O corredor da Cleverfield High School parecia menor quando Emmett estava perto. Não que ele fosse tão grande assim, mas a presença dele ocupava um espaço desproporcional na minha vida. Desde a Freedom High School, eu havia aprendido a andar com cautela para evitar olhares, empurrões e comentários ácidos vindos dele e do time de futebol. Agora, com a mudança de escola e tudo o que aconteceu depois do furacão, a dinâmica entre nós tinha mudado. Mas não o suficiente para eu confiar nele.
— Fala, George. Ele tá te incomodando? — perguntou Emmett, ainda segurando meu braço.
— Me solta. — Protestei, me afastando bruscamente. — Esse é o Nathan. E não, ele não está me incomodando.
Nathan sorriu de canto e ajustou os óculos redondos no rosto. Ele era magro, de olhos azuis intensos e um cabelo castanho escuro sempre bagunçado. Um garoto esquisito, mas no melhor sentido possível.
— Qual o seu signo? — perguntou Nathan, ignorando a tensão no ar e apontando para Emmett.
— Sei lá. — Emmett revirou os olhos. — Nasci dia 10 de janeiro.
— Capricórnio. — murmurou Nathan, pegando seu caderno e fazendo algumas anotações rápidas. — Pessoas com ascendente em Capricórnio costumam transmitir uma imagem de maturidade e confiabilidade. São vistas como indivíduos responsáveis e organizados. — explicou com um tom professoral.
Soltei uma risada abafada, chamando a atenção de Nathan.
— O Emmett e responsável na mesma frase? Só se for em organizar bullying e fazer da vida dos outros um inferno. — Provoquei, cruzando os braços.
Nathan ergueu uma sobrancelha e olhou para Emmett, o analisando como um cientista estudando um espécime incomum.
— Impossível. — Decretou, coçando o queixo.
— Acredite, Nathan. O gay homofóbico fez da minha vida um inferno nos últimos dois anos. — Minha voz saiu carregada de mágoa antes que eu pudesse evitar. — Enfim, Emmett, não tem nada para você aqui.
O desconforto era palpável. Emmett abriu a boca como se fosse dizer algo, mas desistiu, soltando um suspiro frustrado antes de se virar e ir embora. Eu sentia um nó no estômago sempre que olhava para ele agora. Antes era ódio. Agora... não sabia definir.
— Quer ir até a biblioteca? — Sugeri a Nathan, querendo mudar de assunto.
— Claro. Desde que você me deixe continuar analisando seu mapa astral. — brincou ele, fechando o caderno.
No caminho até lá, percebi que Nathan me olhava de um jeito engraçado, como se estivesse tentando resolver um enigma.
— O que foi? — perguntei, desconfiado.
Ele parou de andar e inclinou a cabeça.
— Você gosta dele, não é? — soltou, sem rodeios.
Senti meu rosto esquentar.
— Dele? — desviei o olhar.
— Do Emmett. Eu senti a atração entre vocês. Ele fazia bullying com você?
Suspirei. Lá estava eu, mais uma vez relembrando todas as vezes que Emmett Montgomery-Kerr aprontou comigo na Freedom High School. As piadas, os empurrões nos corredores, os bilhetes maldosos, os olhares de desprezo. A humilhação pública. A raiva acumulada.
— Sim. — Admiti. — Ele e o time de futebol americano.
Nathan assentiu, como se já esperasse essa resposta.
— Eu entendo. — Disse com seriedade. — Sou um garoto trans. Sei muito bem o que é ser alvo de bullying. Muita gente tentou fazer da minha vida um inferno. Algumas vezes conseguiram. Mas isso não me define. Nem deveria definir você.
Senti um aperto no peito. Nathan falava com uma convicção tranquila, como alguém que já tinha aprendido a carregar seu peso sem deixar que ele o esmagasse.
— Meus pais também são julgados o tempo todo. — Continuou ele. — Meu pai, David Hearst, é psicólogo. Minha mãe, Heather, dá aula de filosofia na Universidade Comunitária. Eles sempre me deram total liberdade para ser quem eu sou, e isso incomoda muita gente. Mas eu nunca estive sozinho.
Nunca estive sozinho.
Essas palavras ecoaram na minha cabeça. Porque, de alguma forma, pela primeira vez em muito tempo, eu sentia que talvez isso fosse verdade para mim também.
***
Eu respirei fundo antes de entrar no consultório da Dra. Evelyn Moore. As sessões de terapia eram um misto de alívio e desconforto para mim. Eu sabia que precisava delas, mas admitir isso era outra história. Me sentei no sofá macio, encostei as costas e fiquei encarando o tapete por um instante.
— Como tem sido sua semana, George? — A voz da Dra. Moore era sempre calma, mas não me deixava escapar de nada.
— Acho que normal, se normal significa estar irritado com qualquer coisa. — Soltei um riso seco, balançando a cabeça.
— Você mencionou antes que tem tido um temperamento explosivo. Acha que isso está ligado ao furacão?
— Não sei... — Cruzei os braços e suspirei. — Quer dizer, antes do furacão eu não era assim. Não ficava brigando com meus pais o tempo todo, não queria socar a cara de todo mundo na escola... — Olhei para ela e percebi que sua expressão era de compreensão. — Mas depois... depois de tudo, é como se qualquer coisa me deixasse puto.
— Você passou por algo que ninguém deveria passar, George. Você perdeu pessoas importantes e viu sua vida mudar drasticamente. A raiva pode ser uma forma de defesa, uma maneira de lidar com a dor que ainda não foi processada.
Eu engoli seco. Sempre que ela falava assim, me atingia direto no peito. Apertei as mãos sobre o colo.
— Mas eu não quero ser assim.
— E não precisa ser. — Ela sorriu de leve. — Você pode escolher como lida com isso. Uma coisa que talvez ajude é tentar aceitar sua nova realidade, abraçá-la. Sei que não é fácil... eu mesma perdi minha casa e meus animais no furacão. Sei como é olhar ao redor e sentir que tudo que fazia parte da sua vida foi arrancado de você. — Levantei o olhar, surpreso. Ela nunca tinha falado sobre isso antes.
— Eu... sinto muito. — Lamentei. Ela assentiu, mantendo o olhar suave.
— Obrigada. Mas isso me fez entender que seguir em frente não significa esquecer. Significa encontrar um novo caminho dentro do que restou. E às vezes, esse caminho pode incluir pessoas que você não esperava. Como Emmett, por exemplo.
— O Emmett? — Bufei, desviando o olhar. — Ele foi um babaca comigo durante anos.
— E, ainda assim, vocês passaram pelo mesmo trauma. Vocês entendem um ao outro de uma forma que ninguém mais entende. Não estou dizendo que precisa ser amigo dele, mas talvez, se abrir para uma conversa sincera, sem ressentimentos, possa aliviar um pouco esse peso.
Mordi o lábio. Eu odiava admitir, mas ela tinha um ponto. Emmett e eu éramos dois sobreviventes do mesmo inferno.
— E como eu faço isso? Vou até ele e digo 'ei, sei que me infernizou a vida inteira, mas que tal superarmos isso juntos?' — Ironizei. A Dra. Moore riu baixo.
— Você pode tentar algo menos direto. Que tal responder a carta dele? Você não precisa entregá-la se não quiser. Mas colocar seus sentimentos no papel pode ajudar a entender melhor o que você sente sobre tudo isso.
— Uma carta, hein? — Pisquei algumas vezes, digerindo a ideia. — Nunca fui bom com palavras.
— Não precisa ser perfeito. Apenas sincero.
Fiquei em silêncio por um momento, encarando minhas mãos. Talvez valesse a pena tentar. Afinal, se eu queria mudar, precisava começar de algum jeito.
Depois da conversa com a psicóloga, minha mente não parava. Eu precisava escrever algo. Não por obrigação, mas porque senti que devia a Emmett uma resposta à altura. Ele se abriu comigo de um jeito que eu nunca imaginei, e sua carta... Bom, ela me desmontou. Então, quando cheguei à biblioteca, me afundei entre as mesas vazias e puxei meu caderno.
Minha mão tremia um pouco. O que eu poderia dizer? "Valeu por compartilhar teus sentimentos, mas você é um monstro!". Ridículo. Eu precisava ser sincero, mas isso significava revirar cicatrizes que eu nem sabia se estavam fechadas.
Respirei fundo e comecei a escrever. A princípio, só rabiscos desconexos, mas depois as palavras começaram a fluir. Palavras que doíam. Palavras que faziam meus olhos marejarem. Não era fácil colocar sentimentos no papel, mas ali, sozinho, permiti-me ser honesto.
Quando o sinal tocou, dobrei a folha com cuidado e saí da biblioteca. O corredor estava cheio, mas eu sabia exatamente para onde ir. Me aproximei do armário do Emmett, olhei para os lados e deslizei a carta lá dentro antes que alguém me visse.
Feito. Pronto. Agora era esperar.
Com o peito apertado e um nó na garganta, segui para a sala, tentando fingir que era só mais um dia comum. Mas nada mais parecia comum depois disso.
***
Emmett,
Escrevo esta carta porque há coisas que preciso dizer, coisas que ficaram presas dentro de mim por anos e que, de alguma forma, preciso soltar. Talvez seja um começo para deixar o passado onde ele pertence.
Sempre quis ter uma vida normal. Ser quem eu sou sem medo, sem precisar olhar por cima do ombro, sem precisar medir palavras ou gestos. Mas na Freedoom High School, você e o time de futebol tornaram isso impossível para mim. Eu tentei ser forte, tentei ignorar, tentei fingir que os olhares, os risos e as palavras não me afetavam. Mas afetavam. E muito.
Você se lembra do dia em que me trancaram no banheiro químico? A temperatura estava congelante, e eu fiquei lá, tremendo, com medo de não sair. Ou do dia em que jogaram energético em cima de mim no meio do corredor, rindo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo? Como se eu não fosse nada além de um saco de pancadas para vocês. Mas sabe o que era pior? As palavras. "Viadinho." "Aberração." Como se ser gay fosse uma maldição, como se isso me tornasse menos humano. Como se eu não tivesse o direito de existir do jeito que eu sou.
O que me mantinha de pé era Zeek. Ele sempre estava lá para mim, sempre sabia o que dizer, sempre me lembrava que eu valia algo, que eu não estava sozinho. E você... você monopolizou até minha outra melhor amiga, Rachel. Ela se afastou de mim e escolheu ficar ao seu lado. E quando eu descobri que você também era gay... O sentimento dentro de mim virou algo ainda pior do que raiva. Inveja. Como assim a Rachel preferia você? Como assim você, que tornou minha vida um inferno, tinha apoio enquanto eu só tinha as cicatrizes do que vocês fizeram comigo?
Mas aí veio o furacão. E tudo mudou. Nós sobrevivemos juntos. Mas saímos dele quebrados. Eu perdi um olho, você perdeu um braço. Mas nada disso dói tanto quanto a falta de Zeek e Rachel. Eles não tiveram a mesma sorte que nós. E agora, estamos aqui. Tentando sobreviver a uma nova tempestade, dessa vez dentro de nós mesmos.
Então, Emmett, eu te perdoo. Mas não pense que isso significa que tudo pode voltar a ser como se nada tivesse acontecido. Perdão não apaga o passado, não cura todas as feridas de uma vez. A amizade não pode ser forçada. Eu preciso de tempo. Uma hora ou outra, talvez eu consiga abrir meu coração para você. Mas agora, talvez eu precise de distância.
George.
***
Eu odeio Álgebra. Pensa em uma coisa difícil de entrar na minha cabeça. Olhei para o lado e o Nathan já tinha terminado a sua atividade. Será que é um sinal de Deus? Eu chamei a atenção dele e pedi ajuda no exercício. Com muita paciência, o Nathan me ajudou. Ele explicou que já estava acostumado a passar a matéria para Sofia, que assim como eu tinha dificuldade com números.
Entreguei a atividade e peguei uma nota B. Poderia ser pior, né? Depois da aula, segui para a saída da escola e encontrei com o Emmett. Seus olhos estavam marejados, ele se aproximou e me abraçou. Ele não se importou com os olhares e comentários.
— Eu vou te dar. — Disse Emmett, enquanto me abraçava. — Eu vou te dar esse espaço. Estou trabalhando todas as minhas questões na terapia. Contei para o meu pai que sou gay. Ele me pediu um tempo até contar para a mamãe. Estou tentando, George. Estou tentando ser valente igual a você.
Após um momento constrangedor, Emmett saiu da escola e eu fiquei com cara de panaca. O meu coração começou a bater mais forte e toquei no meu peito. Que energia é essa?
— Você está muito afim dele. — Nathan me assustou.
— Muito afim. — Repetiu Sofia com um sorriso no rosto.
— E agora? — Perguntei para os meus colegas.
— Sagitário é signo de fogo, expansivo, aventureiro, busca liberdade, otimismo e alegria. — Enumerou Nathan, que olhou para a irmã.
— Capricórnio é signo de terra, preza pela segurança, estabilidade, responsabilidade, é sério, limitado e introspectivo. — Foi a vez de Sofia. Ela sempre mantinha a mesma expressão séria, mas serena.
— Vocês decoraram os nossos signos? — Perguntei e Nathan balançou a cabeça em concordância. — Mas e aí, a gente combina?
— Sagitário e Capricórnio podem parecer incompatíveis, mas podem se complementar bem. — Explicou Nathan, olhando em seu caderno.
— Juntos, vocês equilibram os extremos um do outro, com o Emmett te trazendo para o chão e você o inspirando. — Continuou Sofia. Ela olhou para o irmão e os dois deram um 'hi five'.
O Emmett vai me trazer para o chão? Eu vou inspirá-lo? Que sentimento é esse?
Ao chegar em casa, a minha cabeça estava a mil. Meu quarto era o reflexo dos meus gostos: uma prateleira cheia de livros e bonecos de ação de diversos jogos. Meu setup gamer era digno de um grande streamer, mas meu PC estava parado nos últimos meses, afinal, meu companheiro de gameplay não estava mais disponível.
Liguei o computador e voltei a ouvir as conversas que tive com Zeek no Discord. Meu Deus, a gente era tão idiota e feliz. Eu queria tanto o Zeek aqui. Ele me ajudaria a colocar o meu coração no lugar, mas eu sei que não posso contar com isso. Eu preciso descobrir por mim mesmo, mas a distância que o Emmett vai me dar pode fazer bem. Vai fazer bem, né?