O Jogo Começa

Da série Sentir Sampa
Um conto erótico de Gabriel
Categoria: Gay
Contém 1049 palavras
Data: 06/04/2025 14:33:08

Carlão já vira muita coisa atrás do balcão: traições, reconciliações, pedidos de socorro disfarçados de cachaça. Mas havia algo de diferente no homem que agora ocupava sempre o mesmo canto do bar, à mesma hora, com a mesma expressão. Os olhos daquele sujeito não apenas observavam: dissecavam. E Paulo era o alvo.

O nome dele era Alê. Alto, postura de ex-militar, barba por fazer, olhar duro. Mas havia algo quebrado ali, uma rachadura no fundo dos olhos. Carlão, que já servira whisky a agiotas e coronéis, reconheceu o tipo. O tipo que não bebe por gosto. Que espera ordens. Que carrega culpa.

Alê era um dos homens de confiança de Cícero Ferrão. A missão era clara: vigiar Paulo, descobrir o que ele devia e por que estava demorando a pagar. Mas a tarefa, simples no papel, foi se desmanchando no suor da convivência. Alê começou a observar demais. E sentir.

O modo como Paulo falava com a tinta, o silêncio carregado que vinha depois de cada obra, o sorriso que fingia quando Deco estava por perto. Alê passou a entregar relatórios pela metade. Sabotava o próprio cronograma. Demorava nos cafés. Inventava desculpas para ver Paulo de longe — e às vezes, de perto.

Enquanto isso, Deco começava a se inquietar. Primeiro, com barulhos no corredor de madrugada. Depois, com os bilhetes. Frases cortadas de revistas, palavras escritas à mão com letra nervosa:

> “Cuidado com quem te admira.”

> “Nem toda paixão é abrigo.”

> “Ele vai escolher.”

Deco mostrou um deles a Paulo. Paulo fingiu surpresa, mas o suor na nuca o denunciou. Ele também vinha recebendo mensagens. Mais cifradas. Escondidas em lugares íntimos: dentro do sapato, sob a moldura de um quadro, entre folhas do caderno de esboços.

A tensão cresceu como tempestade abafada.

Então veio a festa de Ritinha. Casa cheia, música alta, vinho derramando em tapetes caros. Paulo expôs uma nova série de telas, íntima, dolorosa. No centro, uma pintura especial: Deco nu, curvado sobre si mesmo, como quem protege um segredo ou um trauma.

No meio da festa, com todos distraídos, a tela foi rasgada por uma lâmina rápida. O som do rasgo foi mais alto que a música. O salão silenciou. Paulo congelou. Deco correu até a pintura, os olhos marejados.

— Isso não é coincidência — disse Deco, encarando Paulo. — Alguém está nos caçando.

Paulo quis falar. Mas o passado se enrolava na garganta como corda. Contar tudo agora podia salvá-los... ou destruir o pouco que tinham construído.

Ele escolheu o silêncio.

Dona Néia, com faro de matriarca calejada, sabia que tinha coisa errada. Quando Paulo começou a esquecer as palavras, a evitar Deco, a pintar só com preto e vermelho, ela chamou reforço.

Marlene chegou no dia seguinte. Botas gastas, sobretudo cinza, olhos como aço frio. Ex-policial civil, expulsa por denunciar colegas corruptos. Hoje, vivia de casos que ninguém queria tocar. Ela foi direto ao ponto:

— Quem é o tal do Alê?

Com ajuda de Carlão, ela rastreou ligações. Começou a montar o quebra-cabeça. Paulo. Alê. Cícero Ferrão. Um triângulo de dívida, obsessão e perigo.

Enquanto isso, Babi — curiosa por natureza — bisbilhotava tudo. Foi ela quem ouviu a conversa entre Alê e Carlão nos fundos do bar:

— Ele não vai aguentar mais uma semana. A exposição é o ponto final.

— E você vai cumprir a ordem?

Silêncio. Um copo batido na bancada.

— Não sei mais se consigo.

Babi gravou. Correu até Marlene. A bomba estava armada. A exposição seria o palco do ataque. E Paulo era o centro do alvo.

No meio disso tudo, Paulo e Deco colidiram de vez. A briga foi feia. Cheia de verdades escondidas.

— Você não confia em mim — gritou Deco, olhos ardendo.

— E você não entende o que eu perdi! — rebateu Paulo, o peito aberto como carne viva.

— Eu tô aqui agora! Mas você não tá comigo!

Deco saiu. Portas bateram. Silêncios rugiram. Paulo se trancou no ateliê por três dias. Pintou como se a tinta fosse sangue.

Alê se aproximou. Como quem espera o outro cair pra segurar — ou pra terminar de empurrar.

— Eu poderia te proteger — disse, numa tarde cinza.

— De quem?

— Do mundo. Dele. De você mesmo.

Paulo hesitou. Havia ternura ali. E também perigo. Os olhos de Alê brilhavam como os de quem ama... e os de quem obedece a um monstro.

Deco viu. De longe. E ardeu por dentro.

Naquela noite, São Paulo pareceu mais escura.

A galeria era puro verniz e tensão. As luzes criavam sombras mais densas do que clareza. O jazz soava longe, como se viesse debaixo d’água. Convidados murmuravam elogios forçados. Mas todos sentiam: algo estava prestes a explodir.

Marlene circulava, discreta, o olhar fatiando o ambiente como faca. Dona Zuleika jogava búzios invisíveis com os dedos. Japa ajeitava o tripé da câmera para transmitir tudo para os seguidores. Babi andava com a mão no bolso — onde carregava um alarme de emergência.

E então, como um rei sem trono, surgiu Cícero Ferrão. Terno bem cortado, sorriso de quem nunca perde, passos lentos como de predador.

Ao seu lado, Alê. Os olhos dele vagavam. Parecia febril.

Paulo ficou imóvel. Deco se colocou à frente dele. Um escudo de carne e coragem.

— Você deve, Paulo. E nada é de graça — disse Cícero, com voz de vidro estalando.

— Mas amor é — retrucou Deco, firme, sem piscar.

O silêncio durou meio segundo. Mas foi o bastante.

Alê se moveu. A mão entrou no casaco.

Um grito. Um estalo metálico.

A arma apareceu.

Mas não se voltou para Paulo.

— Acabou — disse Alê, apontando para Cícero.

Por um momento, o tempo congelou. Então a polícia entrou. Sirenes abafadas. Marlene no comando. Algemas voando.

Cícero caiu sem dignidade. Alê foi rendido. Antes de ser levado, olhou para Paulo.

— Você valeu a pena.

Paulo correu. Achou Deco, abraçou forte. Os dois choraram. As mágoas escorreram pelos olhos. Ficaram ali, de joelhos, entre quadros e caos.

Do lado de fora, São Paulo os esperava.

Na calçada, descalços, Carlão lhes deu vinho direto da garrafa. Babi dançava com Ritinha. Dona Araci gritava, rouca:

— Esse beijo é mais épico que o de Tieta!

O céu se abriu. Os pássaros da Consolação começaram a cantar.

Paulo tirou os sapatos e encarou a cidade, suando esperança.

— Mãe... eu vou casar com ele.

Deco segurou sua mão.

— E dessa vez, São Paulo vai aplaudir de pé.

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Comentários

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Caracas é tanto nome, tantos personagens que pela primeira vez li um conto e não entendi nada. Estou me sentindo um idiota ou muito burro talvez. Desculpe.

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