Seu colo, meu lar!
Capítulo 03
Ainda tenho mais um dia de férias no trabalho e decidi ficar em casa. Comprei um bom café na semana passada e quero preparar antes que Adélia chegue.
Minha mãe me ensinou desde que eu era menino, a apreciar um bom café logo pela manhã. Ela sempre comprava os grãos já torrados para moer em casa e dizia que foi ensinada dessa maneira pelo meu avô.
Então vou até a cozinha colocar a água para esquentar enquanto preparo o pó.
Começou a chover antes mesmo de eu me levantar. Uma chuva tranquila, fininha, mas que está me fazendo lembrar do passado, quando Miguel e eu brincávamos no parque.
Não nos falamos mais depois do nosso reencontro. Eu nem sei se realmente continuaremos mantendo contato ㅡ talvez ele tenha pedido meu número somente por educação ㅡ, mas se por um acaso ele me ligar, o quê devo fazer? Ou devo ser o primeiro a enviar mensagem?
A única coisa que eu sei, é que desde esse reencontro, sinto como se uma nova dimensão estivesse sendo descoberta e, por mais que eu queira explorar esse novo mundo, acabo sentindo muito medo.
Estou confuso. Deveria estar? Existe algo aqui dentro, aqui, no meu peito, que está se contorcendo delirantemente. É como uma chama que foi acesa e queima ao ponto de eu querer gritar. Será que estou enlouquecendo? Será que minha solidão está me consumindo de dentro para fora, como se fosse um aviso para que eu me salve de mim mesmo?
A água da chaleira quase evaporou. Fiquei fora de mim por tempo demais. Preciso voltar à realidade.
Então ouço passos na calçada e o portãozinho se abrindo.
Adélia é a única que tem as chaves de casa e também é a única que me visita mesmo quando não está aqui trabalhando.
Eu desconheço a razão, mas desde quando a contratarei, ela teimou em dizer que eu preciso de um pouco de companhia. Desde então, ela aparece, do nada.
ㅡ Bom dia, eu trouxe pão quentinho. ㅡ Adélia disse assim que entrou.
ㅡ Bom dia pra você também. Vou servir o café. Amanhã eu volto à minha rotina. Queria ficar de férias pra sempre.
ㅡ E quem pagaria meu salário? Não me faça te abandonar tão cedo. Além do mais, eu sou sua única amiga. Você ficaria sozinho e ainda mais triste do que costuma ser.
ㅡ Uau!! Eu não sou triste, só sou reservado. E às vezes você fala como se eu fosse morrer sozinho.
ㅡ Se continuar do jeito que está, afastando as pessoas de você, você realmente vai!
ㅡ Você está aqui, não está?
ㅡ Não se faça de bobo. Você sabe muito bem o tipo de companhia que precisa. Estou falando de uma namorada, uma companheira pra vida. Alguém pra você cozinhar e jogar conversa fora. André, eu estou falando sério, não se mate antes do tempo. Você é bonito, atraente, poderia muito bem estar com uma garota bacana. Eu sei que você preza por seu sossego, mas você realmente se vê sozinho para sempre?
ㅡ Se eu sou tudo isso, então, namora comigo!
Estamos nos encarando e não conseguimos segurar nossa gargalhada.
Estou rindo como jamais imaginei ser possível. Adélia tem cinquenta e oito anos, mãe de dois filhos gêmeos aos quais fui professor por dois anos. Ela tem idade para ser minha mãe e é assim que a considero. E ainda tem mais: Ela é casada com uma mulher maravilhosa.
ㅡ André, você está bem? ㅡ Ela me olha com uma certa estranheza.
ㅡ Sim, estou ótimo! Por que?
ㅡ Eu não sei. Sinto algo estranho em você. Não é ruim, pelo contrário, mas não sei dizer o que é. Você não costuma brincar assim. É estranho, mas eu gostei.
ㅡ Não sei do que você está falando, mas tudo bem. Ah, e talvez, mas só talvez, eu siga o seu conselho e, sei lá, tento conhecer alguém de quem eu talvez possa vir a gostar. Não quero você preocupada comigo. Você já tem dois filhos para se preocupar. Não precisa de mais um.
ㅡ Porque você não usa esses aplicativos de relacionamento? Minha irmã conheceu seu marido assim. Estão juntos há seis anos.
ㅡ Eu não sei. Penso que seria me expor demais. Eu sou professor, não pegaria bem. Além do mais, eu quase não tenho tempo pra isso. Prefiro à moda antiga, sabe? Conhecer alguém por acaso, chamar ela pra ir ao cinema ou tomar um sorvete. Esse tipo de coisa. Pode até ser meio brega, mas eu não me vejo escolhendo pessoas em um aplicativo para me relacionar, como se elas fossem um objeto.
ㅡ Caramba! Te ouvindo falar assim, quase sinto vontade de me divorciar da Suzane. Aquele pedido de namoro ainda está em pé?
E mais uma vez estamos rindo como nunca.
Eu não sei o quê está acontecendo, mas sorrir logo de manhã está me fazendo muito bem. Há muito tempo que não me sentia tão leve. Sinto como se um peso estivesse sendo retirado dos meus ombros. Adélia está rindo sem parar e eu a acompanho sem nenhuma reserva.
Enquanto conversamos, tomamos nosso café da manhã. Está sendo o segundo dia mais feliz da minha vida, porque o primeiro foi há quatro dias atrás, quando reencontrei Miguel.
Adélia está se despedindo. Acho fofo o modo que ela sempre segura meu rosto com as duas mãos e, apertando minhas bochechas, ela me dá um beijo na testa.
ㅡ Eu não sei o quê está acontecendo contigo. Talvez nem você mesmo saiba, mas continue assim. Desde que trabalho aqui, nunca te ouvi rir tanto, como hoje. Continue É bom de ver feliz, garoto.
Pela primeira vez eu consigo retribuir seu gesto de carinho com um abraço. Há muito tempo não sei como demonstrar afeto para com as pessoas. Eu consigo ver em seus olhos um certo espanto, pois ela sabe como sou meio distante em relação a contato físico. Está sendo estranho para mim também, mas não é tão ruim assim senti um pouco de calor humano.
Estou sozinho novamente. Adélia só voltará na terça-feira, pois é o dia que ela vem para limpar minha casa e colocar as roupas para lavar.
Estou me lembrando do conselho que me foi dado ㅡ conhecer alguém ㅡ será que estou preparado?
Há muito tempo que saio para encontros. Eu não sou o tipo de homem que fica com muitas mulheres. Para falar a verdade, nunca em minha vida senti uma real conexão com as mulheres que já fiquei.
Namoro mesmo, foi somente uma vez e durou pouco mais de cinco meses.
Eu terminei o relacionamento quando ela cogitou que morássemos juntos. Não era o momento oportuno para uma vida a dois.
Talvez eu não sirva mesmo para estar com alguém dessa forma e não é justo eu começar algo tão grandioso sem ter certeza do que eu quero.
Então, por enquanto, vou deixar para lá esse assunto e continuar minha vida como tenho feito.
Já são quase dez da manhã e sinto uma brisa fresca entrando pela janela.
Meu celular está vibrando sobre a mesa da cozinha. Acho que é notificação de mensagem.
Estou imaginando quem seria, pois raramente eu converso com alguém sem ser sobre trabalho e essa semana não tenho nenhum aluno particular.
Então pego o aparelho e sinto um mix de sentimentos percorrendo por todo o meu corpo. Sinto aquela chama queimando meu peito tão intensamente, a ponto de me fazer paralisar.
"Oi, sou eu! Está ocupado? Queria te convidar para um passeio. Preciso visitar uma obra fora da cidade e depois podemos ficar para almoçar. Sei que hoje é seu último dia de folga. Quer ir comigo? Se sim, me passe seu endereço que no máximo em meia-hora passo te pegar."
Continua...
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