Já fazia uma semana desde que tudo começara a se encaixar como eu queria. A rotina da cidadezinha seguia no mesmo ritmo preguiçoso de sempre, mas, por trás dos bastidores, muita coisa havia mudado. Clara e Jaci finalmente haviam se mudado para a casa nova, aquela que comprei e coloquei no nome de Clara. Quis garantir que independente do que acontecesse, ela teria um lar. Foi uma manhã tranquila, quase simbólica. Jaci carregava caixas com uma serenidade rara, e Clara explorava cada cômodo como se descobrisse um mundo novo.
Jaci me agradeceu com os olhos. Disse que confiava em mim, que fizesse o necessário. E eu fiz.
Naquela mesma semana, com tudo se encaixando, fui até onde precisava ir. Por baixo dos panos, paguei uma boa quantia para uma clínica de reabilitação particular em outro estado. Consegui também um psiquiatra — indicação precisa de um dos meus contatos — que topou emitir um laudo dizendo que meu pai estava fora de suas faculdades mentais. O documento apontava para delírios, agressividade e risco iminente. Nada tão distante da realidade, mas apresentado com o peso certo para justificar a internação forçada.
Ele agora está internado, longe daqui, numa ala isolada. Jaci sabe disso. Sabe que ele está numa clínica distante e que, por enquanto, não é era possível visitá-lo. Ela não perguntou muito. Só disse, com a voz embargada: “Se era o que precisava ser feito… então tá certo. Preciso que minha filha se sinta segura e que continue tendo um pai...mesmo distante...mas vivo.”
Enquanto isso, Flávio tinha viajado para São Paulo para resolver questões com seus fornecedores. Ele não disse exatamente quando voltaria, e a ausência dele trouxe um estranho silêncio para os corredores da cidade. Um silêncio que me dava mais espaço para agir sem levantar suspeitas.
Arthur, por outro lado, parecia cada vez mais presente. Não sei se era coincidência ou estratégia, mas ele se aproximava um pouco mais a cada dia. Almoços casuais, conversas mais longas, piadas que vinham com um toque de intimidade. E eu deixava. Era bom observar de perto quem um dia esteve do outro lado.
Agora, com meu pai fora de cena, Clara segura, Jaci confiando em mim e Arthur se aproximando mais a cada passo, o jogo começava a mudar. E eu estava exatamente onde queria estar: no centro de tudo.
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O céu ainda estava cinza quando sair. A cidadezinha dormia, e só o som dos meus tênis contra o asfalto e minha respiração firme cortavam o silêncio. Eu já estava me aquecendo perto da praça quando vi Arthur chegando. Camiseta colada no peito, aquele sorriso fácil no rosto e os olhos brilhando mais do que deviam para o horário.
— Bom dia, dorminhoco — ele disse, abrindo os braços antes mesmo de parar de correr. Me abraçou com força, o corpo quente colado ao meu, como se aquele gesto fosse a coisa mais natural do mundo.
Essa mania de Arthur me abraçar estava cada vez mais frequente. Cada vez mais intensa. E depois de tudo… depois daquilo que aconteceu na grama da praça, era impossível fingir que nada havia mudado.
Desde o dia em que me ajoelhei diante dele, no meio da noite, escondidos pela escuridão e pelo silêncio da cidade, não trocamos uma palavra sobre aquilo. Nenhuma referência, nenhum sinal de que lembrava. Mas eu lembrava. Cada detalhe. E o silêncio dele me corroía por dentro.
Corremos por alguns minutos, lado a lado, em um silêncio carregado de coisas não ditas. Até que eu não aguentei mais.
Puxei Arthur pelo braço e o levei para um canto mais escondido da trilha, sob a sombra espessa de uma árvore antiga. O empurrei com firmeza contra o tronco, meu corpo colado ao dele. Nossos olhos se encontraram, e o ar entre nós pareceu eletrificado.
Arthur não hesitou. Me agarrou pela nuca, colou os lábios nos meus e me beijou com uma urgência abafada. Sua mão apertava minha cintura com força, e a excitação dele era clara, pressionada contra meu corpo. Aquilo me fez estremecer.
Foi a primeira vez que Arthur me beijou. Sem rodeios, sem impulsos unilaterais, sem hesitar.
Na hora, minha barriga formigou. Um calor subiu no peito, invadiu minha garganta, e por um instante me faltou ar. Era como se tudo dentro de mim estivesse em conflito… e, ao mesmo tempo, em paz. Uma estranha mistura de confronto e tranquilidade. Como se eu finalmente tivesse alcançado algo que vinha buscando havia muito tempo, mas ao mesmo tempo não soubesse o que fazer com aquilo agora que estava nas minhas mãos.
Aquele beijo bagunçou tudo. E ao mesmo tempo, silenciosamente, colocou tudo no lugar.
Afastei o rosto, respiração entrecortada, e encarei ele nos olhos.
— O que você sente por mim, Arthur? — soltei, direto, a voz mais firme do que eu esperava.
O silêncio depois da minha pergunta era quase cruel. A brisa da manhã soprava leve entre as árvores da praça, mas dentro de mim tudo estava em ebulição. O beijo ainda ardia nos meus lábios. O corpo de Arthur ainda colado no meu, a respiração dele entrecortada, quente. Cada segundo parecia me despir por dentro.
Ele me olhou como se procurasse as palavras no chão ou no céu, qualquer lugar onde pudesse encontrar alguma ordem para o que estava sentindo.
— Eu… — começou ele, passando a mão nos próprios cabelos, nervoso — eu não sei o que eu sinto ao certo, Pedro, minha cabeça é uma loucura — ele continuou, mais firme. — Tem dias que acordo certo de uma coisa, e no outro, tudo vira de cabeça pra baixo. Você apareceu no meio disso tudo. E… tudo com você é muito novo. Muito louco.
Eu fiquei calado, ouvindo, tentando não demonstrar a confusão que crescia em mim.
— Mas tem uma coisa que eu sei — ele disse, dando um passo à frente. — Eu gosto de você. Gosto da sua presença, da sua voz… da paz que você me traz. Quando você tá perto, parece que tudo desacelera um pouco, sabe? Como se o mundo ficasse menos pesado.
Arthur me encarou com uma intensidade que fez meu estômago revirar. E então ele completou, num tom mais calmo, mais íntimo:
— Eu quero descobrir o que é isso que eu sinto por você. Quero entender. E, se for o que eu tô achando que é… quero que cresça. Que se torne sólido.
Fiquei em silêncio por um instante. Aquilo era muito mais do que eu esperava ouvir. Não era a resposta perfeita, nem uma promessa romântica de filme, mas era real. Era cru. Era Arthur abrindo uma parte dele que eu suspeitava que nem ele sabia que existia.
— Então tá bom — falei, minha voz saindo mais baixa, quase suave. — Aos poucos, a gente vai entendendo. O que tiver que crescer, vai crescer. No tempo certo.
Ele sorriu de leve. Um sorriso que não era de certeza, mas de alívio. Me puxou de novo para um abraço, e eu senti o coração dele acelerado contra meu peito. Ficamos ali por alguns segundos, talvez minutos, que pareceram mais longos do que qualquer conversa.
Mas dentro de mim, apesar do calor do toque, do nó gostoso que o carinho dele causava, outra coisa começava a tomar forma. Uma sombra por trás do sentimento. Um sussurro mais frio no meio da euforia.
Agora que Arthur estava, de certa forma, nas minhas mãos… agora que ele começava a se abrir, a confiar, a gostar…
Talvez fosse a hora de escolher a vingança certa pra ele.
E o mais estranho era isso: uma parte de mim não sabia mais o que era sentimento genuíno e o que era estratégia. Talvez as duas coisas já tivessem se misturado.
Depois do beijo e da conversa, seguimos correndo lado a lado, como se aquele momento íntimo tivesse sido apenas mais um passo na rotina — mas não era. O silêncio entre nós agora tinha outro peso, mais leve, mais confortável. Nenhum de nós precisava falar. Nossos corpos pareciam se comunicar no compasso da corrida, no som das passadas sincronizadas, no fôlego ritmado que compartilhávamos.
Corremos por mais vinte minutos pela praça, contornando árvores, passando por bancos vazios e pela fonte desativada no centro. O sol começava a subir no céu, aquecendo a manhã devagar, iluminando os fios dourados do cabelo de Arthur, que balançavam com o vento. Eu olhava de canto às vezes, e me sentia puxado por algo que não sabia nomear.
Quando paramos, suados e ofegantes, nos encaramos por um instante. Arthur tinha um sorriso meio torto, o rosto corado, as mãos apoiadas nos joelhos.
— Valeu por hoje — ele disse, respirando fundo. — Me fez bem correr contigo.
Eu apenas assenti, ainda com o coração disparado — e não só por causa do exercício. Ele deu dois passos em minha direção, como quem ainda tinha algo a dizer… e então, sem avisar, me puxou com um gesto suave, íntimo, e encostou os lábios nos meus num selinho calmo, quase inocente, mas cheio de algo que ele ainda não sabia nomear.
— Até mais, Pedro — sussurrou, antes de virar as costas e começar a caminhar devagar na direção oposta.
Fiquei parado por alguns segundos, sentindo o gosto dele ainda ali, e um sorriso involuntário escapou dos meus lábios.
Mas logo veio o pensamento que me cortou por dentro como uma lâmina fria:
**"Não caia nessa, Pedro. Você só tá fazendo tudo isso pra se vingar dele."**
Aquela frase martelou na minha mente, como se fosse uma defesa automática, uma lembrança do plano. Do que ele fez no passado. Do porquê de tudo ter começado. Não podia esquecer. Não agora.
Sacudi a cabeça, limpando o suor da testa, e peguei o caminho até a casa da Clara. Era hora de tomar café com ela e com Jaci — algo que eu vinha fazendo com certa frequência desde que elas se mudaram.
A casa era muito charmosa. A pintura nova ainda tinha cheiro de tinta em alguns cômodos. A fachada tinha flores recém-plantadas por Jaci, e Clara deixava seus brinquedos espalhados pelo jardim como se já sentisse que aquele era o lugar dela no mundo.
Bati na porta duas vezes, mas antes que Jaci pudesse atender, Clara correu até mim, descalça, com o cabelo bagunçado e o pijama rosa cheio de corações.
— Pedrôôô! — gritou, abrindo os braços.
Me abaixei no mesmo instante e a abracei apertado, sentindo o cheirinho adocicado do shampoo infantil dela.
— Tava com saudade, sabia? — ela disse, me apertando o pescoço com força.
— Também tava, minha pequena — respondi com um sorriso real, cheio de afeto. — Você tá cada dia mais linda.
Ela deu uma risadinha tímida e me puxou pela mão.
— Vem! Minha mãe fez pão de queijo!
Entrei na casa e encontrei Jaci na cozinha, de avental, colocando a mesa. Ela sorriu ao me ver e fez sinal para eu me sentar.
— Chegou bem na hora — disse, servindo café numa xícara. — E então, como foi a corrida?
— Boa. Foi… produtiva — respondi, tentando esconder o turbilhão que ainda borbulhava dentro de mim.
Nos sentamos e começamos a comer. Clara tagarelava sobre a escola, sobre a professora nova, e mostrava orgulhosa um desenho que fez de nós três: eu, ela e Jaci, de mãos dadas. Meus olhos quase marejaram. Às vezes era difícil lembrar por que eu era tão frio com o mundo quando tinha uma irmã como ela.
Mas mesmo ali, entre o cheiro de café fresco e pão quente, com Jaci sorrindo e Clara rindo com a boca cheia, eu não conseguia tirar Arthur da cabeça.
O selinho. A confissão. O jeito como ele me olhou antes de partir.
E a minha própria resposta interna: a voz fria e implacável que me lembrava que tudo aquilo fazia parte de algo maior.
Eu queria me entregar? Queria esquecer? Talvez.
Mas ainda não. Ainda não era hora.
A vingança certa pra Arthur estava sendo costurada com calma. E quanto mais ele se aproximava… mais frágil ele se tornava nas minhas mãos.
E era ali, naquela fragilidade, que eu teria o poder de fazer ele sentir… tudo que eu senti.
— Pedrô… — a voz de Clara me puxou de volta pra realidade, doce e leve como o vapor do café que ainda subia da caneca. — Eu tenho que me arrumar pra escola! Você me leva?
Pisquei algumas vezes, como se estivesse saindo de um sonho. Me ajeitei na cadeira e olhei pra ela, que já segurava o tênis com um dos cadarços na boca, tentando colocar com pressa.
— Claro que levo, pequena. Vai terminar de se arrumar que eu te espero — respondi com um sorriso, tocando de leve sua cabeça.
Ela saiu correndo, os pezinhos descalços batendo no chão da casa com aquele som apressado e familiar. Jaci riu, terminando de lavar uma xícara, e comentou:
— Ela adora quando você leva ela. Fica toda boba!
Eu apenas sorri, mas por dentro sentia algo mais forte. Era bom ter aquela conexão com Clara. Talvez fosse uma das poucas coisas puras que ainda me restavam.
Poucos minutos depois, ela voltou com o uniforme azul e branco, a mochila pendurada de um lado só e os cabelos presos num rabo de cavalo meio torto.
— Tô pronta! — anunciou, animada.
Saímos da casa caminhando lado a lado. A escola ficava a cerca de quatro quadras dali, e o sol já começava a bater com mais força. Clara dava pulinhos de vez em quando, chutando pedrinhas no caminho. Mas logo seu tom mudou.
— Pedro… — ela disse, com a voz mais baixa. — Eu ainda não fiz nenhuma amiga lá.
Olhei pra ela de lado. Seus olhos estavam fixos no chão. Um tipo de tristeza contida, de criança que tenta parecer forte.
— Mas você é tão legal. Tão esperta. Tenho certeza que isso vai mudar logo — falei, tentando trazer leveza.
Ela deu de ombros.
— É que eu sou nova. As meninas já têm seus grupinhos, sabe? E às vezes eu fico só, desenhando, fingindo que não ligo. Mas eu ligo um pouco…
Suspirei e parei de andar por um instante, me abaixando até ficar na altura dela.
— Escuta uma coisa, Clara. Você é uma das pessoas mais especiais que eu conheço. Tem um coração lindo, é gentil, e mesmo quando tá triste, consegue sorrir. As amizades certas vão chegar, mas elas vêm devagar… igual sementinha que a gente planta. Elas precisam de tempo pra crescer.
Ela franziu as sobrancelhas, como se estivesse absorvendo cada palavra. Depois sorriu, meio tímida.
— Tipo flor?
— Isso. E quando elas desabrocharem, você vai ver que valeu a pena esperar.
Seguimos o caminho, e dessa vez ela foi mais leve. Perto da escola, vimos outras crianças entrando pelo portão. Clara apertou minha mão antes de soltar.
— Obrigada por me trazer hoje — disse, com os olhos brilhando.
— Sempre que quiser. Vai lá, pequena flor. Vai crescer e mostrar o quanto você pode iluminar esse jardim aí — respondi, piscando pra ela.
Ela riu e correu. Ficou olhando pra mim uma última vez antes de entrar, e eu fiquei parado ali por alguns segundos, sentindo um calor diferente no peito. Uma mistura de amor, orgulho… e talvez um fio de esperança, mesmo no meio de toda escuridão que eu carregava.
Cheguei em casa ainda com a imagem de Clara me dando tchau na cabeça. A leveza daquele momento contrastava com tudo que andava fervendo dentro de mim — Arthur, a vingança, as lembranças do passado. Tudo parecia rodopiar em volta da minha mente como vento em dia de tempestade.
Entrei no banheiro e deixei a água quente do chuveiro cair sobre meu corpo. Queria que aquele banho lavasse um pouco das dúvidas, mas só ajudou a me sentir mais desperto. Me enxuguei com calma, vesti uma camiseta preta justa, calça jeans escura e, como sempre, finalizei com minha jaqueta favorita.
Aproveitei pra pegar uma peça de roupa extra, pois iria treinar hoje! Já tinha faltado algumas vezes, mas hoje eu iria!
Antes de sair, parei no espelho e encarei meu próprio reflexo. "Não perde o foco", pensei. Peguei as chaves da moto, coloquei o capacete e saí em direção à sorveteria.
O vento cortando meu rosto era uma das poucas sensações que me traziam alguma paz. Quando cheguei, estacionei a moto ao lado da entrada e já avistei Wellington atrás do balcão, com Mateus mais ao fundo organizando o freezer de picolés.
— Bom dia, chefe! — disse Wellington com um sorriso de orelha a orelha, os olhos brilhando como se tivesse ganhado na loteria.
— Tá animado hoje, hein? — comentei, entrando e tirando o capacete.
Mateus levantou os olhos e acenou com um leve "bom dia", voltando logo ao que fazia. Já Wellington quase pulava no lugar, com uma energia que me deu até desconfiança.
— O que houve? Ganhou na mega sena e eu não tô sabendo?
Wellington se aproximou e, baixando um pouco a voz, falou com um sorrisinho cheio de intenção:
— Eu e o Mat nos acertamos. Depois de tantas brigas, conversamos direitinho e, sei lá… parece que agora vai, sabe?
Arqueei uma sobrancelha, fingindo surpresa. Aquilo sim era digno de atenção.
— Jura? E você resolveu confiar nele de novo depois de tudo?
— Sim… A gente falou de tudo. Até das vezes que ele me traiu — Wellington falou com naturalidade, como se fosse só mais um detalhe.
Eu sorri, venenoso, me aproximando um pouco mais.
— Não tem medo dele te trair novamente?
Wellington riu de canto e assentiu, como se aquilo fosse passado superado.
— Olha… a gente tá tentando algo diferente agora. Estamos mais abertos. Inclusive, estamos saindo com outros casais. Trocando experiências, sabe?
Senti meu rosto travar por dois segundos. Meu cérebro demorou um instante pra processar o que ele tinha acabado de dizer.
— Vocês… o quê? — perguntei, em choque.
— É… a gente resolveu testar umas coisinhas novas. Tipo… swing, essas paradas. E tem sido bom, viu? Liberta. A gente se entende melhor agora. Tem menos ciúme e mais diálogo. — Ele deu um sorrisinho maroto e piscou. — Mas fica entre nós, viu?
Antes que eu pudesse responder, um casal entrou na sorveteria, e Wellington se afastou rapidamente com um "já te atendo!". Fiquei ali parado por uns segundos, meio sem saber se ria, se me chocava ou se tomava uma bola de sorvete só pra esfriar a mente.
Voltei meu olhar pra Mateus, que seguia agindo como se nada tivesse acontecido.
Talvez todo mundo estivesse vivendo loucuras às claras… e eu, tentando manipular sentimentos nas sombras.
Depois de deixar tudo organizado na sorveteria, dei um último olhar no movimento e me certifiquei de que Wellington e Mateus dariam conta por algumas horas. Eu precisava treinar. Precisava descarregar tudo que fervia dentro de mim.
Subi na moto com a tensão presa nos ombros. O dia estava abafado, o céu nublado como se ameaçasse uma tempestade, mas eu nem ligava. A academia era o lugar onde eu moldava meu corpo — e a raiva — em algo sólido.
Estacionei, subi os degraus e estranhei o silêncio assim que entrei. A academia estava vazia, o som dos pesos metálicos, das conversas abafadas e da música eletrônica ambiente simplesmente não existia. Só o eco dos meus passos no chão encerado.
— Até que enfim resolveu aparecer, hein? — A voz veio firme e familiar, carregada de ironia. — Vai querer resultado como se tivesse vindo todo dia, é?
Era ele. Thales.
Forjei um sorriso leve.
— Problemas na rotina. Mas tô aqui agora, não tô?
— Isso aqui não é salão de beleza pra vir quando quiser — ele disse, pegando uma toalha no ombro e jogando em cima de um banco. — Hoje vai ralar.
Assenti em silêncio. A ideia era exatamente essa: me exaurir. Fomos para a área de musculação, e ele montou uma sequência intensa. Supino, agachamento, remada curvada. Thales me observava com aqueles olhos atentos demais. Como se quisesse me desmontar por dentro enquanto fingia se importar com o ângulo do meu cotovelo.
Quando a terceira série começou a me vencer, ele apareceu ao meu lado com uma garrafinha.
— Toma. Bebe um pouco, senão vai desmaiar aqui.
Aceitei sem pensar muito. A água tava levemente gelada e desceu bem. Continuei o treino, mas algo começou a acontecer. Uma leve pressão atrás dos olhos, o som da academia parecia mais distante. Pisquei forte, tentando clarear a visão, mas tudo parecia... girar.
— Pedro? — ouvi a voz de Thales soar diferente, mais próxima e preocupada. — Você tá bem?
— Acho que... — Tentei falar, mas as palavras saíram arrastadas. — Tá tudo meio estranho.
— Deve ser queda de pressão. Vem, vamos sair um pouco, pegar ar fresco.
Ele passou o braço em volta do meu ombro e me guiou pra fora da academia. O ar quente da rua bateu no meu rosto, mas não ajudou. A tontura piorava, meu corpo começou a pesar, as pernas falhavam. Tentei focar em algo, qualquer coisa, mas tudo escureceu num segundo.
E então… tudo apagouA primeira coisa que senti foi o gosto amargo na boca. A cabeça latejava, como se eu tivesse sido atropelado por um caminhão e depois jogado contra uma parede. Pisquei os olhos devagar, mas a claridade fraca e amarelada do ambiente me fez fechar de novo por reflexo.
Tentei mexer meus braços, e após um puxão firme percebi que eles estavam presos. As pernas também. Cordas ásperas me seguravam numa cadeira metálica, fria e desconfortável.
Demorei alguns segundos pra entender onde eu estava. O lugar era escuro, mal iluminado por uma lâmpada pendurada no teto que oscilava levemente, lançando sombras nas paredes descascadas. O cheiro era de mofo, poeira e um leve toque de ferrugem. O chão de cimento estava sujo, e cada detalhe gritava abandono.
Tentei forçar as cordas, mas só consegui machucar ainda mais os pulsos. O pânico começou a subir, mas mantive a respiração controlada. Não era hora de surtar.
Passos ecoaram no fundo da sala.
Devagar. Precisos.
E então, a voz dele.
— Acordou, viadinho?
Thales surgiu da escuridão, com os braços cruzados, os olhos semicerrados e um sorriso torto nos lábios. Mas não era o sorriso provocador que eu lembrava dos tempos de academia. Era um sorriso carregado de rancor.
— Agora você vai me explicar, viadinho, o porquê de ter voltado pra essa cidade. — Ele se aproximou mais, com o rosto tenso. — Gostou de me fazer de otário durante esse tempo todo?
Continua...
Fim de temporada!
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