Quando chegamos em casa, Brad, Kaique e Milena estavam imundos. Eu também estava suja de poeira, mas não tanto quanto eles. Nós brincamos em um banho de mangueira e depois nos jogamos na piscina. Eles começaram a me cobrar para falar com os pais dos colegas, e eu assegurei que mandaria mensagem. Eles continuaram brincando, e eu tomei uma ducha. Assim que entrei em casa, dei de cara com minha mãe e Júlia, ainda no mesmo lugar e na mesma posição, só que agora a minha gatinha dormia.
— E aí? — perguntei, logo após depositar um beijo na testa das duas.
— Ela tá bem abatida, coitadinha — falou a minha mãe, voltando a acariciar os cachinhos da minha amada.
— É, tá sendo difícil de lidar, porém é compreensível — disse, sentando na poltrona, de frente para elas.
— Entendo os dois lados. Sei que está doendo em Jacira e em Zé vê-la assim, e desistir de um sonho depois de já ter trilhado alguns passos não deve estar sendo fácil... Mas escolheram a melhor maneira de contar. Isso tá destruindo a bichinha.
E eu concordava plenamente.
Aparentemente, Juh não tinha contado que estava chateada comigo. Eu já esperava que ela não fizesse isso, já que não gosta de exposição negativa quando se trata do nosso relacionamento, mas ter certeza foi legal. Eu não queria a pessoa mais poderosa do Jurídico, Júlia Oliver, caindo em cima de mim.
Minha mãe se despediu, e logo após, as crianças entraram de mansinho.
— O que a mamãe tem? — perguntou Mih.
— Ela tá dormindo um pouquinho, descansando... Porque sabem o que tem amanhã???? — questionei, tentando passar entusiasmo para me desviar de mais perguntas.
— POUSADAAAA! — os dois gritaram, empolgados.
Eu ria, até perceber que eles acordaram Júlia. Nós três fizemos expressões de quem estava encrencado, mas ela deu um micro sorriso para eles, que a abraçaram.
Os dois subiram enrolados em toalhas que jamais seriam brancas novamente, e eu fui me aproximando de Juh.
— Como você está, amor? — perguntei, fazendo carinho em seu rosto.
— Quero conversar com você — ela pediu, em um tom nada animado.
— Claro, vamos, sim... — falei, e fomos para o quarto.
— Me conta como foi... O que eles te falaram — Juh pediu, sentando-se na cama e encostando o corpo na cabeceira.
— Olha, Juh, quando essa conversa aconteceu, não tinha nada certo ainda... — comecei a dizer, mas ela me interrompeu.
— Do início, Lore, por favor — disse-me, sem paciência.
— Tá bom... — concordei, sentando-me ao lado dela da mesma maneira, e retomei o que eu lembrava. — Sarah puxou o assunto, logo depois de partilhar que não poderia ter filhos, e sua mãe começou a tirar muitas dúvidas... — Nesse momento, Júlia engoliu seco. — Eu brinquei, perguntando se ela queria me dar um cunhado, e nem ela, nem o seu pai falaram nada... Ficou meio óbvio para mim que ali existia um desejo, e, mesmo tendo certeza que não, perguntei se você sabia — ia dizendo, quando novamente fui interrompida.
— Óbvio que não! — Juh falou, com um riso irônico e os olhos cheios de lágrimas.
— Vem cá... — a chamei para um abraço.
— Não, continua... — ela pediu, passando lentamente os dedos nos olhos.
— Eles negaram e disseram para eu não te contar nada... — falei, e quando percebi que Juh ia me interromper, me apressei em continuar. — Disse para eles que você nem deveria imaginar e que... — fiquei bastante apreensiva com a continuação. Eu ia me lascar de um jeito ou de outro.
— Você confirmou que não ia me dizer nada? — ela questionou, em lágrimas.
— Não, eu sou ruim em mentir e em omitir... Você sabe disso, amor... Eu informei que não era uma boa pessoa para essa missão, mas que... — respirei fundo e falei de uma vez — insinuei que não seria um problema, o fato de você nem imaginar e não me questionaria a respeito...
O clima da conversa mudou totalmente. Agora, Juh nem olhava mais para mim, apenas chorava.
— Essa conversa não tá nos fazendo bem, é melhor a gente parar por aqui — falei.
— Não, eu quero que você conte tudo que aconteceu — ela me disse, ressentida. — Continue... — Júlia finalizou, pedindo.
— Minha sogra disse que eles dois sentem sua falta, tudo que você já sabe sobre ter saído de casa... Seu pai disse que tem consciência de que assim pode mudar a vida de uma pessoa com tudo que podem proporcionar e o amor que poderiam dedicar... Todo mundo começou a falar que você sentiria ciúme, e eu disse que seria impactante no início, afinal, nunca foi algo que você imaginou e muito menos desejou, mas... — parei de falar abruptamente.
— Mas??? — Juh me questionou.
— Eu falei que você ia entender com o tempo, que seu coração é enorme — essas palavras saíram em tom baixo e carregado de arrependimento.
— Além de não me contar, você aceitou esconder por achar que eu não ia desconfiar e ainda incentivou? — Júlia perguntou, se levantando.
— Amor... — eu tentei, mas ela saiu do quarto.
Na conversa no carro, havia uma certa leveza no ar. Eu estava num ambiente em que todos partilhavam o mesmo desejo, embora em estágios diferentes. Os limites ali não eram rígidos, tudo fluía de forma espontânea. Mas, quando fui conversar com a Juh, a dinâmica era completamente outra. Ela deveria ter sido a primeira a saber do desejo dos pais, e isso não aconteceu. Por isso, o diálogo ganhou um peso emocional diferente: saiu do leve e sensível para algo mais afetado, mais denso.
Agi com boas intenções em relação aos meus sogros, mas, ao conversar com a Juh, percebi que essas boas intenções entraram em conflito com o sentimento de lealdade e proteção que sempre tive por ela, e que, naturalmente, ela espera de mim.
Minha cabecinha ficou pilhada, tentando lidar com o desconforto entre: “eu não fiz nada de errado” e “ela está machucada”.
Quando alguém que amamos demonstra dor por algo que fizemos, nossa mente inevitavelmente começa a duvidar daquilo que antes parecia normal. Racionalmente, eu sabia que não tinha agido de má-fé. Mas, ao ouvir minhas próprias palavras diante da Júlia, elas soavam como se eu tivesse feito algo errado.
Meu cérebro reconhecia a dor dela, e isso me fez repensar minhas próprias ações.
Objetivamente, eu não considero que errei. Mas ver o sofrimento da minha gatinha ativou, sim, uma certa culpa em mim. Antes, meu pedido de desculpas era por ter esquecido completamente daqueles fatos. Agora, ao perceber o impacto emocional que isso causou, o pedido de desculpas passa a ser por esse impacto.
Fui atrás dela, que estava no balcão da cozinha com as crianças, preparando algo para elas e, aparentemente, brincando.
— Mãe, agora a mamãe vai te sujar — disse Mih, empolgada, me empurrando para perto de Juh.
Eles estavam brincando com a cobertura de um bolo, e a boca de Júlia estava toda lambuzada de chocolate.
— Eu tô bem limpinha, não quero brincar disso — falei rindo, para despistar.
— Vai, mamãe!!! — vibrou Kaká, incentivando Juh.
E, puta da vida, forçando um sorrisinho sem graça, ela segurou no meu rosto para dar um selinho. Eu segurei no dela, para me assegurar de que seria mais de um. A abracei e, enquanto eles riam de mim, virei nossos corpos em direção à pia, nos distanciando das crianças.
— Temos que terminar nossa conversa, ok? Quero te pedir desculpas direitinho... — falei no ouvido dela.
— Me solta — Juh sussurrou, brava. — E a nossa conversa já foi finalizada.
— Mais um beijo e eu solto — arrisquei, porém ela se desvencilhou de mim, e eu ri na cara do perigo, voltando para nossos filhos.
Brad estava devorando o bolo, e Milena e Kaique apenas apreciavam a cena.
— Meu Deus, esse cachorro não tem um estômago, tem um buraco negro — falei, e eles caíram na gargalhada.
— Pode fazer mal para ele — alertou Juh, e nós retiramos as migalhas que restaram.
Nós tomamos o nosso café normalmente. Fui cobrada novamente sobre mandar mensagem para os pais dos coleguinhas e resolvi começar imediatamente, ou eles não me deixariam em paz. A maioria confirmou logo, outros falaram que iriam pensar, e quando o mestre veio agradecer o apoio, enviei o número da mãe da Lalá. Ele disse que entraria em contato.
Como nossas malas já estavam na pousada, não precisaríamos nos preocupar com nada. Porém, próximo do horário de dormir, Milena se queixou de dor de cabeça. Quando Juh pôs a mão nela, percebeu que estava febril. Então, além de medicá-la, acrescentei alguns remédios para levarmos e os coloquei no carro.
— Vou dormir com ela — me comunicou Júlia, enquanto fazia carinho em Mih, que já estava agarradinha com ela.
— Traz ela para nossa cama — falei, porque era o que geralmente fazíamos.
— Não, não... Prefiro ficar aqui... — ela disse e depositou alguns beijinhos em Milena.
— Amor... — tentei.
— Até amanhã... — Júlia se despediu.
Pensei que não conseguiria dormir, mas estava bem cansada, não demorei a pegar no sono. Contrariando tudo que eu havia vívido naqueles dias, tive um sonho bem animadinho com minha gatinha. Ela nos meus braços, completamente sem roupa e eu ia passando meu rosto, contemplando seu cheiro delicioso e a maciez de sua pele. Acordei no momento em que dirigia meus lábios para o seu seio... Que azar!
Até fechei os olhos para tentar continuar aquele sonho que parecia real, mas, infelizmente, como sempre, não funcionou.
Resolvi levantar. Definitivamente, eu precisava de um banho. Não sentia mais sono e já estava próximo do amanhecer. Resolvi ir até o quarto de Mih para observar a temperatura e, quando cheguei lá, encontrei Júlia acordada.
— Como ela está? — perguntei.
— Eu ia te chamar... Acho que agora ela está com febre mesmo — ela me respondeu.
Aferi e constatei que realmente estava, mas preferi ficar ali por mais algum tempo antes de medicá-la outra vez.
Deitei com elas naquela caminha apertada, e os olhos de Juh preferiram se concentrar nas figuras de um cobertor que ela, com certeza, já havia visto mais de um milhão de vezes.
~ Eu fiz um monólogo, falei algo mais ou menos assim:
— Amor... — comecei a dizer em um tom bem baixinho — eu fiquei pensando muito naquela nossa conversa. E antes de qualquer coisa, eu queria te pedir desculpas. Não pelo que eu senti ou pelo que falei naquele momento com seus pais, mas por como tudo isso te fez sentir. Ver você magoada me doeu de um jeito que eu nem consigo explicar.
— A verdade é que, quando a conversa aconteceu, eu estava envolvida num momento bonito, cheio de carinho com Sarah e seus pais... E eu fui só eu: surpreendida e querendo ajudar, apoiar... Mas eu reconheço agora que, naquele instante, eu não parei pra pensar no que isso significava pra você. Eu devia ter pensado que essa conversa, por mais leve que tenha sido pra mim, tocava num lugar muito sensível pra você.
— Era algo que você merecia saber com calma, com cuidado, com preparo. E mais: era para estar ciente de tudo, desde o início. Queria te agradecer também… por ter me escutado mesmo com o coração doendo. E quero que saiba que não escondi por mal, eu realmente esqueci, e sei que no fundo você sabe que é verdade. Eu não conseguiria esconder nada de você, ainda mais algo tão grandioso como isso é. Só aconteceram muitas coisas aqueles dias e, de verdade, fugiu da minha memória...
— Se quiser conversar mais sobre isso, ou se quiser silêncio... Eu espero. Sempre vou estar aqui para você, porque eu te amo e você é a minha gatinha... — finalizei, tocando em seu rosto em forma de carinho.
Júlia ia responder, mas, nesse momento, Milena mexeu-se e acordou. Realmente, estava piorando e, como ela aparentava estar mais abatida, era melhor dar a medicação — e foi o que fizemos.
Mih, dessa vez, deitou por cima de mim e adormeceu. Quando pude olhar para o lado, Juh também estava de olhos fechados, aparentemente dormindo.
~ Mas ela já confessou que estava apenas fingindo 😑
A medicação fez efeito em alguns minutos e pude sentir a temperatura de Milena voltando ao eixo, para o meu alívio. Pela manhã, ela já estava mais animadinha.
Assim que chegamos na pousada, tinha uma grande equipe nos esperando para o café da manhã. Com certeza, foi um processo diferente do de Kaique. Eles se apresentaram, e logo a assistente social e o psicólogo saíram para o que seria algum tipo de entrevista, somente com meus sogros e Juh.
Kaká estava todo solícito com Mih e, ao invés de brincadeiras mais agitadas — como eles preferem —, sugeriu que jogassem Uno, e até chamaram algumas pessoas da equipe.
Eu fiquei conversando com uma senhora chamada Ivone, ela é advogada. Nosso papo começou com o assunto da adoção de Kaique, enquanto nós duas os observávamos se divertindo com o jogo. Mas logo toquei no assunto da nova adoção, que estava algo muito solto, um processo bem relapso, onde não caminhávamos, ninguém dava uma justificativa coerente e a gente ia passando de mão em mão, de profissional em profissional.
Ivone achou muito estranho e perguntou se queríamos a ajuda dela no ano seguinte. Eu disse que conversaria com minha mulher, porém provavelmente íamos precisar. Então, já peguei o número dela.
Depois de algum tempo, Júlia voltou, bem deslocada. Eu fui ao encontro dela e perguntei como tinha sido.
— Fiquei lá mentindo que era a favor e que, seja lá quem for entrar nessa família, será muito bem-vindo e amado — ela me respondeu, toda chateadinha.
~ Não vou mentir... me deu vontade de rir 🤣
— E seus pais? Falaram alguma coisa? — Perguntei.
— Disseram que me criaram com muito carinho e que desejam poder multiplicar esse afeto com o novo filho e blá, blá, blá... Falaram um monte de coisa desse tipo... — me respondeu, sem paciência alguma. — E você estava conversando o quê de tão interessante com aquela senhora ali? — me questionou, mudando de assunto.
— Ahhh, quero que você a conheça. Acho que pode nos ajudar... — falei, mas após alguns segundos, resolvi fazer uma observação. — Isso foi... ciúme???? — Perguntei, rindo dela.
— Não! Não sei quem te falou que nós estamos bem, pode parar com isso... Eu só estou... respondendo suas perguntas e tentando não demonstrar que estou puta com a minha família inteira, que esconde coisas importantes de mim!!!!! — Juh exclamou, em um desabafo.
Assim que ela terminou de falar, pareceu assustada, e eu só segurei em sua cintura, nos direcionando mais depressa para a mesa.
— Essa é a Dra. Ivone, amor... Ela achou estranho o nosso novo processo de adoção estar tão parado e nos ofereceu seus serviços para o ano que vem. O que acha? — Perguntei.
Elas se cumprimentaram.
— Acredito que seja uma boa ideia. Até eu, que estava achando normal, já não estou mais caindo nas desculpas dadas — disse a gatinha, olhando o cartão da advogada.
Logo Sr. José e D. Jacira voltaram. Estavam que nem eu: aproveitando momentos públicos para ter algum contato com Júlia, que só nos dava moral assim ou para não prejudicar o processo, ou para não parecer estranho para as crianças.
Percebi que aquele momento estava se estendendo e a chamei para arrumar nossas malas. Rapidamente, ela se juntou a mim em direção à pousada, porque minha muié se recusou a dormir na casa dos pais.
— Então quer dizer que você está puta comigo e mesmo assim quer ter mais um mininu? É muito amor, fala sério — brinquei, a agarrando por trás e dando um beijo em seu pescoço.
— Me soltaaaa! — ela pediu, brava, e assim eu fiz, porém rindo.
A minha consciência estava bem tranquila após dizer tudo que estava dentro de mim. Então, nesse momento, eu conseguia achar certa graça na situação.
Aparentemente, tudo era favorável para a adoção acontecer. Então, restava apenas lidar com o fato.
Enquanto a gente arrumava as nossas roupas e as das crianças no guarda-roupa, fui até o final da mala e joguei a cinta que estava lá no colo dela.
— A única que restou, já que você, impiedosamente e sem deixar eu me despedir, jogou tudo no lixo...
Eu posso jurar que ela sorriu nesse momento.
— A gente apostou, você sabia os riscos... — Juh me respondeu, voltando a ficar séria. — E eu vou jogar essa fora também!!! — Exclamou.
— Isso, joga no lixo da minha sogrinha, para que ela veja do que você gosta de brincar — zoei, e ela se jogou na cama, irritada, me fazendo rir novamente.
Brad entrou no quarto e, desesperada, Júlia jogou a cinta de volta para mim. Guardei em uma das gavetas, enquanto o aumigo aproveitava para ganhar um abraço bem carinhoso.
🚨 GRAVE 🚨
Perdeu tudo! Entenda o caso da psiquiatra que sentiu inveja de um pitbull, pois ele recebia carinho genuíno de sua esposa. Segue o fio! 🧶
CONTINUA... 🔥