O céu cinza de Alphaville ameaçava chuva, e o apartamento cheirava a álcool, desleixo e silêncio incômodo. Júlio desapareceu do triplex resmungando algo sobre “limites profissionais”. Melhor assim. Menos plateia.
Aldo estava sentado no sofá, só de cueca e uma camiseta furada do Corinthians, com uma bolsa de gelo no maxilar e uma birra atravessada no peito. E eu? Eu permaneci de pé. Impecável, como sempre. Cabelos longos e loiros caindo com precisão milimétrica sobre os ombros do meu terno branco, adornado com detalhes dourados. Parecia deslocado ali dentro — o anjo decadente num antro de porcos.
— Uma campanha de sabonete? — ele repetiu, ainda incrédulo, a voz grossa quebrada pela ressaca. — Você tá de brincadeira, né?
— Eu pareço alguém que brinca, Touro Loco?
Ele me lançou um olhar de desprezo, mas havia algo nos olhos dele… um leve estremecer. Raiva, orgulho ferido — e algo que ele ainda não conseguia nomear.
— Eu sou lutador. Ou pelo menos era. Não modelo de propaganda de espuma.
— Você também era pai. Marido. Um profissional respeitado. E olha só pra você agora — falei, tirando o casaco com calma e jogando-o sobre a poltrona, expondo minha camisa de seda dourada por baixo. — Você perdeu tudo porque preferiu lutar contra os próprios demônios sem saber que eles estavam ganhando de lavada.
Ele respirou fundo, os olhos evitando os meus. Aquela frase acertou. Mirei onde doía.
— Essa campanha não é só sabonete. É o primeiro passo pra te devolver uma imagem pública. Pro seu nome voltar a circular sem ser em vídeo de barraco em bar. Pro seu filho — Diego, né? — poder digitar seu nome no Google sem se envergonhar.
Aldo fechou os olhos, o maxilar tenso.
— Não usa o nome do meu filho pra me manipular.
— Eu não manipulo. Eu vendo — retruquei com calma venenosa. — E o que você precisa agora é se vender. Com dignidade, se possível. Com espuma, se necessário.
Ele me encarou, em silêncio, por longos segundos. A tensão entre nós era densa como fumaça. E eu sabia que estava vencendo.
— E se eu disser que não?
— Então amanhã a imprensa te encontra aqui, fedendo a whisky, cercado de contas e ruínas. E eu sigo pro próximo nome da lista. E adivinha? Esse alguém vai aceitar. Vai estampar a campanha, estourar na mídia e ocupar o lugar que você deixou vazio.
Aldo esfregou o rosto com as mãos. O gelo caiu no chão.
— Você é um merda arrogante.
— Sim. Mas sou o merda arrogante que ainda acredita que você pode voltar a ser alguém.
Silêncio.
Ele se levantou com dificuldade, andando até a cozinha. Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de água e tomou direto no gargalo. Depois me olhou, cansado e derrotado, mas também curioso.
— É só uma campanha?
— Por enquanto — respondi, ajeitando os punhos da camisa como quem fecha um negócio com estilo. — Mas vai ser a primeira manchete limpa com seu nome em meses. E talvez... o primeiro banho decente também.
Ele riu. Um riso rouco, curto. Mas riu.
— Tá bom, príncipe dourado. Me dá o sabonete.
O estúdio improvisado foi montado naquela mesma noite em uma das varandas do triplex. A equipe de fotografia chegou em silêncio, como quem entra num velório. Júlio, com cara de quem tinha chupado um limão azedo, se recusou a me olhar nos olhos. Perfeito.
Aldo surgiu de dentro do apartamento trajando um roupão branco felpudo, com o logotipo da marca bordado em dourado. Olhou pra todo mundo como se estivesse entrando num ringue, pronto pra dar o primeiro soco em quem olhasse por mais de cinco segundos.
Eu, sentado numa cadeira dobrável, com as pernas cruzadas e uma taça de espumante rosé na mão, fiz questão de aplaudir baixinho.
— Um brinde ao retorno do guerreiro ensaboado.
Ele bufou.
— Você vai ficar aí assistindo?
— Evidente. Sou seu agente agora, lembra? Preciso garantir que você não pareça um ogro com dermatite.
Ele girou os ombros, andou até o set, e ficou de costas. O fotógrafo, um italiano magricelo com voz de tenor frustrado, correu para ajeitar a luz. Aldo tirou o roupão.
E então... silêncio.
A equipe parou por um instante. E eu entendi. O corpo dele era uma obra de brutalidade e beleza. Cicatrizes como pinceladas sujas numa tela musculosa, imperfeita, hipnotizante.
— Tá todo mundo esperando o quê? — Aldo rosnou. — Eu não tenho a noite inteira.
— Isso é mentira — murmurei. — Você não tem mais vida inteira, então aproveita.
Ele virou pra mim, com aquele olhar de ódio que queimava mais do que o flash. E por algum motivo, eu gostei. Era o tipo de raiva que nascia da vergonha — e da atração.
O fotógrafo começou a clicar. Aldo, nu da cintura pra cima, segurando o sabonete com um desprezo glorioso. Gotas de água escorriam pelo peito, simulando um banho sensual que, na prática, era só desconfortável.
— Mão esquerda mais relaxada, Touro — gritei. — Você parece que vai estrangular o sabonete.
— Vai se foder, Leônidas.
— Depois de você, querido.
As fotos seguiram. E a tensão... também.
Horas depois, a equipe foi embora. Júlio passou feito um furacão, organizando tudo, fingindo que eu não existia. Aldo, ainda de toalha na cintura, jogou-se no sofá da varanda. Pegou um cigarro e acendeu com a calma de quem está prestes a se autodestruir outra vez.
— Não pense que isso muda alguma coisa — ele disse. — Só topei porque você me encurralou.
— Eu sou ótimo nisso — respondi, ajeitando meu paletó dourado. — E olha, você se saiu melhor do que eu esperava. Até conseguiu esconder o ranço da sua alma por uns três cliques.
Ele soltou a fumaça sem me olhar.
— Você me odeia, né?
— Não. Te acho... fascinante. Como um incêndio em câmera lenta. Horrível, destrutivo, mas impossível de ignorar.
Ele riu de novo. Não durou muito. O riso virou suspiro.
— E você, Leônidas... quem é você quando ninguém tá olhando?
— Eu sou sempre eu. Até quando minto.
Ele me olhou, pela primeira vez sem armadura. E foi ali que entendi: o Touro Loco não era só um animal ferido. Era um homem tentando gritar por dentro de uma jaula que ele mesmo construiu.
E talvez eu também.
— Amanhã a gente continua — falei, virando as costas. — Você vai tomar um banho de verdade. E começar a pagar a dívida com você mesmo.
— E com minha família?
— Também. Se der tempo.
Saí dali com a cabeça erguida, o perfume caro dominando o corredor, e a certeza de que algo tinha começado a rachar naquele homem. E talvez, só talvez, em mim também.
Mas ainda era cedo.
A luta estava só começando.