da qual não poderia mais voltar. A cada minuto, o peso da decisão aumentava, e eu tentava ignorar a angústia crescente.
Olhei para o relógio. Dez e quinze. O tempo parecia correr e, ao mesmo tempo, se arrastar. Meu coração batia forte, como se meu corpo inteiro estivesse tentando me alertar de algo que eu já sabia: não haveria mais retorno. Dez e vinte. Minha mente se perdeu nos acontecimentos que me trouxeram até aqui. Cada momento, cada dor, cada decepção. Lembrei do que eu sofri, do que eu precisei suportar. Dez e meia. Peguei a bolsa de dinheiro. O peso dela não era só físico, era a soma de tudo o que ela representava. Um passado de sacrifícios, de humilhações, de desesperos silenciosos. Dez e trinta e cinco. Pedi um Uber.
A espera foi insuportável. Cada segundo parado naquele apartamento era uma tortura, como se as paredes estivessem se fechando ao meu redor. Assim que o carro chegou, entrei sem olhar para o motorista.
–Bom dia! Pra onde vai? – ele perguntou, com um tom casual que parecia completamente deslocado da minha realidade.
–Aeroporto Santos Dumont – murmurei, minha voz saindo quase sem vida.
O carro seguiu pelas ruas do Rio, enquanto o motorista tentava puxar assunto, mas eu não tinha disposição para conversas. O sol brilhava, as pessoas andavam apressadas, a cidade continuava viva, alheia ao que estava acontecendo comigo. Era como se nada importasse, como se eu fosse apenas um observador, um fantasma passando despercebido. Minhas mãos estavam apertadas sobre a bolsa, e meu coração martelava no peito. O motorista, percebendo meu silêncio, desistiu da conversa e ligou o rádio. O som baixo misturava-se ao ruído da cidade, mas eu não ouvia nada. Minha mente estava nublada. Meu destino estava traçado. Aeroporto. Onze horas. Eu estava chegando. E não havia mais volta.
O aeroporto estava lotado, mas eu não via ninguém. Tudo ao meu redor parecia um borrão enquanto eu caminhava sem pressa, a bolsa presa com força na minha mão. Meu coração martelava dentro do peito, e cada passo que eu dava parecia mais pesado do que o anterior. O cheiro de café e perfume caro se misturava ao ar condicionado frio, criando uma atmosfera quase irreal. Eu mal tinha colocado os pés ali quando meu celular vibrou no bolso. Meu estômago se revirou ao ver a notificação. Era uma mensagem.
"Você já chegou?"
Engoli em seco e respondi apenas um "Sim". Minhas mãos estavam suadas, os dedos trêmulos enquanto eu tentava manter o celular firme. Alguns segundos depois, a resposta veio.
"Vá até o Starbucks mais próximo. Tem alguém lá te esperando."
Minhas pernas pareciam agir por conta própria enquanto eu seguia pelo saguão, desviando de passageiros apressados, funcionários do aeroporto e turistas despreocupados. Cada passo me aproximava de algo que eu ainda não compreendia totalmente, algo que eu não podia mais evitar. Meu olhar percorreu os arredores até encontrar a cafeteria. Meu peito subiu e desceu em um suspiro longo antes de seguir em frente.
Ele estava lá. Um homem de terno escuro, sentado à mesa no canto, tomando café como se aquele fosse um dia qualquer. Eu não fazia ideia de quem ele era, e, naquele momento, não me importava. Ele levantou o olhar quando me aproximei e, sem dizer nada, apenas fez um leve gesto com a cabeça para que eu o seguisse. Meu coração acelerou ainda mais, mas eu apenas assenti e continuei atrás dele. O silêncio entre nós era esmagador, mas eu não tinha forças para quebrá-lo. Eu não faria perguntas. Eu não hesitaria.
Atravessamos o aeroporto sem chamar atenção, passando por corredores menos movimentados, áreas restritas onde nenhum dos funcionários sequer parecia nos notar. Era como se tivéssemos nos tornado invisíveis. Nenhuma fila. Nenhuma espera. Nenhuma checagem. E, de repente, estávamos do lado de fora, nos fundos do aeroporto, onde um jato particular estava estacionado, brilhando sob o sol forte.
Minha boca estava seca. Meu corpo inteiro parecia vibrar com um nervosismo que eu não conseguia conter. Subi os degraus do avião devagar, sentindo o suor escorrer pela nuca, a bolsa ainda firme na minha mão. O ar dentro da aeronave era mais frio, mais pesado. Havia apenas uma pessoa ali, sentada de costas para mim.
Meu coração parou.
Por um instante, o tempo congelou. A figura à minha frente se moveu, lenta, controlada, como se já esperasse por mim. E então ele se levantou. Virou-se devagar. E quando nossos olhos finalmente se encontraram, meu peito se apertou de uma forma que eu não soube explicar.
Kadu.
Esse tempo todo… era o Kadu.