Aproximei-me dele, colocando as mãos em seus ombros e me encostando para alcançá-lo. Pode ter sido impressão minha, mas a respiração dele também mudou, também porque a minha disparou que cheguei a ter uma vertigem. Ele notou e me amparou, olhando preocupado. Quando nossos olhos se cruzaram a centímetros de distância, parecia que eu estava de volta ao meu lugar seguro e estava realmente: era ele, ali, o meu homem, o meu Mark. Claro que me aproximei um pouco mais, intencionada em me entregar de corpo e alma, mas ele desviou o olhar e abriu a porta:
- Tentarei mandar ainda hoje a documentação para a Denise, Fernanda. Tenha um bom dia.
- Ah! É. É… - Suspirei e lhe desejei o mesmo, porém sem olhar em seus olhos para não começar a chorar um arrependimento que parecia não parar de crescer dentro de mim.
PARTE 12 - PISANDO EM OVOS
Fui para a empresa e a notícia de que eu viajaria já corria à boca pequena. Todos sabiam! Do “boy” ao “boi”, todos, sem exceção, já sabiam da minha viagem. Boi, só para constar, era o apelido maldoso que deram ao seu Toninho, vigia da portaria dois que, diziam as más línguas, tinha uma verdadeira coleção de galhadas oriundas do fogo da sua esposa, dona Ivonete, uma mulata que, perdoem-me tinha mesmo uma cara de safada.
Quando cheguei na minha sala havia um buquê sobre a minha mesa. Imaginando que fosse do Rick, peguei e o joguei no lixo. Depois uma secretaria do RH entrou na minha sala para eu assinar alguns documentos e perguntou se eu havia gostado do presente do seu Paulo:
- Presente!? - Perguntei.
- É, uai. O buquê.
- Era do seu Paulo? - Perguntei novamente, já me levantando e indo em direção ao lixo buscar o agrado.
Ela me olhou espantada, mas talvez não tenha ficado tanto quanto eu quando li o bilhetinho:
“Para a minha funcionária favorita, grande e querida amiga, e mulher dos meus sonhos. Que este seja o início de grandes realizações em sua vida, sozinha ou comigo. Meus mais sinceros votos de elevada estima e distinta consideração. Do seu Paulo.”
Como arregalei meus olhos e devo ter ficado vermelha, a Alice, a tal mocinha do RH, esticou seu pescoço tentando ler os escritos que eu havia ganhado. Claro que não deixe! Assinei os documentos e delicadamente a enxotei da minha sala. Depois liguei para o seu Paulo e, também delicadamente, “comi o seu toco”:
- Cê tá louco, Paulo!? E se alguém me lê esse bilhetinho? Já imaginou a merda que iria dar? A minha vida já tá uma bagunça e ocê vem querendo fazer farra no meu quintal!
- Calma, Fernanda. Pedi para o Gertrudes ficar de butuca. Ele não tava aí?
- Tava até a hora que eu cheguei…
- Isso aí! Mandei que ele ficasse de olho e não deixasse ninguém chegar perto do buquê além de você.
Conversamos mais algumas amenidades e desliguei, afinal, eu precisava trabalhar, colocar em dia todos os meus afazeres e deixar preparado para quem me substituísse enquanto eu estivesse fora. As horas passaram voando. Na hora do almoço, diferentemente do que antes eu fazia, decidi almoçar no refeitório da empresa, apenas eu e Deus, porque todos ficaram com medo de se sentar comigo. Parece que eu já havia me tornado um dos “intocáveis”, nomes dados aos diretores da alta administração.
À tarde, o trabalho também prosseguiu sem nenhuma novidade relevante. Aliás, teve uma sim: o Mark me ligou e disse que a Maryeva estava disposta a conversar comigo ainda naquele dia. Portanto, eu já deveria estar com a história na ponta da língua, porque ela iria me questionar:
- Mas o que eu falo?
- Para mim você disse “Vamos jantar, Rick.”. Para ela, eu não faço ideia do que irá dizer, mas é bom que seja uma história muito convincente, porque ela é esperta pra caramba…
- Igual você, né? - O interrompi.
- Se for leal como eu, já estará de bom tamanho.
- Ai, Mark, poxa!
- Quer que eu fale o quê?
- A Mi também vai estar com vocês?
- Vai. Ela disse que quer saber porque você saiu de casa…
- Ai, “Jesuis”!
- Presta atenção: seis e meia já estaremos lá na lanchonete. É melhor você não atrasar; faltar então, nem pensar!
Meu dia acabou! Eu não sabia o que falar para as minhas filhas. Para ajudar, o relógio resolveu trabalhar dobrado, aliás, triplicado, comendo três segundos a cada batida. Meu rendimento caiu a praticamente zero e pouco depois meu celular já indicava o fim do expediente. Levantei e sentei na minha cadeira várias vezes, sem saber o que falar para minhas filhas, mas eu precisava recuperar alguma dignidade, então, talvez uma verdade arranjada viesse bem a calhar.
Saí da empresa e fui direto para a região dos lagos. Eles ainda não haviam chegado na lanchonete, então decidi esperá-los. Alguns minutos depois das seis e meia, eles chegavam, animados, conversando, pareciam felizes, uma verdadeira família, uma que aparentemente já não era mais a minha.
Quando eles me viram sentada sozinha na mesa, a Miryan veio correndo e me abraçou, mas já não era o mesmo de antes. Apesar da impetuosidade de minha caçula, não havia a mesma energia que nos unia antigamente:
- Como você está, meu anjo? - Perguntei.
- Tô bem, mãe. Fiz uma prova de matemática hoje e acho que acertei tudo! O pai estudou comigo ontem.
- Que ótimo! Eu sei que você é muito inteligente; é certeza de acertou.
Mark e Mary se aproximaram também e me levantei para cumprimentá-los. Ele me esticou a mão e manteve distância. Ainda fiz um movimento de corpo para me aproximar mais dele, mas seu semblante passava uma mensagem simples e direta para mim: Não! Olhei então para a Maryeva que estava com um semblante carregado, triste, melancólico, não sei bem, mas não estava feliz, não mais, não agora na minha presença:
- Posso te dar um abraço, Mary?
Ela pareceu surpresa e olhou para o pai, como se pedisse ajuda ou permissão para aquilo. O Mark foi direto:
- Faça o que seu coração mandar.
Ela voltou a me encarar e balançou timidamente sua cabeça de forma afirmativa. Não perdi mais tempo e a abracei, saudosa da minha pequena altinha. Foi uma das piores experiências da minha vida, porque ela não reagia e só depois de algum tempo colocou sua mão direita nas minhas costas e deu quatro tapinhas. Isso quatro! Somente quatro tapinhas. Sua frieza comigo doeu de uma forma como eu nunca imaginei que doeria. Não aguentei mais e chorei abraçada a ela e só aí aconteceu algo que eu não imaginava: ela me abraçou forte, apertou e chorou junto. Ficamos as duas ali não sei por quanto tempo. Quando, enfim, nos soltamos, olhamos nos olhos uma das outras e vi uma tristeza imensa nos dela, certamente ela viu o mesmo nos meus.
Procurei o Mark que já estava sentando à mesa com a Mi em seu colo. Ela tinha os olhos marejados e um bico de dar dó. Também não aguentei e fui pegá-la, colocando-a no meu e chorei mais um pouco, aliás, choramos nós duas. Quando nos controlamos vi que Mary já havia se sentado ao lado do pai. Ele, aliás, também tinha um semblante carregado, mas, mais que tristeza, eu sentia o tamanho de sua decepção comigo. Sentei-me com a Mi no meu colo, mas ela logo trocou-me por uma cadeira do outro lado do Mark:
- Vocês… Vocês querem beber alguma coisa ou comer, sei lá? - Perguntei, sem saber como começar aquela conversa.
- Bom, eu acho que uma…
- Não! - Maryeva interrompeu o Mark, sem tirar os olhos de mim: - Talvez depois, agora não!
- Mary…
- Você queria conversar. - Interrompeu-me agora, séria e concentrada: - Estamos aqui. Pode falar.
- Calma… - Mark falou para ela baixinho, chamando sua atenção, e ela respirou fundo, voltando a me encarar.
- Mary é difícil. Eu nem sei por onde começar…
- Começa pelo começo, oxi! - Falou novamente séria: - E capricha: pode ser que você não tenha outra chance.
Olhei para o Mark e ele estava igualmente sério, não aparentando que me ajudaria em nada naquele momento. Dizem que quando estamos à beira da morte, um filme dos mais marcantes momentos passa na nossa mente; eu não estava nessa situação, mas nem por isso a minha era melhor, e vi várias passagens de nossas vida em família e da minha com o Mark em nossa outra vida. Pensei em contar toda a verdade para ela sobre nosso relacionamento liberal, porque talvez isso pudesse aliviar um pouco a carga que estava sobre os meus ombros, mas a que custo? Matando um pouco de sua inocência e fazendo com que pudesse deixar de olhar para o pai com o mesmo orgulho de antes? Decidi ser sincera, mas nem tanto:
- Mary, gente… Eu… Eu… Vocês se lembram que eu fiz um curso que tinha algumas provas presenciais em São Paulo, não se lembram? Ah, gente… Eu… Eu acabei conhecendo uma pessoa lá e ele mexeu comigo, demais mesmo, e daí… Bom, o… O Rick acabou me envolvendo e ele é muito legal, educado, charmoso… Não é igual ao seu pai, nunca vai ser, porque o Mark é o melhor homem que eu já conheci, mas… - Acabei me calando sem coragem de continuar.
Todos eles me olhavam curiosos e aguardando uma confissão que já não parecia mais necessária. Mary jogou a pá de cal:
- Você nos trocou por um homem. Por um estranho que você conheceu em poucos dias. Vocês estão casados há quanto tempo? Quinze, vinte anos, sei lá! Como você pode ter deixado de gostar do meu pai em tão pouco tempo? E a gente!? Você não pensou na gente!
Pela primeira vez vi o Mark ficar com os olhos levemente marejados. Acho que ele entendeu naquela hora que a raiva dela daquele dia havia sido uma explosão dos hormônios da adolescência, mas que agora quem falava era a decepção de uma mulher que estava sendo obrigada a amadurecer mais rápido que o necessário. O pior é que ele não tinha saída a não ser se controlar: se olhasse de um lado, denunciaria sua tristeza para a Mary; do outro, a Mi o veria triste. Ele respirou fundo, enquanto eu tentava novamente me justificar:
- Nunca deixei de gostar do seu pai, aliás, de amá-lo! O que eu sinto pelo Mark é amor. Não tenho dúvida alguma disso! Mas acabei, sei lá, me apaixonando pelo Rick, mas, sinceramente, eu já nem sei se gosto dele mais. Eu… Eu também estou confusa.
- Rick, Rick, Rick… Que bosta de nome é esse? - Começou a repetir seu nome enquanto balançava a cabeça negativamente e se virou para o Mark: - Pai, a gente pode ir embora? Eu acho que não tem mais nada para a gente conversar…
- Poxa, Mary, eu nem estou com o Rick mais. Eu sei que errei e feio com vocês, mas eu quero consertar. Só não sei como…
- Não tem nada o que consertar. Você escolheu. Ponto! - E voltou a encarar o Mark, já ficando de pé: - Pai, eu tenho prova amanhã, preciso estudar.
- Poxa, Mary…
- Mary, senta. - O Mark pediu, educadamente, mas vendo resistência do lado dela, foi mais incisivo: - Maryeva, senta!
Ela se sentou, encarando-o com aquele narizinho empinado e só então ele começou a falar:
- Você está começando a entrar na vida adulta e há coisas que você ainda não entende. Sinceramente, há coisas que nem mesmo nós entendemos. Uma dessas coisas é a paixão. Eu não duvido que sua mãe goste muito de mim, não sei se é amor, mas gostar bastante eu acredito. Só que ela se encantou por esse tal Rick, se apaixonou e aconteceu o que aconteceu. A sua mãe não é culpada. Se fôssemos procurar um culpado, eu diria que foram as circunstâncias…
- Tô entendendo nada… - Miryan resmungou e ele lhe fez um afago.
- Você não precisa entender, morzico, só precisa saber que a mamãe te ama muito e isso não vai mudar nunca. - Disse e se virou para a Maryeva: - As duas! Ama muito as duas.
Maryeva o encarava e não se convencia. Ele insistiu:
- Quando eu disse as circunstâncias, eu quis dizer que estar lá, sozinha, encontrar um cara bacana, que se interessou por ela, mexeu com ela, etc., tudo isso levou a sua mãe a criar esse sentimento por ele. Infelizmente, foi mais forte do que ela pode controlar.
Ela o encarava e agora balançava negativamente a cabeça:
- Uai, você não gosta de rock!? Renato Russo uma vez disse: “e quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração, e quem irá dizer que não existe razão.” - Falou e colocou sua mão sobre a dela: - Não fique brigada com sua mãe. Isso só faz mal para vocês duas. Eu sei que você a ama e ela ama você. A gente vai continuar sendo amigos, só não vamos mais ser marido e mulher. Só isso.
Ela baixou a cabeça como que raciocinando sobre tudo o que ele havia falado e soltou toda a sua sinceridade:
- Eu te conheço o suficiente para saber que não pensa assim, pai. Tudo bem que o senhor não queira brigar e tal, mas sei que não está feliz.
- Não, não estou, mas vocês ficarem brigadas não irá trazer nada de bom para ninguém, certo?
Ela o encarou um pouco mais e perguntou:
- Eu vou ter que aceitar esse tal Rick lá em casa?
- Claro que não! Nossa casa é nossa e ele não é bem-vindo.
- Eu vou ter que conviver com ele na casa dela? - Insistiu.
- Não. Nenhuma de vocês será obrigada a nada. Se quiserem conhecê-lo… - Fez uma cara que deixou claro seu desconforto: - Vocês que sabem, mas eu não vou obrigá-las a nada.
- Eu não quero. Nunca! - Virou-se para a mim e insistiu: - Entendeu?
- Nem eu! - Miryan retrucou, sei lá se entendendo o que estava sendo conversado ou não.
Balancei afirmativamente a cabeça e expliquei:
- Fiquem tranquilas. Eu… Eu nem sei se vou ficar com ele. Até acho que não. Sei lá, parece que o encanto se quebrou. - Falei e, pela primeira vez, com uma sinceridade tirada sei lá de onde, vi que o próprio Mark me olhou estranhando, continuei: - E se eu tiver que escolher entre ele e vocês, ele já perdeu. Tá bom?
- Aham, sei… - Resmungou, Maryeva.
- Você não acredita em mim, né?
- Você trocou meu pai por ele e abandonou a gente. Ainda quer que eu acredite em você!? Vai me desculpar, mas você não tá bem fita não!
O que eu poderia dizer? Ela estava certa. Eu havia causado tudo aquilo com base naquela decisão idiota que tomei naquele maldito jantar em São Paulo. Preferi não confrontá-la porque não teria como justificar o injustificável e me calei, cabisbaixa. Após um breve tempo em silêncio em que eu dava por terminada quaisquer chances minhas de reconquistá-la, ela própria me surpreendeu:
- Eu não sei como vai ser daqui por diante, mas não quero conhecer esse tal Rock…
- Rick, morzinho. - A interrompi e me censurei em seguida por ter feito aquilo.
- Que seja! Não quero conhecê-lo, não quero ir na casa de vocês, não quero ele na minha, não quero nada com ele, entendeu, mãe?
- Entendi, Mary, mas fica tranquila a gente não está junto e, como eu disse, não sei se a gente irá ficar.
- Tô nem aí! Ele ficando longe de mim, a gente pode até se entender. Ainda não sei como vai ser, mas vamos deixar a coisa acontecer.
- Obrigada, amor. - Disse e olhei para o Mark: - Ela está se mostrando mais madura que eu, mor.
Depois que disse aquilo, vi que o havia chamado de mor novamente, mas já nem me corrigi, afinal, ele mesmo parecia estar desistindo daquilo:
- Ah, outra coisa, vou morar com meu pai, não quero ficar na sua casa também. - Continuou sem me dar chance de respirar.
- Poxa, Mary…
- Não! - Interrompeu-me: - Não quero! A gente pode até conviver, mas não sei se quero ser sua amiga. Vai me desculpar, mas eu… eu só acho que não confio mais em você.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO, EM PARTE, FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL NÃO É MERA COINCIDÊNCIA, PELO MENOS PARA NÓS.
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