Narrado por Gabriel
Não escolhi essa cidade. Ela me engoliu desde o começo, desde o dia em que nasci entre paredes de barro e telhados tortos, numa casa que rangia com o vento como se pedisse pra cair. Era uma rua sem nome, só terra batida e mato rasteiro, onde o sol queimava a pele até rachar e as noites traziam um frio que cortava os ossos. Meu pai era um homem de mãos grandes e poucas palavras, um lavrador que arrancava o sustento da terra seca com o mesmo esforço que usava pra me manter na linha. Minha mãe, magra e quieta, passava os dias entre a cozinha e a igreja, os olhos sempre baixos, como se temesse que Deus a visse olhando pro lado errado. Eu era o único filho, o peso de um futuro que eles nunca disseram em voz alta, mas que eu sentia em cada silêncio.
A igreja era tudo. Não tinha como escapar. Eu sabia o Pai Nosso de cor, as palavras saindo da boca como um reflexo, mesmo sem entender o que significavam. Carregava o terço no bolso, os dedos esfregando as contas enquanto as mulheres da pastoral me olhavam com sorrisos duros, dizendo que tinha "jeito pra coisa". Não sabia o que era "a coisa", mas assentia, porque dizer não não era opção. A cruz de ferro no campanário rangia com o vento, e eu achava que era Deus falando comigo, me vigiando, me mandando ser bom. Ser puro.
A cidade não perdoava quem saía da linha. Vi isso com o filho do açougueiro, o João. O pegaram com um rapaz do sítio vizinho, atrás do curral, as mãos nos cabelos um do outro, as bocas tão juntas que não dava pra dizer onde um começava e o outro terminava. Não sei quem viu primeiro, mas no dia seguinte a cidade inteira sabia. O pai dele o arrastou pra praça, o cinto estalando contra as costas enquanto o povo assistia, alguns rezando, outros cuspindo. João sumiu depois disso. Diziam que foi pra capital, mas ninguém perguntava. Ninguém queria saber. Aquilo ficou na minha cabeça como um aviso gravado a fogo: aqui, o desejo era pecado, e o pecado era morte.
Cresci com medo. Não do inferno, que o padre Vicente falava nas homilias com voz firme e olhos cansados. Do que eu podia sentir. Do que não entendia. Meu corpo mudava, e não sabia o que fazer com ele. Comecei a notar os pelos crescendo no peito, a voz engrossando, o calor que subia quando ficava muito tempo lavando o rosto no riacho e via meu reflexo — pele macia, olhos grandes, uma beleza que não queria ter. Minha mãe dizia que eu parecia um anjo, mas não me sentia assim. Anjos não acordavam com o corpo duro, as mãos trêmulas debaixo do lençol, o coração batendo contra as costelas como se quisesse confessar algo que nem sabia nomear.
Foi o padre Vicente quem me puxou pra dentro da igreja de vez. Ele me chamou pra ajudar na sacristia. Era um homem alto, de barba rala e mãos marcadas por veias que saltavam como cordas. Não era bonito como Eduardo, mas tinha uma força quieta, uma calma que fazia você querer agradar. Me ensinou a dobrar os paramentos, a acender o incenso, a carregar o missal sem tremer. Gostava de mim, acho. Dizia que eu tinha paciência, que minha voz era suave o bastante pra ler as escrituras sem assustar os fiéis. Me deixava vermelho com os elogios, o rosto quente, mas guardava cada palavra como um tesouro.
A sacristia virou meu refúgio. Era um lugar pequeno, com paredes de reboco descascado e um cheiro de cera e madeira velha que me acalmava. Ali, podia fingir que era só isso — o seminarista, o garoto que servia a Deus, o que mantinha as coisas no lugar. Mas à noite, deitado no colchão fino do meu quarto, o silêncio me traía. O corpo falava, e não sabia calar. As mãos deslizavam sozinhas, tímidas no começo, tocando a pele do peito, descendo devagar, hesitando na cintura. Mordia os lábios até doer, tentando parar, mas o calor vencia. Os dedos encontravam o que não queria admitir, e o prazer vinha rápido, sujo, um arrepio que me deixava vazio depois. Rezava logo em seguida, o terço apertado contra o peito, pedindo perdão por algo que não conseguia controlar.
Mas tudo mudou com o Mateus. Ele chegou na cidade, um rapaz de fora, filho de um comerciante que abriu uma venda na esquina da praça. Alto e magro, com cabelo preto caindo nos olhos e um jeito de andar que parecia não ligar pro que os outros pensavam. Tinha uma risada fácil, uma voz que enchia o ar, e eu não conseguia tirar os olhos dele. Não era como o João, que escondia o que sentia. Mateus era aberto, descuidado, e isso me assustava tanto quanto me atraía.
Nos encontramos pela primeira vez na fonte, um buraco de água barrenta nos fundos da cidade onde as pessoas iam se lavar depois do trabalho. Eu estava lá, a camisa enrolada na cintura, a água fria escorrendo pelo peito, quando ele apareceu. Tirou a camisa sem pressa, o corpo magro, mas firme, a pele bronzeada brilhando no sol baixo. Os olhos dele, castanhos e vivos, me pegaram desprevenido.
— Você é o garoto da igreja, né? — perguntou, a voz leve, mas com um tom que me fez engolir em seco.
Assenti, as palavras presas na garganta. Ele sorriu, um canto da boca subindo, e jogou água no rosto, as gotas escorrendo pelo pescoço, pelos ombros. Eu não queria olhar, mas olhava. O calor subiu, o mesmo que sentia à noite, mas mais forte, mais real. Ele se aproximou, a água pingando no chão entre nós, e estendeu a mão.
— Mateus. — disse, simples, como se não soubesse o que aquele gesto fazia comigo.
Apertei a mão dele, os calos dele contra a minha pele lisa, e o choque veio instantâneo, um arrepio que subiu pelo braço e desceu pelo corpo. — Gabriel — murmurei, baixo demais, os olhos fugindo dos dele.
Ele riu, um som que ecoou na minha cabeça por dias. Depois disso, nos víamos mais. Às vezes na fonte, às vezes na praça, sempre por acaso, mas sabia que não era. Ele falava de coisas que eu não conhecia — cidades grandes, músicas que nunca ouvi —, e eu escutava, o coração batendo rápido, o corpo alerta. Não dizia muito, mas ele não parecia se importar. Gostava da minha quietude, eu acho. Dizia que eu era diferente, que tinha algo nos olhos que ele não explicava.
Aconteceu numa tarde de verão, o ar pesado de calor, o céu laranja queimando o horizonte. Tinha saído da sacristia cedo, o suor grudando a camisa no peito, e fui pra fonte pra me lavar antes do terço. Mateus estava lá, sozinho, a camisa jogada na pedra, o corpo magro brilhando com a água. Me viu e acenou, o sorriso aberto, e fui, as pernas pesadas como se soubesse o que vinha.
— Tá quente pra caramba hoje. — disse, jogando água no cabelo, as gotas escorrendo pelo rosto.
Assenti, tirando a camisa devagar, o coração martelando contra as costelas. Ele se aproximou, perto demais, o cheiro dele — suor, terra, algo doce que não sabia nomear — misturando-se ao ar úmido. Os olhos dele desceram pelo meu peito, e senti o peso daquele olhar como se fosse um toque.
— Você já pensou em sair daqui? — perguntou, a voz mais baixa agora, quase um segredo.
— Não sei. — murmurei, os olhos no chão, as mãos tremendo enquanto jogava água no rosto.
Ele ficou quieto por um instante, depois riu, leve, e deu um passo à frente.
— Você é bonito, sabia? Não fala muito, mas tem isso.
O rosto queimou, o calor subindo pelo pescoço. Tentei rir, mas o som saiu errado, engasgado. Ele se aproximou mais, o espaço entre nós encolhendo até eu sentir o calor do corpo dele, a respiração dele contra minha pele. Os olhos castanhos me prenderam, e não desviei dessa vez.
— Relaxa. — sussurrou, a mão subindo pro meu ombro, os dedos firmes, mas gentis.
O toque me acertou como um raio. O corpo inteiro reagiu, os músculos tensos, o ar preso no peito. Ele não recuou. A mão desceu devagar, traçando a linha do meu braço, e não sabia se queria correr ou ficar. O calor desceu, mais fundo, e mordi os lábios, tentando segurar o que vinha.
Mateus me puxou pro lado da fonte, pra trás de uma pedra grande que escondia a vista da estrada. O chão era duro, o mato seco roçando as pernas, mas não sentia nada além dele. A mão dele subiu pro meu pescoço, os dedos apertando leve, e ele se inclinou, a boca tão perto que senti o calor antes do toque. Os lábios dele encontraram os meus, macios, mas firmes, e congelei, o corpo travado por um segundo antes de ceder.
O beijo foi desajeitado no começo, meus dentes batendo nos dele, mas ele riu contra minha boca, um som baixo que me fez relaxar. A língua dele deslizou contra a minha, quente, molhada, e o gosto — sal, suor, ele — me engoliu inteiro. Minhas mãos subiram, hesitantes, tocando o peito dele, a pele quente e lisa sob os dedos. O coração dele batia rápido, quase tanto quanto o meu, e isso me deu coragem.
Ele me empurrou contra a pedra, o peso do corpo dele me prendendo, e as mãos desceram, firmes, agarrando minha cintura. O calor explodiu, o corpo duro contra o dele, e gemi, baixo, o som escapando antes que pudesse segurar. Ele sorriu contra meu pescoço, os dentes roçando a pele, e os dedos dele abriram minha calça devagar, o tecido cedendo com um som que ecoou na minha cabeça.
O ar ficou preso na garganta quando ele me tocou. Os dedos dele, calejados e quentes, envolveram-me, apertando com uma certeza que nunca senti. O corpo inteiro tremia, as pernas moles, e me segurei nos ombros dele, as unhas cravando na pele. Ele moveu a mão, lento no começo, os olhos nos meus, vendo cada reação, cada suspiro que tentava esconder. O prazer veio rápido, uma onda que subiu pela espinha, queimando tudo no caminho. Gemi de novo, mais alto, o som abafado contra o peito dele, e ele acelerou, o ritmo firme, implacável.
A pedra machucava as costas, mas eu não ligava. O corpo dele contra o meu, o calor da mão dele, o cheiro dele — era tudo que existia. O ar ficou pesado, a respiração dele misturando-se à minha, e senti o limite chegando, o corpo tenso, os músculos travando. Ele apertou mais forte, os dedos deslizando com o suor, e eu explodi, o prazer me rasgando por dentro, um grito preso na garganta que virou um gemido rouco contra o ombro dele. O corpo amoleceu, as pernas cedendo, e ele me segurou, o braço firme na minha cintura enquanto eu tremia, o calor escorrendo entre nós.
Ele não disse nada, só ficou ali, a respiração pesada, os olhos nos meus. Eu não conseguia olhar de volta, o rosto queimando, o peito apertado com algo que não era só prazer — era medo, culpa, um peso que caiu sobre mim como uma sombra. Ele limpou a mão na calça, casual, e me puxou pra sentar no chão ao lado dele, o mato seco roçando a pele.
— Tá tudo bem. — disse, a voz baixa, quase gentil, mas eu não acreditava.
O sol caiu atrás do horizonte, o céu ficando roxo, e me levantei, as mãos trêmulas fechando a calça. Ele ficou olhando, o sorriso sumindo devagar, e virei as costas, as pernas pesadas enquanto voltava pra casa. O terço no bolso parecia queimar, o crucifixo na parede da sacristia já me esperando com olhos que não podia encarar.
Naquela noite, rezei até os joelhos doerem, o terço cortando a pele dos dedos. Pedi perdão, pedi força, pedi pra esquecer. Mas o corpo lembrava. O calor dele, o toque dele, o gosto dele — tudo ficou grudado em mim como uma marca que não conseguia lavar. Mateus sumiu semanas depois, a venda fechou, e nunca soube pra onde ele foi. Mas ele deixou algo em mim, algo que carregava em silêncio. Uma chama que queimava baixo, esperando pra crescer. Escolha nunca houve. Sempre esteve lá, dentro, desde o começo. Fugia-se da cidade, da igreja, do terço, mas nunca disso.