Enquanto o Dr. Carter conversava com meus pais sobre a cirurgia, minha mente vagava para outro lugar, tentando processar a notícia devastadora sobre Zeek. Como ele podia estar morto? Isso só podia ser mentira. Zeek não estava morto.
Sem pensar, saí correndo da tenda, mas tropecei em algumas caixas. Como não percebi a presença delas?
Algumas pessoas me ajudaram a levantar. Meus pais também vieram ao meu socorro. Mais uma vez, chorei abraçado a eles. Depois de me acalmarem, voltamos para a tenda, onde fizeram várias perguntas sobre a cirurgia e o processo de recuperação que eu enfrentaria nos próximos meses.
Desde a cirurgia, minha visão estava estranha. Quando vi meus pais mais cedo, corri em uma direção, mas não era a certa. Felizmente, minha mãe me alcançou.
Eu só queria acordar desse pesadelo. Minha vida não podia continuar sem Zeek. Havíamos prometido ir para a faculdade juntos. Não conseguia lembrar de um momento da minha vida em que ele não estivesse presente.
Nos conhecemos no jardim de infância e, desde então, nunca mais nos desgrudamos. O fato de nossas mães trabalharem juntas na rede de televisão de Jacksonville ajudou a fortalecer nossa amizade.
Zeek era lindo, dono de um sorriso brilhante. Tinha cabelos ruivos e lisos, sardas espalhadas pelo rosto e usava óculos de grau bem grossos—um verdadeiro nerd.
Quando me assumi, ele foi o único que ficou 100% ao meu lado. Me ajudou a enfrentar o bullying na escola.
No mês passado, por exemplo, depois do treino de educação física, alguns jogadores do time de futebol começaram a fazer comentários inapropriados. Um deles disse que tinha medo de que eu tentasse seduzi-lo. Como se ser gay fosse uma doença.
— Cuidado, Zeek. O George pode te deixar gay — Comentou Kevin, um dos jogadores.
— Verdade. O vírus gay é muito perigoso — Afirmou Emmett, rindo enquanto pegava a mochila.
— Eu não posso pegar um vírus do meu namorado, né? — Perguntou Zeek, me abraçando. — Te amo, bebê.
— Puta merda! — Exclamou Kevin, enquanto os outros riam. — Vamos embora antes que a gente pegue essa doença.
Todos saíram rindo e cochichando sobre nós. Achei loucura o que Zeek fez, mas ele apenas riu e disse que não se importava com as fofocas.
Na verdade, eu tinha uma queda pelo meu melhor amigo, mas ele era hétero e apaixonado por uma garota chamada Brenda, que morava em Nova York.
A voz do Dr. Carter me arrancou do mundo das memórias:
— Ele vai ficar bem.
— Então, meu filho perdeu mesmo a visão? — Questionou minha mãe, chorando.
— Infelizmente, o ferimento foi muito grave e tivemos que remover o olho do George. A partir de agora, ele terá visão monocular, o que significa que terá dificuldades para perceber profundidade — Revelou o Dr. Carter, para o desespero de todos, inclusive o meu.
— Como assim?! — Levantei da cadeira. — Eu vou ficar cego?
— Não, claro que não. Mas você precisará se acostumar a uma percepção espacial limitada, George. Com apenas um olho, sua visão periférica ficará prejudicada — Explicou o médico.
Ele se virou para meus pais.
— Sr. e Sra. Sanches, eu cuidarei do caso de George. Assim que tudo se acalmar, por favor, entrem em contato comigo — Disse, entregando um cartão para minha mãe. — Sei que é uma situação difícil de assimilar, mas é fundamental que George evite dirigir, atravessar ruas sozinho ou praticar esportes de alto impacto, já que sua visão está comprometida.
Ele entregou um prontuário à minha mãe.
— Aqui estão os medicamentos que George precisará tomar. Ainda não tenho sinal no celular, mas assim que as comunicações voltarem ao normal, podem me ligar.
Meus pais me abraçaram, tentando me dar forças, mas eu sentia um vazio imenso. A morte de Zeek, a perda da visão de um olho, o caos ao meu redor... Tudo parecia um pesadelo do qual eu não conseguia acordar.
Os dois me deram muito apoio neste momento. A minha vida nunca mais seria a mesma, e eu teria que reaprender muitas coisas. O meu coração parecia um vaso quebrado. O Zeek estava morto, a Rachel desaparecida e ainda tinha o Emmett, que perdeu o braço.
O Centro de Apoio ganhou mais feridos, ou seja, não havia tempo para chorar. Os meus pais voltaram para o food truck para preparar alimentos e entregar água para os sobreviventes e equipes de resgate.
Fiquei de babá da Anne, mesmo com dor no rosto por causa do ferimento. Minha irmãzinha me estranhava por causa das bandagens. A levei para a área da enfermagem, onde eu estivera anteriormente. Apesar da confusão, Anne foi vencida pelo sono, e eu a coloquei em uma cama improvisada e usei um moletom para cobri-la por causa do frio.
Cochilei por alguns minutos, mas fui acordado com a voz da Sra. Montgomery-Kerr, que estava inconformada por terem amputado o braço do filho, afinal, Emmett era uma promessa do futebol americano.
Diferente da mãe, o meu colega não falava nada, apenas chorava e lamentava a situação. A mulher não se importava com o sofrimento do filho, apenas com o futuro que não existiria mais.
— George? — uma voz feminina chamou por mim.
— Sra. Jenkins. — Falei surpreso ao ver a mãe de Zeek. Ela se aproximou e tocou o meu rosto. As lágrimas foram inevitáveis. — Eu sinto muito. — A abracei.
— Obrigada, querido. Está sendo muito difícil processar tudo. — Ela lamentou, chorando.
— O que houve? Ele estava bem da última vez que o vi.
— Aparentemente, não conseguiu chegar a tempo. O meu esposo está tomando conta de tudo, eu não sei o que fazer. Estou perdida, George. — Ela sentou em uma das camas vazias, mas sua atenção logo se voltou para a Sra. Montgomery-Kerr, que continuava conversando com Emmett, como se ele fosse culpado pelo furacão.
— Eu te falei, Emmett. Eu falei para você ir direto para casa após o treino. — Ela andava de um lado para o outro. — Agora você vai ficar inválido e não vai jogar as nacionais.
— Cala a boca! — Gritou a Sra. Jenkins, se levantando e indo na direção da Sra. Montgomery-Kerr.
— O seu filho está vivo. Só esse fato já deveria estar te fazendo soltar fogos de artifício. O meu filho não teve a mesma sorte. Levante as mãos aos céus pela vida do seu filho. Olha só para o rapaz, traumatizado com toda a situação, e você o cobrando dessa maneira tão cruel?
— Eu...
— Você? Estava pensando no futuro, certo? É o tipo de mulher que gosta de ter controle da situação, mas a natureza é cruel. Então, por favor, se você tem um pingo de respeito pela dor alheia, pare de cobrar o seu filho por algo que ninguém tem culpa! — E então, diante de nossos olhos, a mulher apagou.
— Meu Deus! — Exclamou a Sra. Montgomery-Kerr, me ajudando a segurar a mãe do meu melhor amigo.
— Sra. Jenkins. — Fui ao seu socorro.
Com dificuldades, colocamos a mulher em uma cama da enfermaria. Arrependida, a mãe de Emmett pediu perdão do filho e prometeu que o ajudaria nos próximos passos. Durante todo o momento, meu colega permaneceu em silêncio, apenas deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto. Não demorou muito, e seu pai apareceu.
Voltei minha atenção para Anne, que ainda dormia. A conversa da família Montgomery-Kerr havia sido bonita, repleta de pedidos de perdão. Agora, unidos, eles fariam o que fosse melhor para Emmet, que precisaria de toda a ajuda possível.
Depois de um tempo, o casal deixou a tenda da enfermaria para conversar com o médico. Emmet ainda chorava, então decidi deixar o rancor de lado — afinal, por mais que ele tivesse transformado minha vida num inferno, uma pessoa decente iria confortá-lo, certo?
— Emmett. — Me aproximei e toquei seu braço.
— A minha vida acabou, George. — Ele lamentou.
— Não, a sua vida não acabou. A vida do Zeek acabou. — Contei, e as lágrimas voltaram a cair. Senti meu machucado arder, mas ignorei a dor.
— O Jenkins está morto? — Ele questionou, assustado. — Eu... eu sinto muito, cara. E a Rachel?
— Nada. Os pais dela também não estão aqui. Eu já não sei mais de nada, Emmett. — Desabei em lágrimas. Com muito esforço, Emmett tocou minha mão.
— Eu também estou com medo. O que será que vai ser daqui para frente?
A temperatura começou a cair, e as buscas se tornaram mais difíceis. O furacão Fernandes durou apenas alguns minutos, mas sua destruição levaria muito tempo para ser resolvida, seja pelos estragos na estrutura da cidade ou pela dor dentro de todos nós. Famílias foram destruídas, casas foram arrasadas e a sensação de impotência dominava.
As equipes de resgate buscavam forças de onde não tinham, os médicos estavam havia horas sem dormir direito e os sobreviventes lutavam para se manter em pé.
***
Eu pensei que a perda do meu olho foi o momento mais difícil da minha vida. Porém, eu não estava preparado para o sepultamento do Zeek. Na realidade, não houve tempo para velório, apenas um enterro com a presença de familiares e alguns amigos. Próximo ao caixão, havia uma linda foto do meu amigo e uma placa com o nome Zachary "Zeek" Jenkins.
O cemitério estava tomado por um silêncio pesado. O Sr. e a Sra. Jenkins estavam arrasados, abraçados um ao outro, como se buscassem apoio para não desmoronar. Os dois eram jornalistas famosos da cidade de Jacksonville e estavam trabalhando durante o furacão. Zeek tentou alcançá-los no estúdio, mas o Furacão Fernandes foi mais rápido. O meu amigo morreu quando teve o carro lançado para o alto e o veículo caiu sobre um prédio.
A chuva fina que caía parecia chorar junto conosco. Algumas palavras foram ditas, mas eu mal conseguia prestar atenção. Minha mente estava fixada na ideia de que ele não estava ali. Não podia estar.
Passei os próximos dias chorando. No início, senti como se o Zeek estivesse apenas viajando e que, em breve, voltaria para nossas sessões de jogos e conversas profundas. Eu sempre contei tudo para o meu melhor amigo, e ele também compartilhava suas frustrações comigo. Mas agora só havia silêncio. Um vazio que eu não sabia como preencher.
Meu quarto se tornou um refúgio e uma prisão. À noite, eu acordava suado, revivendo os gritos, o vento uivando, o estrondo de coisas sendo arrancadas do chão. Eu tentava me convencer de que estava seguro, que tudo passou. Mas, sempre que fechava os olhos, tudo voltava com uma nitidez assustadora.
***
Era engraçado como a vida tentava me animar com coisas pequenas, mesmo quando eu não conseguia enxergar nada de positivo. No consultório, o Dr. Robson, o meu oftalmologista, estava empolgado, como se anunciar que eu poderia usar um olho de vidro fosse a melhor notícia do mundo.
— George, meu caro, temos uma ótima solução para você! — Disse ele, com aquele entusiasmo didático que parecia saído de um programa infantil. — Seu olho cicatrizou muito bem, e agora podemos encaixar a prótese perfeitamente.
Eu só assenti, sem muita energia para reagir.
— Olha só essas opções — Ele puxou um tablet e começou a me mostrar imagens. — Você pode escolher um olho que combine com o seu original, mas, se quiser, também temos variações.
Ele deslizou para o lado e vi olhos de cores diferentes: azul, verde, até um meio roxo.
— E tem essa aqui... — Ele riu, virando a tela para mim. — Sharigan, do Naruto!
Eu senti uma pontada no peito, pois Naruto era o anime favorito do Zeek. Ele sempre falava sobre Naruto como se fosse a coisa mais importante do mundo. O olho vermelho com aqueles detalhes pretos parecia ridículo... mas parte de mim achou divertido. Zeek teria surtado se soubesse que eu poderia usar aquilo.
Minha mãe não perdeu tempo.
— Vamos encomendar quatro modelos diferentes — Disse ela, prática como sempre. — Assim, você pode escolher sem pressa.
— Ótima ideia, Sra. Sanches! — O médico concordou. — Dessa forma, George, você não precisa se preocupar com nada. No fim de semana, já estarão prontinhos para você testar.
Eu murmurei um agradecimento, mas minha cabeça estava longe dali. Eu sabia que deveria me animar, tentar encontrar um lado positivo, mas era difícil. Muito difícil.
Desde o Furacão Fernandes, minha energia tinha evaporado. Eu não sentia vontade de fazer nada além de deitar e esperar o tempo passar. Tudo parecia pesado, como se cada segundo exigisse um esforço que eu não tinha para dar.
E dormir... dormir era um inferno.
Fechava os olhos e era como se eu voltasse para aquela noite. O vento uivando, os destroços voando, o medo, a dor. Tudo se repetia, e quando eu acordava, suado e ofegante, sentia o vazio onde meu olho esquerdo deveria estar. Uma lembrança constante de que nada voltaria ao normal.
O médico, minha mãe, as pessoas ao redor... todos tentavam me convencer de que eu ainda era o mesmo George. Mas eu sabia a verdade.
Eu nunca mais seria o mesmo.
***
Os dias viraram semanas. As semanas se transformaram em meses. Os meus pais tentavam fazer tudo ficar bem, mas algo dentro de mim não estava funcionando direito. Às vezes, quando eu percebia uma mudança brusca de temperatura, o meu coração acelerava. Eu lembrava de todo o perrengue que passei com o Emmett no ginásio da nossa antiga escola.
Ah, falei antiga escola, né? Pois é. Os alunos sobreviventes foram redistribuídos em outras unidades escolares da região de Jacksonville. A partir daquele semestre, eu faria parte da Cleverfield High School. Sabe da ironia? Eu fiz uma prova para entrar na escola, mas não passei. Agora, por causa da pena da sociedade, o garoto sem um olho ganharia uma nova oportunidade.
Virou parte da minha rotina passar na frente da casa da Rachel. O local foi dizimado e só havia parte da estrutura. Os vizinhos e outros familiares fizeram uma espécie de altar para homenagear a família, que até agora não foi encontrada. De acordo com os noticiários, muitas pessoas foram lançadas na Baia de Pensacola, uma cidade vizinha.
— Oi, Rachel. Tudo bem? — Questionei, enquanto colocava um buquê de flores. — Eu achei o seu caderno de Álgebra. Voltei aos escombros do que um dia foi nossa escola. Sabe, eu estou muito arrependido de ter negado o meu amor. Eu não tenho culpa de nascer como sou. Se eu soubesse que você... droga, por que é tão difícil? Eu sinto a sua falta. Sinto falta do Zeek. Acho que nunca mais vou ser a mesma pessoa. Os meus pais estão com tantas contas por causa das minhas consultas. Eu não sei o que fazer. — Lamentei, limpando as lágrimas e deixando o caderno próximo ao altar que tinha a foto de Rachel e os seus pais.
— Sanches? — perguntou Emmett e, no susto, quase caí para trás.
— Emmett. — Olhei em sua direção. — O que você está fazendo aqui?
— O mesmo que você. — Ele mostrou o buquê de flores.
O Emmett estava usando uma camisa de manga, que disfarçava a sua deficiência. Seguimos para uma lanchonete, que havia aberto recentemente. A cidade ainda não estava 100%, mas, aos poucos, as pessoas voltavam para suas vidas.
Conversamos muito naquelas "férias", meio que a tragédia nos uniu. Emmett falou que os pais estavam mais maleáveis e o incentivavam a buscar outro esporte para participar, mas ele disse que não queria mais se envolver em nada, apenas seguir sua vida sem ser o centro das atenções.
— Você cansado do holofote? Meu Deus, que o Senhor Jesus volte logo. — Brinquei.
— Cala a boca. E a nova escola? Pegou a Cleverfield High School?
— Sim. O Zeek e eu fizemos a prova dessa escola, mas não passamos. — Revelei.
— Burros. — Emmett soltou, enquanto comia uma batata frita.
— Ei. Você também está entrando por pena...
— Pena? Eu fiz essa prova e passei em segundo lugar. — Ele contou com um ar de superioridade. — Porém, o time de futebol americano da Freedom era muito superior.
— Cala a boca.
— Enfim, o problema é. — Ele mostra o braço decepado. — Preparado para o olhar de julgamento e bullying? Eu falei para a mamãe que queria terminar o ano em casa, mas ela não acha certo.
— Bem, o bullying na outra escola eu sofria por sua causa, né? — Fiz uma careta engraçada. — Porém, eu vou passar o ano despercebido como sempre fiz.
***
— Senhoras e senhores. Hoje vamos receber dois alunos muito especiais. Os dois são sinônimo de perseverança e boa vontade. Por favor, recebam George Fletcher Sanches e Emmet Montgomery-Kerr, sobreviventes do Furacão Fernandes. — A diretora Taylor anunciou com um sorriso no rosto.
— Passar despercebido, hein, Sanches. — Emmett cochichou.
— Fudeu. — Pensei, enquanto os alunos nos aplaudiam e eu sorria igual um idiota.
O primeiro dia de aula em uma escola nova deveria ser emocionante, certo? Para algumas pessoas, talvez. Para mim, era só um amontoado de ansiedade prestes a explodir.
Enquanto a diretora nos apresentava e falava sobre a tragédia, percebi que toda a escola era de vidro. DE VIDRO! Até mesmo aqui no auditório, as paredes eram de uma espécie de vidro com película. O prédio era moderno, tecnológico e cheio dessas superfícies transparentes que me deixavam desconfortável.
Vidro. Quem teve essa ideia idiota? Será que ninguém pensou em furacões?
Senti minha mão começar a suar. O coração acelerou. Minha cabeça latejava. Tudo ao redor pareceu girar de repente, e então... escuridão.
Ótimo, George. Que primeira impressão incrível. Apagar no chão logo no primeiro dia. Se existisse um troféu para a pior estreia em uma escola nova, eu definitivamente ganharia.
A última coisa que lembro foi a voz de Emmett. Calma, firme, me dizendo que tudo ia ficar bem. Só que, para mim, nada parecia bem.