Fazia um tempo danado que Antônia e Geraldo estavam amarrados no laço do casamento, um nó cego que ninguém desatava. O encanto? Esse já tinha virado fumaça há muito, perdido nos desvãos da rotina. Amavam-se? Ora, nem de longe. Era mais um costume sujo, um estar junto por teimosia, por preguiça de desmanchar o que já estava torto.
Antônia não era um caso perdido na beleza, isso não. Tinha seus encantos, mas o tempo, esse canalha, foi esculpindo rugas no rosto dela, jogando uma gordurinha aqui, outra ali, como quem espalha migalhas num chão sujo. Alta não era, e os cabelos, nem curtos nem compridos, pendiam sem vontade. No espelho da alma, ela se via assim: sem sal, sem graça, uma mulher que não virava cabeça na rua.
E Geraldo, esse não ajudava nem um pouco. O homem tinha largado o hábito de jogar um elogio, nem que fosse de esmola. Frustrado até o osso, vivia com o bolso vazio, o sucesso minguado e a ignorância transbordando. Era um tipo bruto, desses que carregam o mundo nas costas e descontam em quem tá por perto.
— Vai lá, Velha!
— Tá cada vez mais gorda, hein?
Ele mandava em tudo, como um rei de araque num reino de lata. O dinheiro, as compras, a casa, as visitas, os amigos — tudo passava pelo crivo dele, um tirano de chinelo. Antônia era só a sombra que arrastava os pés atrás daquele macho desgraçado.
Teve um dia, porém, que ela resolveu dar um jeito na carcaça. Era pra ir à feira, coisa simples, mas caprichou um tiquinho no cabelo, passou um batom velho que achou na gaveta. E, num rompante que ninguém sabe de onde veio — talvez um fiapo de juventude que ainda teimava em pulsar —, virou pro Geraldo com um sorriso meio bobo, quase menina:
— Tô tão bonita. Não quer vir comigo? Vai que alguém mexe comigo na rua.
Ele, que estava largado no sofá como um porco no chiqueiro, nem levantou os olhos. Deu uma risada seca, daquelas que cortam mais que faca:
— E quem vai te querer, sua tonta? Nunca vais arrumar nada.
Antônia engoliu o gracejo junto com o resto de esperança. O sorriso morreu na boca, e ela saiu pra feira sozinha, carregando o peso de ser ninguém no mundo de Geraldo.
Mas o destino, esse cínico que gosta de brincar com as peças do tabuleiro, resolveu mexer no passado de Antônia naquele dia abençoado. Lá estava ela, na feira, espremida entre os cheiros de tomate maduro e manjericão, escolhendo legumes com a mão calejada, quando o viu: Camilo. O primeiro namorado, o primeiro homem, o primeiro tudo. Aquele que um dia tinha sido dela, até que a vida o levou pra longe, pra outro estado, e o namoro, frágil como teia de aranha, se partiu na distância. Antônia não sentia falta dele, não mesmo. Era um capítulo fechado, empoeirado na estante da memória. Mas naquele instante, o coração, esse traidor, deu uma aquecida súbita, como brasa que alguém sopra por descuido.
Veio tudo de uma vez: as palavras doces que ele sussurrava no ouvido dela, os gestos de um romantismo que hoje soava quase ridículo, e as noites suadas no banco de trás daquele carro velho, onde ela, trêmula e curiosa, tinha deixado a virgindade pra trás. Camilo não era mais o garoto de antes — o tempo também tinha passado o rodo nele, deixando uns fios brancos no cabelo e um jeito mais cansado no olhar. Mas ainda tinha aquele sorriso torto, aquele ar de quem sabia encantar sem esforço.
Eles se olharam, parados entre as barracas, como se o mundo tivesse dado uma pausa pra assistir.
— Antônia? É você mesmo? — ele disse, a voz meio rouca, meio surpresa, enquanto largava uma batata de volta na banca.
— Camilo... Quanto tempo, meu Deus — ela respondeu, sentindo a boca seca, o coração batendo em lugar errado.
Trocaram palavras de afeto, dessas que saem tímidas no começo, mas vão ganhando calor.
— Você tá igualzinha, sabia? — ele mentiu, galanteador como sempre, e ela riu, um riso curto, quase envergonhado.
— Mentiroso. O tempo não perdoa ninguém — retrucou, mas os olhos brilharam, porque fazia anos que ninguém jogava um elogio pra ela, nem de brincadeira.
Ficaram ali, remexendo as lembranças, rindo das bobagens de juventude. Ele perguntou da vida dela, ela desconversou, não quis falar do Geraldo, daquele peso que carregava em casa. Camilo contou que voltara pra cidade fazia pouco, que agora estava sozinho, que a vida tinha dado umas voltas esquisitas. O ar entre eles ficou denso, cheio de coisas não ditas, mas sentidas.
Antes de se despedirem, Antônia, num ímpeto que nem ela sabia de onde vinha, deixou escapar:
— Olha, Camilo, se um dia você quiser tomar um café... eu passo por aqui toda quarta. Quem sabe a gente se esbarra de novo, né?
Ele sorriu, aquele sorriso que um dia tinha sido dela, e assentiu.
— Quem sabe, Antônia. Quem sabe.
E ela virou as costas, com os legumes na sacola e um fogo novo queimando no peito, um fogo que o Geraldo, coitado, nunca ia entender.
Depois daquele dia na feira, algo se acendeu em Antônia, uma chama que ela nem sabia que ainda carregava nas cinzas do peito. Ela passou a se arrumar com um capricho que tinha esquecido, redescobrindo aquele dom secreto que toda mulher guarda, aquela alquimia de se fazer bonita com o que tem. Era um batom mais vivo, um vestido que abraçava o corpo sem vergonha, um jeito novo de pentear o cabelo. Tornava-se, aos poucos, uma Antônia que ela mesma mal reconhecia no espelho — e que gostava de ver.
Geraldo, esse bruto, notava? Nada. Não abria a boca pra um elogio, nem pra um muxoxo. As roupas novas que ela comprava com o dinheiro suado, a maquiagem que agora desenhava os olhos dela, as idas ao salão toda semana pra fazer unha e cabelo — tudo passava batido por aquele homem cego de alma. Um dia, antes de sair pro trabalho, ele viu um conjunto novo de calcinha e sutiã estendido na cama, daqueles de renda barata mas cheios de intenção. Deu um risinho torpe, um grunhido de desprezo, e bateu a porta atrás de si. Era como se Antônia fosse um móvel velho da casa, que a gente não repara até quebrar de vez.
Muito menos ele desconfiava que toda quarta à tarde ela ia pra feira, variando o horário como quem joga na loteria, até que o destino, esse canalha esperto, acertou os ponteiros. Lá estava Camilo de novo, entre as barracas de cebola e alface, com aquele sorriso que parecia saber mais do que dizia.
O segundo encontro não teve o susto do primeiro. Foi quase natural, como se os anos não tivessem passado tão pesados assim. Antônia chegou com um vestido simples mas bem cortado, o cabelo solto com um brilho que o salão tinha garantido. Camilo, de camisa aberta no peito e um jeito descontraído, segurava uma sacola de frutas e um olhar que não disfarçava o agrado.
— Veio mesmo, hein? — ele disse, com um tom de quem ganha uma aposta consigo mesmo.
— Claro. Eu disse que passo por aqui toda quarta, não disse? — ela respondeu, jogando um sorriso que tinha ensaiado no espelho de casa.
Falaram da vida, das bobagens do passado, das coisas que o tempo tinha mudado. Ele contou que agora trabalhava numa oficina, consertando motores, e que gostava da solidão que a cidade pequena dava. Ela riu, falou das frutas que gostava de comprar, mas deixou o Geraldo fora da conversa, como se ele fosse um detalhe sujo que não valia a pena varrer pra debaixo do tapete.
O sol já ia caindk quando Camilo, coçando a nuca, arriscou:
— Você tá diferente, Antônia. Mais viva, sabe?
Ela sentiu o sangue subir às bochechas, mas segurou o olhar dele.
— É o que um pouco de cuidado faz, né? Alguém tem que reparar na gente de vez em quando.
Ele riu, e o ar entre eles ficou quente, carregado de uma promessa que nenhum dos dois dizia em voz alta. Antes de se despedirem, Antônia, com o coração batendo na garganta, deixou escapar:
— Olha, Camilo, se você quiser... vamos lá em casa. Tomar um café, conversar mais. Geraldo sai cedo pro trabalho, e volta tarde, a casa fica só minha.
Ele ergueu uma sobrancelha, o sorriso abrindo devagar.
— Café, é? Pode ser.
Ela assentiu, virou as costas com a sacola de legumes na mão e um frio na barriga que não sentia desde menina. Sabia que estava pisando num terreno perigoso, mas, pela primeira vez em anos, não queria dar meia-volta. E Csmilo foi atrás dela.
Camilo seguia um passo atrás, um caçador disfarçado no meio da rua, enquanto Antônia abria caminho com aquele ar de quem não sabe de nada. Mas ambos sabiam, ô se sabiam, o que estava pra explodir entre eles. Não precisava de palavra, não precisava de alarde — era tudo no olhar, na cumplicidade suja que costura os pecados antes mesmo de cometê-los. Na rua, nada de dar bandeira, isso eles combinaram sem abrir a boca, como quem trama um crime em silêncio.Camilo, coitado, carregava uma saudade que doía na carne. Sentia falta daquela menina que Antônia já fora um dia, aquele corpo miúdo mas cheio de curvas, um mapa de delícias que ele conhecia de cor. A pele branca, firme como fruta madura, o rebolado que vinha sem esforço, quase um insulto de tão natural, e o sorriso — ah, aquele sorriso safado, uma curva de lábios que prometia o céu e o inferno numa tacada só. Era tudo isso que dançava na cabeça dele, enquanto os pés o levavam, quase sem querer, pro abismo que os dois tinham escolhido sem dizer.
A porta da frente bateu atrás deles com um estalo seco, e ali mesmo, no corredor estreito, Antônia girou o corpo e encarou o macho. Houve um silêncio grosso, uma pausa que paralisava até o ar. A respiração sumiu, o coração deu um tranco e ficou quieto, como se esperasse o veredicto. Só os olhos se caçavam, famintos, e as bocas, entreabertas, pediam o que as palavras nunca ousariam. As mãos se tocaram, num gesto que era permissão e convite, e veio o beijo.
Ah, que beijo, santo Deus! Fazia tempo que Antônia tinha enterrado essa memória, mas agora ela voltava como um tapa na cara, mostrando o que tinha faltado naqueles anos de seca. Eram lábios carnudos, uma língua que dançava com graça de malandro, a saliva quente escorrendo como um rio proibido, a barba rala que arranhava a pele. Tudo selvagem, tudo puro, uma mistura de bicho e anjo que ninguém explica.
Os corpos se grudaram, colaram-se com a urgência dos desesperados, e ela buscou a parede pra não tombar. As mãos dele, ansiosas, deslizavam por ela inteira, sem deixar os lábios dela um segundo sequer. Era isso que ela amava naquele homem: ele estava sempre ocupado, sempre em ação, um predador que não descansava. Num átimo, a boca dele desceu pro pescoço, faminta, enquanto as mãos levantavam o vestido, puxando o pano como quem rasga um véu sagrado.
Dúvidas? Talvez ela tivesse, lá no fundo, um fiapo de pudor gritando. Mas Antônia não deu tempo pra essa voz miúda. Com dedos macios, ela roçou o velo proibido, sentindo o calor que subia e umedecia a renda negra da calcinha. Ele, mestre no ofício, traçou com uma mão o caminho da pélvis até a gruta da carne, os Alpes do prazer tremendo sob seus dedos. Com a outra, num golpe rápido e certeiro, rasgou a alça daquela peça — mais um porta-joias do que calcinha —, deixando-a frouxa, inútil.
E ali, no instante em que a renda cedeu, Antônia sentiu o susto gostoso, o arrepio que sobe a espinha quando se sabe: não há mais volta. O corredor, o mundo, tudo sumiu. Só restava o pecado, nu e vivo, esperando pra acontecer.
Num gesto contínuo, quase ritualístico, Camilo abriu a calça e deixou as roupas caírem, libertando o bicho. E Antônia suspirou, um suspiro que vinha das entranhas, carregado de uma lascívia que ela nem tentava disfarçar. Ah, como sentia falta daquele instrumento dos deuses, daquele pedaço de carne que parecia esculpido pra pecar! Quantas vezes ela o tinha agarrado com as mãos, quantas tantas o abocanhara com a gula de uma devassa, quantas outras o montara como quem doma um cavalo selvagem.
O botulão negro era um troço de respeito, comprido como o antebraço miúdo de Antônia, grosso como o pulso dela, uma obra bruta da natureza. Ao toque, era veludo quente, pulsava com vida própria, pesava na mão como tarugo de chumbo. Endureceu rápido, erguendo-se nas mãos daquela namorada sem pudor, uma mulher que sabia o que queria. A cabeçorra, lustrosa, brilhou sob a luz fraca do corredor, e ela, num delírio de quem se perde, esticou a pele até o fim e voltou, num vaivém que era quase um recomeço.
— Ah, que saudade — confessou ela, a voz rouca, os olhos vidrados, como se aquele pedaço de Camilo fosse o mapa de todos os prazeres que o Geraldo, coitado, nunca soubera lhe dar. Era o reencontro de uma devota com seu ídolo pagão, e ali, naquele instante, o mundo podia desabar que ela não ia largar.
— No sofá, vamos pro sofá — ela pediu, a voz tremendo de desejo, quase uma súplica. — Como na nossa primeira vez.
No caminho, Antônia deixou o vestido escorregar, um pano inútil que caiu ao chão como casca de fruta madura. Ficou nua, pelada, sem nada pra esconder o que o tempo tinha moldado. Camilo parou o olho naquele corpo e viu o passado dançar na frente dele. Tempos em que aquele corpo miúdo, de pele branca, era um templo da pureza, uma oferenda intocada. Agora não era puro, não senhor, mas tinha uma dignidade crua, a dignidade da mulher madura, da lascívia que se sabe e se assume, leve e pesada ao mesmo tempo.
Ela se jogou no sofá, de costas, abrindo as pernas como quem abre um portão. Era o caminho escancarado pra gruta do prazer, um convite que não pedia licença. Camilo, sem perder tempo, arrancou do peito suado a camisa imunda, fedendo a graxa e óleo de motor, um trapo que voou pro canto. Deitou-se sobre ela, o corpo dele um peso bruto contra a carne dela, e, com uma calma que era só dele e uma sofreguidão que era toda dela, embainhou aquele pedaço de ébano no sacrário úmido de Antônia.
E aí foi um pandemônio de corpos, uma confusão de arranhões nas costas dele, de movimentos desajeitados e famintos, de urros que saíam da garganta dele e gemidos que escapavam da boca dela. Até que ele explodiu, um vulcão que lançou jatos de suco quente no receptáculo profano dela. Antônia arqueou o corpo, tremeu como se fosse partir, grunhiu baixo e desabou nos braços dele, sentindo um rio viscoso escorrer pelas pernas. “Que sujeira”, pensou ela, a cabeça zonza, o peito arfando. Mas que importava a sujeira? O que valia eram as estocadas, as socadas, o prazer empalado nas carnes dela, um êxtase que o Geraldo, aquele traste, nunca ia entender.
Abraçada ao macho, Antônia sentiu uma satisfação morna, um gosto de vitória que escorria pelo corpo como o suor deles. Deixaria a mancha no sofá, um troféu sujo da tarde, uma marca que o Geraldo, aquele cego, nunca ia decifrar. A calcinha rasgada ficou largada na cama, um trapo negro que gritava o que ela não dizia em voz alta. À noite, no jantar, ela suspiraria fundo, um suspiro que carregava o cheiro de Camilo, o peso dele ainda grudado na pele.
O jantar veio quieto, um silêncio cortante entre os talheres. Geraldo mastigava a comida com a cara amarrada, os olhos miúdos dardejando pra Antônia, que mexia no prato sem pressa. O suspiro escapou de novo, quase um gemido disfarçado, e ele parou, garfo no ar.
— Que foi, hein? Tá com cara de quem viu santo — ele rosnou, a voz grossa de quem já farejava a traição.Ela ergueu os olhos, lentos, e deu um sorriso torto, um sorriso que não era pra ele.
— Nada, Geraldo. Só tô cansada. A feira hoje... me deixou exausta.
Ele grunhiu algo incompreensível, voltou pro prato, mas o veneno já estava plantado. Antônia sabia: cedo ou tarde, ele ia cavar, ia fuçar, ia querer saber. E ela não ia negar. Que viesse o escândalo, que viesse a briga, que viesse o fim. No fundo, ela já tinha escolhido. Camilo, o macho de mãos sujas e desejo limpo, era o fogo que o Geraldo, aquele toco apagado, nunca ia acender.E assim, entre o sofá manchado e a calcinha rasgada, Antônia se fez dona de si, uma mulher que, enfim, dizia sim ao prazer e cuspia no tédio. O conto se fechava ali, com o cheiro de graxa e o gosto de pecado ainda na boca dela, enquanto o mundo do Geraldo, coitado, desmoronava sem que ele soubesse por quê.