O despertador tocou às cinco da manhã. Ainda estava escuro lá fora, e um silêncio denso preenchia o quarto. Me espreguicei com preguiça, os músculos ainda meio doloridos, mas levantei. Coloquei a calça leve, uma camisa de manga comprida, prendi os fones no ouvido e dei play em "Love in the Dark", da Adele — como sempre. Parecia que só a voz dela sabia traduzir o que eu sentia por dentro, aquela mistura confusa de mágoa, força e saudade.
Saí correndo pelas ruas já conhecidas da cidade, mas algo dentro de mim — talvez um impulso, talvez um instinto — me fez mudar de percurso. Virei à direita na praça principal e segui por um caminho que levava mais para a periferia da cidade, uma região que eu evitava desde que voltei.
Depois de alguns minutos correndo, o coração acelerado mais pelas lembranças do que pelo esforço físico, vi um casebre.
Uma construção simples, de madeira torta e telhado improvisado com lonas e pedaços de zinco. Parei de correr e tirei os fones. Me escondi discretamente atrás de uma árvore torta, quase sem acreditar no que meus olhos viam.
Meu pai.
Ele saiu do casebre arrastando os pés, usando uma camisa furada e uma bermuda que parecia ter sido de alguém bem maior. A barba desgrenhada, os ombros curvados, e um olhar cansado, quase vazio. Um homem que um dia foi tão autoritário, tão cheio de voz, agora parecia um fantasma do que já foi. A mulher que apareceu logo depois me chamou a atenção. Era baixinha, parruda, com o cabelo preso num coque desfeito e uma expressão dura.
— Você vai pra rua de novo, é? — ela gritou, com a voz carregada de raiva. — Já não tem nada pra comer aqui! E você quer ir gastar o resto da vida se embriagando?
Meu pai não respondeu. Só abaixou a cabeça, como se aquele peso já estivesse nos ombros há muito tempo. Ela continuou:
— Isso não é vida, desgraça! Nem bicho vive assim! — e cuspiu no chão, voltando pra dentro do casebre.
Fiquei parado ali, com o coração apertado, sentindo um nó na garganta. Aquela cena me atingiu de um jeito estranho. Era como se o tempo tivesse feito justiça, mas sem piedade. Ele me expulsou de casa quando descobriu que eu era gay. Me chamou de aberração, me humilhou, cuspiu no chão da nossa sala como se eu tivesse trazido a vergonha pro sangue dele. Mas agora... ver ele assim... tão pequeno diante do mundo...
Eu podia simplesmente ir embora. Fingir que não vi. Que ele não existia mais pra mim, como ele quis que eu deixasse de existir pra ele. Mas não consegui. O que ele fez foi cruel, sim. Me jogou pra fora quando eu mais precisava. Mas fome... fome ninguém merece passar.
Esperei ele sair de perto da casa— o que não demorou —, ele foi andando lentamente, como se os próprios passos o doessem. A mulher ainda resmungava lá dentro, reclamando da vida e do homem que tinha dentro de casa. Tirei R$500 da minha pochete, dobrei o dinheiro e fui até a porta da casa. O coração batia forte, não de medo, mas de uma emoção esquisita que eu não soube nomear.
Ajoelhei e empurrei o dinheiro por baixo da porta. Bati com força duas vezes e saí correndo. Corri feito criança arteira fugindo depois de quebrar um vaso. Me escondi atrás do mesmo tronco de árvore onde estava antes, só que mais longe agora. Espiei.
A mulher abriu a porta devagar, com o cenho franzido. Olhou pros lados, não viu ninguém. Depois olhou pra baixo. Seus olhos se arregalaram, e ela pegou o dinheiro como quem pega ouro. Levantou o rosto pro céu, os braços também, e caiu de joelhos na porta de casa.
— Obrigada, meu Deus! Obrigada! — gritava, com a voz embargada, como se uma tempestade de fé tivesse tomado conta dela. — Eu sabia que o Senhor não ia me abandonar! Obrigada!
Ela chorava alto, soluçando, com o dinheiro apertado no peito, os olhos fechados e o rosto banhado de lágrimas.
Fiquei imóvel, assistindo àquela cena, com o peito ardendo de coisas que eu não sabia se eram boas ou ruins. Senti uma pontada estranha no fundo da alma. Talvez fosse o menino de antigamente querendo um pai. Talvez fosse só a dor de perceber que, mesmo depois de tudo, eu ainda não conseguia odiar completamente.
Meus passos foram diminuindo conforme me afastava do casebre. Ainda sentia o coração acelerado, não pela corrida, mas por tudo que tinha acabado de viver. A imagem daquela mulher ajoelhada, agradecendo a Deus com os braços erguidos, ainda estava viva nos meus olhos. O dinheiro que deixei foi mais por humanidade do que por qualquer outra coisa — ou talvez eu só estivesse tentando provar pra mim mesmo que sou melhor do que o homem que me criou.
Andei mais alguns minutos, até parar em frente a uma padaria de esquina. A vitrine estava acesa e o cheiro de pão quente escapava pelas frestas da porta. A respiração ainda vinha aos poucos, irregular. Me sentei num banco de cimento na calçada, tentando recuperar o fôlego — do corpo e da alma.
Foi então que senti um puxão no braço.
Me virei assustado.
— Ei! — exclamei, colocando a mão no peito, tentando entender de onde tinha surgido.
Diante de mim, uma menininha com olhos grandes e vivos me encarava. Usava roupas puídas, uma camiseta esgarçada que devia ter sido branca um dia, e um short que mais parecia uma peça de pano rasgado. Os cabelos castanhos estavam amarrados num rabo torto e os pés sujos, descalços, marcados de poeira. Apesar disso, havia algo encantador nela — como se a luz dela escapasse por entre as frestas da pobreza. Os olhos brilhavam com uma curiosidade aguda.
— Por que você deixou dinheiro pra minha mãe lá no casebre? — ela perguntou, direta, sem rodeios, como só as crianças sabem ser.
Senti o estômago gelar. Engoli em seco, sem saber o que dizer de imediato.
— Como... como você sabe que fui eu?
— Eu vi. Tava atrás da cortina. Você bateu e saiu correndo — ela deu um meio sorriso esperto. — Eu ia abrir, mas mamãe chegou antes.
A voz dela era firme, mas tinha um quê de inocência que me tocou fundo. Parei por uns segundos, encarando a menina. Ela parecia ter uns sete, oito anos. Tinha algo familiar ali... nos olhos, talvez.
— Como é seu nome? — perguntei, tentando manter a voz calma.
— Clara. E você?
— Pedro.
Ela se sentou do meu lado, como se fôssemos velhos conhecidos.
— Minha mãe ficou feliz de verdade. Disse que era um milagre. Mas eu achei estranho. Milagre de verdade não bate e sai correndo. Milagre espera.
Sorri de leve, surpreso com a maturidade dela. Senti um aperto ainda maior no peito. Olhei pra vitrine da padaria, depois de volta pra ela.
— Você já tomou café hoje?
Ela negou com a cabeça, mas sem reclamar, sem drama. Era só um fato.
— Vem. Vamos entrar. — Estendi a mão pra ela.
Clara hesitou por um segundo, talvez por costume, talvez por medo. Mas depois segurou minha mão com firmeza, e entramos juntos na padaria.
Pedi dois mistos quentes e um suco de laranja pra ela, um café pra mim. Sentamos na mesa do canto, longe do barulho da rua. Ela olhava tudo ao redor como se estivesse num palácio. Os olhos brilhavam diante das prateleiras de pães e bolos, mas mantinha uma postura contida, quase orgulhosa.
— Agora me conta, Clara... quem é seu pai?
Ela mordeu um pedaço do misto antes de responder. Depois mastigou devagar, tomou um gole do suco e disse, como quem conta o tempo:
— Meu pai se chama Gilberto. Mas ele não fica muito com a gente. Ele sai... muito. Mamãe briga com ele às vezes, diz que ele não presta. Mas eu gosto dele. Ele me dá balas de vez em quando.
Meus dedos congelaram em torno da xícara de café. Senti um calafrio subir pelas costas. A xícara tremeu levemente na minha mão.
— Gilberto? — repeti, quase sussurrando.
— Uhum. Ele mora com a gente, mas às vezes desaparece por dias. Às vezes volta fedendo a bebida, às vezes volta chorando. Mamãe grita, eu me escondo.
— E... quantos anos você tem, Clara?
— Oito. Vou fazer nove em setembro. Por quê?
Meu mundo girou.
Eu estava ali, sentado, tomando café com a minha irmã.
Minha irmã.
— Você conhece meu pai? — ela perguntou, com os olhos ainda mais atentos, curiosos, como se tivesse percebido algo.
Demorei a responder. Meus pensamentos estavam em turbilhão, tentando se organizar.
— Conheço... sim. — Respirei fundo. — Conheci ele muito tempo atrás.
— Ele era legal antes, sabia? Mamãe disse que ele era diferente, que era bravo, mas que fazia as coisas funcionarem. Agora ele só anda triste. Às vezes grita, chora. E quando vê dois homens se abraçando na rua, fica bravo, vira a cara. Não sei por quê.
Meus olhos começaram a arder. Aquilo me atingiu de forma quase cruel. Tudo que ele tinha reprimido, tudo que ele tinha odiado em mim... agora estava se voltando contra ele.
E essa menina... essa menina linda, esperta, de olhos vivos, era parte dele. Parte de mim também.
— Clara... você gostaria de ver mais vezes aquele moço que deixou o dinheiro lá?
— Você? — ela sorriu.
Assenti, tentando não tremer.
— Queria. Você é legal. E tem cheiro de sabonete bom.
Ri, mesmo com os olhos úmidos. Alcancei a mão dela sobre a mesa.
— Então, a gente pode ser amigos?
Ela segurou minha mão, pequena e firme.
— Pode sim, Pedro.
E naquele instante, mesmo sem dizer, eu soube: eu não ia mais deixar aquela menina passar fome. Mesmo que seu pai tivesse me virado as costas, mesmo que a dor ainda estivesse ali. Eu não ia repetir os erros dele.
Eu era outra coisa.
Eu era irmão.
O sol já estava começando a se instalar no céu com uma força irritante, e eu ainda estava sentado naquela mesma mesa da padaria, observando Clara terminar o último gole de suco como se fosse um prêmio. Meus pensamentos estavam a mil, tentando entender como o destino podia ser tão imprevisível — e cruel às vezes. A pequena Clara, minha irmã, surgiu como uma lembrança viva de tudo que tentei enterrar.
Peguei o celular e disquei o número de Camila.
Ela atendeu na terceira chamada, a voz ainda meio sonolenta.
— Pedro? Que foi? Aconteceu alguma coisa?
— Camila... desculpa ligar cedo assim. Eu vou atrasar pra abrir a sorveteria. Você pode abrir com o Wellington? É só por algumas horas, até Mateus chegar à tarde.
— Claro, sem problema. Tá tudo bem?
Olhei pra Clara. Ela me observava com um olhar esperto, desconfiado e doce ao mesmo tempo. Suspirei.
— Eu te explico depois. Obrigado, de verdade.
Desliguei e guardei o celular. Levantei devagar, deixando umas notas dobradas na mesa. Clara também se levantou, olhando pra mim com aquele olhar que dizia mais do que qualquer pergunta.
— Vem, vou te levar pra casa — falei com calma.
Clara parou por um segundo, os dedos apertando os meus com força. Eu vi o medo nos olhos dela. Mesmo assim, ela assentiu, silenciosa. Caminhamos pelas ruas até o casebre. A cada passo que eu dava, meu peito se apertava mais.
Clara subiu o pequeno degrau da entrada com passos miúdos. Quando ela empurrou a porta, a mulher surgiu quase que por mágica.
— MENINA?! Onde é que você tava, hein?! — Ela veio na direção de Clara como um raio, os cabelos desgrenhados, o vestido sujo e uma colher de pau na mão. — Tá maluca de sair por aí? Falar com estranho agora virou passatempo?!
Me meti na frente, tentando ser calmo.
— Calma. Eu só a trouxe de volta. E queria conversar.
A mulher me encarou como se fosse me devorar. Clara tentou explicar:
— Ele foi quem deixou o dinheiro, mãe. Aquele que você achou debaixo da porta…
Silêncio. Um silêncio pesado, denso. A mulher paralisou. Soltou devagar o braço da menina e me olhou como se tivesse vendo um fantasma.
— Foi você?
— Fui. — Falei firme, sem desviar o olhar. — E não quero nada em troca. Só quero conversar. Um minuto.
Ela me encarou com os olhos semicerrados, como se tentasse decifrar quem eu era. Bufou, largou a colher de pau na mesa e resmungou:
— Entra. Mas encosta a porta. Vai que eu me arrependo.
O cheiro lá dentro era forte — mofo, gordura e alguma coisa azeda que eu não queria identificar. Mas havia detalhes ali que me travaram por dentro: um pano de crochê em cima da mesa, brinquedos velhos num canto, um colchão esticado no chão. Não era só um buraco. Era a tentativa de um lar.
Eu respirei fundo, meu coração martelando.
— Meu nome é Pedro. E eu… eu acho que conheço o pai da Clara melhor do que você imagina.
Ela franziu o cenho. Arqueou uma sobrancelha.
— Você conhece o Gilberto?
— Conheço. — Suspirei. — Ele é meu pai também.
A reação dela foi um silêncio sepulcral. Nem piscava. Só ficou ali, parada, como se o cérebro dela tivesse congelado.
— Isso aqui vai dar confusão… — ela murmurou, quase pra si mesma.
Olhou pra Clara, que agora estava encolhida num canto, ouvindo tudo em silêncio.
— Então você é irmão dela?
Olhei pra Clara. E naquele instante, alguma coisa dentro de mim se quebrou e se refez ao mesmo tempo.
— Sou. E quero estar presente. Quero ajudar. Se você deixar.
Ela me olhou por um tempo que pareceu uma eternidade. Depois, soltou um suspiro longo e apoiou os cotovelos na mesa.
— Gilberto sempre disse que o filho viado tinha ido embora. E agora… o mundo resolve me devolver esse filho em forma de anjo da guarda.
Ela deu uma risada seca. Eu apenas sorri de canto, sem ironia nenhuma.
— Eu não quero brigar com ninguém. Só quero… cuidar. Nem que seja um pouco. Dessa menina aqui!
Ela olhou pra Clara, depois pra mim.
— Cuidar não é fácil, moço. Mas… se quiser tentar, eu deixo. Só não promete o que não pode cumprir.
Assenti, sentindo um nó se formar na garganta.
— Eu não prometo nada, só o que sei fazer: estar por perto.
Naquele instante, Clara se aproximou e encostou do meu lado, como se aquilo tudo fizesse sentido pra ela. E talvez… fizesse mesmo.
- Nem me apresentei! Sou a Jaci - Ela me encarou - Vem senta nessa cadeira!
(...)
Já tinha uns minutos que eu estava sentado naquela cadeira dura, com Clara no meu colo, quando criei coragem pra perguntar. Meu peito doía, minha garganta estava seca, mas precisava entender.
— O que… o que aconteceu com meu pai?
Jaci me olhou com os olhos vermelhos, inchados. Pela primeira vez, parecia não querer parecer forte. Ela respirou fundo, apoiou os cotovelos na mesa e passou as mãos pelo rosto, como quem tenta organizar os pensamentos.
— Depois que você sumiu… o Gilberto mudou. De um jeito que eu nunca tinha visto. — Ele me expulsou — Ele ficou amargo. Calado. Como se tivesse perdido alguma coisa que não sabia onde procurar.
Eu franzi o cenho, tentando acompanhar.
— E aí, depois… depois ele perdeu o irmão. O único que tinha - Até porque o filho ele simplesmente resolveu expulsar! Porque preferiu me ver na rua, do que ter um filho viado!
Ela olhou pro teto, como se precisasse de força pra continuar.
— O irmão dele era tudo, sabe? A única pessoa que ele ainda falava, que ainda o escutava. Depois da morte dele, Gilberto desabou. Desapareceu por dentro. Vendeu a casa onde morava. Disse que ia começar de novo. Mas o "novo" dele foi a bebida, os jogos ilegais… e esse buraco onde a gente vive agora.
Meu estômago virou. Era como ver uma versão apagada daquele homem que um dia foi meu pai. O homem duro, orgulhoso, que me botou pra fora como se eu fosse lixo. E agora… estava num barraco sujo, sugado pela própria dor.
Jaci baixou a cabeça, e pela primeira vez, deixou as lágrimas caírem sem vergonha.
— A gente se conheceu quando ele ainda trabalhava como pedreiro na cidade vizinha. Eu vendia salgado na obra. Ele me chamava de “baixinha arretada”. — Ela riu, entre soluços. — A gente se envolveu. Eu sabia que ele tinha um passado, um filho… Mas eu estava grávida, Pedro. Eu pensei que podia dar certo. Então vim morar com ele.
Clara olhou pra mim, confusa com a emoção da mãe. Eu apenas passei a mão devagar no cabelo dela, sem tirar os olhos de Jaci.
— No começo, ele tentava… Ele queria ser pai, eu acho. Mas quando o irmão morreu, ele quebrou. Começou a dizer que não tinha mais ninguém no mundo. Que todo mundo tinha virado as costas. — Ela respirou fundo, os olhos perdidos. — Eu tentei, Pedro. Eu juro. Mas ele virou outra pessoa. Já me bateu. Já sumiu por dias. Já levou coisa da nossa casa pra trocar por bebida. A essa altura… eu já nem sei se ele lembra quem foi um dia.
Meu coração doía. Mas doía mesmo. Porque por mais que eu quisesse odiar o Gilberto, tudo o que eu sentia agora era uma dor funda por um homem perdido. Um homem que tinha enterrado a própria alma com o irmão… e talvez, comigo também.
— Ele dizia que tava sozinho no mundo — ela repetiu, limpando o rosto. — E eu gritava que não. Que tinha eu, tinha Clara. Mas ele… não ouvia mais ninguém.
Olhei pra Clara, tão pequena, tão cheia de silêncio nos olhos. Pensei em tudo o que poderia ter sido diferente. Em tudo o que ainda podia ser.
— Eu não sei se ele vai aceitar ajuda — murmurei. — Mas eu vou tentar.
Jaci me olhou por um tempo, como se avaliasse minhas palavras. Então apenas assentiu, com os olhos ainda molhados.
— Ele precisa de alguém, Pedro. Mesmo que não mereça mais. Mesmo que ache que não precisa.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Clara já começava a cochilar no meu colo, a cabecinha apoiada no meu ombro. Jaci me olhava como se esperasse algo — talvez uma promessa, uma solução, um milagre. Mas eu não podia fazer tudo de uma vez. Eu precisava ser estratégico, precisava ser firme… e verdadeiro comigo mesmo.
— Jaci… — comecei, com a voz baixa. — Eu vou ajudar vocês. Mas tem uma coisa que você precisa saber.
Ela me encarou, confusa. Eu inspirei fundo e continuei:
— Eu não quero que o Gilberto saiba quem eu sou. Pelo menos, não agora. Talvez nunca. Ele me machucou muito… me expulsou de casa como se eu fosse nada. E por mais que eu esteja tentando entender tudo, ainda dói. Dói como se fosse ontem.
As palavras saíam com esforço, mas eram sinceras.
— Eu vou ajudar de longe. Quero contratar alguém de confiança, alguém pra conversar com ele… tentar trazer ele de volta pra si, se é que isso ainda é possível. Mas não quero que ele me veja. Não quero que ele saiba que é o filho gay que ele jogou no mundo quem vai estender a mão agora.
Jaci assentiu devagar, com um olhar compreensivo.
— Eu entendo, Pedro… E respeito.
— Mas tem uma coisa que não pode esperar — continuei, olhando ao redor daquele lugar caindo aos pedaços. — Vocês duas. Eu não vou deixar vocês aqui. Esse casebre não é lugar pra ninguém, muito menos pra uma criança. Vou resolver isso com urgência. Arrumar um lugar decente pra vocês morarem. Com comida, com cama de verdade, com dignidade.
Ela não disse nada. Só chorou em silêncio, mas dessa vez era um choro diferente. Um alívio, talvez. Um começo.
Pegamos os celulares e trocamos número de WhatsApp. Prometi mandar notícias ainda naquele dia.
Dei um beijo de despedida na testa da Clara e saí do barraco com o coração acelerado, mas os passos leves. Caminhava como se estivesse flutuando. Como se, mesmo carregado de lembranças e feridas, eu tivesse encontrado um caminho novo — um que me permitia seguir em frente, sem apagar o passado, mas sem deixar que ele me engolisse.
Caminhei por ruas calmas, sem pressa. Passei pela praça, pelos muros rabiscados da cidade que eu aprendi a odiar… e que agora, aos poucos, me forçava a encarar o espelho.
Quando cheguei em casa, tudo parecia quieto demais. Como se o mundo estivesse esperando meu próximo passo.
Entrei, fechei a porta devagar, fui direto pro banheiro. Liguei o chuveiro, deixei a água cair, mas não entrei. Encostei as costas na parede fria e deslizei até o chão. E então, desabei.
Chorei. Chorei como se estivesse sangrando por dentro. Chorei por aquele menino que foi jogado pra fora de casa com uma mochila nas costas e um coração estraçalhado. Chorei por ter reencontrado mais uma vez meu pai e não ter sentido nada além de dor. Chorei pela saudade do que poderia ter sido… por não ter tido um lar de verdade
Os soluços vinham em ondas. A água do chuveiro caía ao fundo, abafando os sons da minha dor. Era como se cada lágrima lavasse uma camada de rancor, de mágoa, de tristeza guardada por anos.
Mas no meio daquele choro todo… havia também uma semente. Algo nascendo. Uma chance. Um novo capítulo.
E, mesmo entre lágrimas, eu sabia: eu não ia repetir os erros dele. Eu seria melhor.
Por mim, por Clara, por tudo o que ainda podia ser.
Continua...
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