Narrado por Gabriel
O dia começou antes do sol, o céu ainda cinza quando abri os olhos, o terço quente nas mãos da prece que murmurei na madrugada. Hoje era o dia. O novo padre chegava, e a cidade inteira parecia segurar o fôlego, esperando por algo que ninguém sabia definir. Uns diziam que ele era a salvação que precisávamos depois de meses sem um guia, desde que Vicente fechou os olhos pela última vez. Outros, os mais velhos com rostos marcados pelo sol e desconfiança, resmungavam que ele vinha trazer confusão, que a cidade grande só mandava problemas. Eu não sabia o que pensar. Só sabia que era minha responsabilidade preparar tudo e o peso disso me acordou antes do galo.
O sino tocou às sete, um som rouco e grave que cortou o silêncio e ecoou pelas ruas de terra batida. Levantei da cama, os pés descalços sentindo o chão frio de madeira, e corri para a sacristia, o ar gelado da manhã enchendo os pulmões até arder. A igreja estava quieta, os bancos vazios, o cheiro de cera velha e poeira pairando no ar. Os paramentos já estavam dobrados desde a noite passada, o linho branco impecável sobre a mesa de madeira gasta, mas chequei mesmo assim, as mãos tremendo enquanto alisava cada dobra como se pudesse apagar o nervosismo com o toque. E mesmo sem saber se o novo padre usaria aquilo tudo ou se serviria nele, não podia perder a chance de executar este ritual. O cálice de Vicente brilhava na prateleira, polido até refletir a luz fraca que entrava pelo vitral empoeirado, os tons de vermelho e azul dançando na prata opaca. Peguei o missal, os dedos suados marcando o couro preto, e li as passagens do dia em voz baixa, as palavras saindo entrecortadas enquanto tentava gravá-las na mente. Não podia errar. Não hoje.
As mulheres da pastoral chegaram logo depois, os passos apressados ecoando na praça enquanto carregavam cestas de vime cheias de pão fresco, bolos de milho e flores silvestres colhidas nas margens do rio. Dona Clara liderava o grupo, a voz firme cortando o ar como um sino, os cabelos grisalhos presos num coque tão apertado que parecia doer.
— Gabriel, as velas estão acesas? E o incenso? Não quero bagunça hoje. — disse, sem nem me olhar, já enfiando os lírios brancos entre os castiçais do altar.
Respondi que sim, a voz saindo baixa, quase engolida pelo barulho delas, mas ela foi checar mesmo assim, os dedos nodosos ajustando cada flor com uma precisão que me fez sentir inútil. O cheiro doce dos lírios misturou-se ao aroma pesado do incenso que eu tinha acendido, uma nuvem espessa que subia em espirais e grudava na garganta.
As mais jovens — Ana, Maria, e outras que eu conhecia desde os dias de catecismo — vieram atrás, os vestidos simples balançando enquanto espalhavam toalhas brancas sobre os bancos. Riam baixo, as vozes abafadas por mãos que cobriam a boca, mas eu ouvia os sussurros.
— Dizem que ele é alto. — Ana disse, os olhos castanhos brilhando com algo que não era só curiosidade. Maria deu um risinho, o rosto corando enquanto amarrava o cabelo com uma fita vermelha.
— E bonito, minha tia disse que viu ele na estrada. — respondeu a outra com as mentiras de sua tia que vivia fantasiando a verdade até daquilo que ela nunca presenciou, e as duas trocaram olhares, os lábios curvados em sorrisos que me fizeram revirar os olhos. Mas o estômago apertou, um nó que não explicava, e voltei a atenção para o missal, fingindo que não ouvia.
Os homens apareceram em seguida, as botas pesadas arrastando terra para dentro da igreja enquanto carregavam lenha para o pátio e mesas velhas que rangeram alto quando as abriram. Seu João, o ferreiro, passou por mim com um aceno seco, o rosto queimado de sol franzindo-se em linhas duras.
— Espero que esse padre não encha a cabeça das meninas com ideias. — resmungou, alto o suficiente para eu ouvir, os olhos estreitos seguindo Ana enquanto ela ajustava as flores com um sorriso bobo.
Seu Pedro, que consertava carroças, assentiu ao lado, o bigode grosso tremendo enquanto murmurava algo que não peguei. Outros se juntaram, cabeças balançando em silêncio, os braços cruzados como se já vigiassem o padre antes mesmo de ele chegar. Não era só fé que esperavam dele. Queriam controle, alguém que mantivesse as coisas no lugar — especialmente as mulheres jovens, que pareciam flutuar em cada passo, os olhos brilhando com uma expectativa que eu não entendia.
O dia passou rápido demais, o sol subindo quente e dourado enquanto eu corria de um lado para o outro. Acendi as velas, o pavio chiando contra o fósforo, a chama tremendo antes de crescer, o cheiro de cera quente subindo e misturando-se ao incenso. Ajustei o crucifixo no altar, os dedos escorregando no metal frio, o peso dele me lembrando Vicente, os sermões roucos que ele dava com um sorriso cansado. Varri o chão da igreja até a vassoura levantar poeira que dançava nos raios de sol, o som das cerdas raspando a pedra ecoando no silêncio. Chequei as chaves da sacristia, os paramentos, o vinho na jarra de vidro — tudo tinha que estar perfeito. Era minha forma de honrar Vicente, de provar que eu podia carregar essa paróquia até o novo padre chegar. Mas as horas voavam, e ele não aparecia. Ninguém sabia onde estava, nem quando viria. Só sabíamos que a missa era às seis, e ele tinha que estar aqui. Tinha que estar.
O sino tocou cinco vezes, lento e grave, e os fiéis começaram a chegar. As mulheres se amontoaram nos bancos da frente, os véus pretos caindo sobre os ombros como sombras, os rosários tilintando entre os dedos. Os homens ficaram atrás, os braços cruzados, os rostos fechados em linhas duras, o cheiro de suor e terra seca subindo deles. As crianças corriam entre as pernas, as risadas altas cortadas por tapas leves das mães que mandavam se aquietar. O ar estava pesado, cheio de sussurros e olhares trocados, o perfume barato das moças misturando-se ao odor de fumo que alguns já mascavam nas portas. Fiquei na entrada, o missal apertado contra o peito, os olhos varrendo a praça vazia. O sol descia devagar, tingindo o céu de laranja e vermelho, e o vazio na barriga crescia, um buraco que engolia o ar. E se ele não viesse? E se eu tivesse falhado antes mesmo de começar?
Então ouvi o ronco. Grave, rouco, vindo da estrada que cortava a cidade como uma cicatriz. Um carro preto surgiu na curva, os pneus levantando uma nuvem de poeira que brilhou como ouro na luz do fim de tarde. O som cortou o burburinho da igreja, e todos se viraram, cabeças esticadas, olhos arregalados. O veículo parou na praça, a porta rangeu ao se abrir, o metal gemendo baixo, e ele desceu. O padre.
Era alto, mais alto do que eu imaginava, uma figura que parecia engolir o espaço ao redor. Os ombros largos esticavam a batina preta até o tecido parecer gemer, o colarinho branco reluzindo contra a pele oliva como uma lâmina de luz na penumbra. Cada passo firme ecoava na terra batida, um tambor lento e pesado que fazia o chão tremer, e ele atravessou a praça com uma mala na mão, os músculos do antebraço saltando sob a manga enquanto a carregava sem esforço. O rosto era anguloso, esculpido em linhas duras que falavam de experiência e algo mais bruto, quase feral. A testa larga, marcada por rugas sutis, carregava o peso de quem viu o mundo sem se curvar. Os olhos castanhos, quase pretos, brilhavam com uma intensidade cortante, enquadrados por sobrancelhas grossas e escuras que dominavam cada traço. A barba cheia, salpicada de fios grisalhos, era firme, natural, como se crescesse direto da essência dele, sem refinamento ou desleixo. A boca larga, os lábios cheios mas selados, escondia qualquer traço de suavidade.
O ar mudou quando ele entrou pela porta da igreja, o cheiro dele cortando o espaço antes que eu pudesse respirar direito — couro quente, suor limpo, algo cru e vivo que se misturava ao aroma doce do incenso e ao cheiro de terra da praça. As mulheres nos bancos da frente ergueram os rostos, os véus tremendo enquanto sussurravam entre si, os olhos brilhando com algo que ia além da fé. Dona Clara sorriu, as mãos cruzadas em reverência, murmurando um "Graças a Deus" que ecoou baixo. Ana e Maria trocaram olhares, os lábios entreabertos, as bochechas corando enquanto ajeitavam os cabelos com dedos nervosos. Os homens atrás franziram as testas, os braços cruzados apertando-se mais, os olhos estreitos seguindo cada passo dele como falcões. Seu João resmungou algo, um som gutural que não peguei, mas vi o jeito que ele olhou para Ana, como se já culpasse o padre por um pecado que ainda não existia.
Ele parou na entrada, a batina ondulando levemente com o vento da praça, e eu corri até ele, o missal escorregando nas mãos suadas. O coração batia rápido, o estômago apertado, mas era meu dever.
— Padre, bem-vindo. — murmurei, a voz saindo baixa, quase engolida pelo barulho dos fiéis. — Sou Gabriel, o seminarista. Os paramentos estão na sacristia, se quiser se preparar. — Ele assentiu, os olhos castanhos cruzando os meus por um instante, firmes, profundos, e o nó no peito apertou mais. Levei-o até a sacristia, o cheiro dele — couro, calor — me seguindo enquanto abria a porta. Ele entrou sem pressa, pegando a estola branca com mãos grandes e precisas, os dedos longos deslizando pelo linho como se já conhecessem o peso dela. Ajustou os paramentos sobre a batina, o tecido caindo em dobras perfeitas, e voltou comigo para a igreja, os passos pesados ecoando na pedra.
Fui até o altar primeiro, o missal na mão, e me virei para os fiéis, a voz tremendo enquanto falava.
— Irmãos, hoje recebemos o novo padre, que veio da cidade grande para nos guiar. Que Deus o abençoe nesta missão.
Os bancos murmuraram um "Amém" baixo, e ele subiu ao altar, a presença dele enchendo o espaço como se o próprio ar se curvasse. O cheiro de incenso subia em nuvens, misturado ao couro quente que emanava dele, e eu fiquei ao lado, o coração disparado enquanto ele erguia as mãos, a batina caindo em dobras escuras.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. — disse, a voz grave ecoando como trovão preso, cada sílaba um peso que fazia os bancos tremerem. — Que a paz esteja convosco.
— E contigo também. — responderam os fiéis, as vozes subindo em uníssono, mas eu mal ouvi. O som dele me atravessou, grave, denso, como se falasse só para mim. A missa começou, os gestos dele precisos, as mãos grandes segurando o cálice com uma firmeza que parecia dobrar o metal. O olhar dele cruzou o meu uma vez, firme, e o estômago apertou, um nó que subia até a garganta.
Quando a missa terminou, o pátio da igreja virou festa. Mesas cheias de pão, bolos de milho, cuscuz fumegante e jarras de café preto, o cheiro doce misturado ao fumo dos cigarros que os homens acendiam. Alguém puxou um violão, as cordas gemendo uma melodia simples, e as crianças corriam entre as pernas, rindo. Eu deveria apresentá-lo, mas Seu Antônio passou na minha frente, a barba branca brilhando, o peito estufado.
— Esse é o novo padre, pessoal! — gritou, a voz rouca cortando o barulho. — Nosso guia, direto da cidade grande!
Os fiéis se aproximaram, Dona Clara apertando a mão dele, Ana corando atrás. Seu João ficou de lado, o cigarro queimando, o olhar duro. Fiquei para trás, o missal na mão, o peito apertado por algo que não entendia.
A festa se esticou mais do que eu imaginava, o tempo escorregando como água entre os dedos. O sol sumiu, o céu virando um manto azul-escuro cravejado de estrelas que piscavam fracas, quase intimidadas pelas tochas que os homens acenderam ao redor das mesas. O aroma de café quente e bolo de milho ia enfraquecendo, misturado ao cheiro acre do fumo que subia em nuvens cinzentas. O violão gemia, as cordas dedilhadas por mãos já trêmulas de cansaço, a melodia arrastada mas teimosa, como se ninguém quisesse deixar a noite morrer. As crianças, antes barulhentas, agora se amontoavam nos cantos, os olhos pesados, algumas já dormindo nos braços das mães, os rostinhos sujos de terra e açúcar.
As mulheres da pastoral circulavam mais devagar, os vestidos amarrotados balançando enquanto recolhiam pratos e guardavam restos de pão em cestas de vime. Dona Clara dava ordens com a voz rouca, o coque grisalho cedendo, fios soltos caindo sobre a testa suada. Ana e Maria ainda riam, mas os sorrisos vinham mais fracos, os olhares delas voltando para o padre com menos frequência, como se o cansaço finalmente as puxasse para baixo. Os homens conversavam em grupos menores, as vozes graves misturadas a risadas curtas, os cigarros brilhando como brasas na penumbra. Seu João ficou até o fim, o rosto duro iluminado pelo fogo da tocha, os olhos atravessando o pátio até o padre como se pudesse desmontá-lo só com o olhar.
O padre permanecia no centro, mesmo quando não falava. Sentado numa cadeira de madeira que alguém arrastou para ele, a batina preta cobria as pernas como uma sombra líquida, o colarinho branco reluzindo na luz fraca. Respondia aos cumprimentos com acenos curtos, a voz grave saindo em frases simples que faziam as mulheres sorrirem e os homens assentirem com cautela. Dona Clara trouxe um prato de cuscuz, que ele aceitou com um "Obrigado" baixo, os dedos longos segurando o garfo com uma precisão que parecia deslocada num lugar tão simples. Ana passou por trás, a fita vermelha do cabelo balançando, desacelerando o passo, os olhos brilhando na meia-luz enquanto o encarava. Seu João viu, e o resmungo que soltou fez Seu Pedro rir seco, o bigode tremendo.
Demorou, mas a festa chegou ao fim. As tochas apagaram, o fogo crepitando baixo até virar cinzas, e o violão silenciou, as cordas largadas contra a madeira com um gemido final. As mulheres juntaram as cestas, os homens dobraram as mesas com rangidos que ecoaram no pátio vazio, e as crianças foram carregadas para casa, os passos arrastados dos pais marcando a terra. O ar esfriou, o cheiro de fumaça e comida dando lugar à brisa seca que soprava da estrada. Fiquei de lado, o missal ainda na mão, os dedos suados deixando marcas na capa enquanto ajudava a guardar as últimas toalhas. O peso do dia inteiro caía sobre mim, os ombros doendo, as pernas pesadas, mas o coração batia rápido, como se pressentisse que algo ainda estava por vir.
Ele se levantou. O padre ergueu-se da cadeira, a batina ondulando como uma onda escura, e o movimento roubou meu fôlego antes que eu pudesse desviar os olhos. A luz da última tocha dançava no rosto dele, iluminando as linhas duras da mandíbula, o brilho sutil dos fios grisalhos na barba, os olhos castanhos que pareciam engolir a penumbra ao redor. Atravessou o pátio com passos firmes, o som das botas pesadas na terra ecoando no silêncio que sobrava, e parou diante de mim. Uma onda de calor subiu dele, um aroma vivo — terra seca, suor fresco, a essência crua de um corpo que carregava o dia —, e o estômago apertou, um nó que subia até o peito e prendia o ar.
— Gabriel. — disse, a voz grave roçando o ar como um trovão baixo, cada sílaba um peso que fazia o chão tremer sob meus pés. — Estou exausto. Poderia me levar ao meu quarto, por favor?
O pedido caiu sobre mim como uma ordem divina, simples mas impossível de recusar. Assenti, rápido demais, o rosto esquentando enquanto virava para pegar a lanterna na sacristia. Ele esperou, a presença dele queimando nas minhas costas como uma chama invisível, mesmo estando a passos de distância. Peguei a lanterna na mesa, a luz amarela tremendo nas mãos suadas, e voltei para guiá-lo, o coração martelando contra o peito como se quisesse romper a carne e gritar.
Saímos do pátio, o silêncio da noite engolindo o eco da festa que ficava para trás. O caminho até a casa paroquial era curto, mas a penumbra tornava tudo mais lento, mais denso, como se o mundo se dobrasse ao redor dele. A lanterna lançava uma meia-luz fraca, o feixe dançando na terra seca e nas paredes descascadas do corredor, projetando sombras que se alongavam e tremiam como espectros. A figura dele atrás de mim crescia na escuridão, os ombros largos desenhados contra o reboco rachado como um gigante esculpido em pedra viva. O som dos passos dele ecoava, firme, ritmado, um tambor que batia em sincronia com o pulsar descontrolado no meu peito, enquanto os meus tropeçavam, hesitantes, quase infantis, tentando acompanhar o ritmo que ele impunha sem esforço.
Chegamos ao quarto, a porta de madeira rangendo baixo quando a abri, um som que cortou o silêncio como um lamento. A lanterna iluminou o espaço pequeno, a cama simples com o colchão fino, a cadeira de canto, as paredes nuas que pareciam fechar-se ao redor de nós como um túmulo vivo. Ele entrou atrás de mim, a batina roçando o chão, o sussurro do tecido amplificado no vazio, e o calor dele inundou o cômodo, denso, sufocante, como se o próprio ar se rendesse à presença dele. Larguei a mala ao lado da cama, os dedos escorregando na superfície gasta, o tremor nas mãos traindo o esforço para respirar, para me segurar.
— Aqui, padre. — murmurei, a voz saindo rouca, quase engasgada, os olhos baixos para não encarar o abismo que eu sabia que encontraria no rosto dele.
Ele ficou parado por um instante, a sombra dele cobrindo a minha na meia-luz trêmula da lanterna, uma escuridão que parecia viva, pulsando com o mesmo ritmo dos passos dele.
— Obrigado, Gabriel. — disse, a voz grave mas suavizada pelo cansaço, um trovão que se dissipava em eco, mas ainda carregado de uma força que me fazia curvar os ombros. — Pode ir. Nos vemos amanhã.
Assenti, o rosto quente, e saí rápido, os pés tropeçando no corredor escuro. A lanterna tremia na mão, mas o peso dele — a voz grave, o calor que não saía de mim — me seguia como uma sombra.
Voltei ao pátio. A festa tinha acabado, o silêncio pesava. Alguns ainda estavam lá, arrastando cestas, apagando cigarros na terra. Dona Clara foi embora com um "Boa noite" baixo. Seu João esmagou o resto do fumo com a bota e sumiu na escuridão. O resto seguiu, passos lentos na noite.
— Vão embora. — disse, a voz saindo rouca. — Eu fecho.
Ninguém respondeu. Só se foram. Fui até os portões da igreja, o metal frio nas mãos suadas. Puxei com força, o rangido cortando o ar, e travei o ferrolho. O som ecoou, seco, final. Parei ali, sob o céu escuro, as estrelas fracas em cima. Deixei a lanterna cair na terra, a luz morrendo com um clique. O missal caiu também, um baque surdo. O vento gelado cortou a pele, mas não me mexi.
O peso dele não saía — a voz grave, o calor no peito. Não dava pra ficar. Peguei a lanterna e voltei pra dentro. O corredor tava escuro, os passos batendo na pedra. Passei pelo quarto dele. A porta tava fechada, mas senti ele ali, o calor atravessando a madeira, subindo pelas pernas. Parei, o coração disparado, a mão apertando a lanterna. Ouvi um som — respiração funda, ou só o vento. Não sei. Segui rápido.
Cheguei no meu quarto, empurrei a porta, ela rangeu. Larguei a lanterna na mesa, peguei uma vela no canto e acendi com o fósforo que tremia na mão. A chama subiu, fraca, jogando sombras na parede. Tirei a camisa, os botões atrapalhando, joguei no chão. A calça caiu junto, pesada. Fiquei pelado, o ar frio batendo, mas o fogo dentro de mim não apagava. Deitei na cama, o colchão duro gemendo. A mão desceu, o corpo já quente, duro, pedindo. Era ele — a voz na cabeça, os olhos que me pegaram na missa, a força que eu não tirava de mim. Fechei os olhos, o peito subindo rápido, a mão apertando, o calor crescendo. Pecado. Eu sabia. Mas não parava. Ele tava ali, na carne, me puxando.
Então um barulho — um estalo seco, madeira rangendo no corredor. Parei, o coração na garganta, a mão travada. A vela tremia na mesa, a luz fraca mostrando a porta entreaberta. Alguém passou? Ele? O padre? Ou só o vento? Não sabia. O suor escorria na testa, o corpo ainda quente, mas o medo cortava. Levantei os olhos, o peito batendo forte, e encarei a escuridão além da porta. Tinha alguém ali? Ele me viu? A chama da vela piscou, quase morreu, e eu fiquei assim, pelado na cama, o fogo virando gelo, sem saber se era Deus, o padre ou o diabo me olhando de volta.