Foi mais ou menos nessa época que soubemos que o seu João havia dado uns, na própria definição da dona Maria, “catiripapos” no Celão. Parece que eles haviam sido convidados para uma festa de aniversário da Juliana, justamente a esposa dele, e o seu João exagerou na branquinha. Resultado: ele não pôs a boca no trombone, mas enfiou o trombone na boca do Celão. Como já corria à boca pequena uma certa “fama de mulherengo” para o Celão, a Juliana o colocou para fora de casa, baseado numa simples palavra dita pelo meu sogro: talarico dos infernos!
Talvez tenha sido essa a melhor lembrança que eu tive de todo esse período, pois comecei a rir sozinho enquanto montava hoje as minhas malas. Quando terminei de encher uma delas, recebo um telefonema, já imaginando se tratar da Sophie. Errei feio, era o Celão e embora isso tenha me atiçado a curiosidade, afinal, eu ainda não sabia se ele havia voltado para a sua casa, mas se tivesse voltado, talvez a novidade do nascimento do rebento o colocasse na rua em breve novamente, não o atendi.
[CONTINUANDO]
Ele, após a terceira tentativa, pareceu ter desistido e achei que assim seria melhor. O tempo passou e eu já havia arrumado a minha terceira mala e organizado algumas poucas caixas de artigos pessoais quando o meu celular tocou novamente, outra vez ele insistindo. Agora, eu o atendi:
- Arnaldo? É Marcelo, meu querido. Como estão vocês? - Perguntou, aparentemente não sabendo da novidade.
- O bebê e a Sophie vão bem, se é isso que quer saber.
- Maravilha! A gente queria… eu e a Jú… queria fazer uma visita para vocês, mas acho melhor deixar para daqui umas semanas, né? Afinal, filho novo, rotina nova, é tudo meio complicado…
- Ah é… Sempre dá um trabalho para o pai se ajustar nesses casos, né?
- Ah é! Mas já que você domina, cara, tenho certeza.
- Eu!? - Fingi surpresa, mas não contive um sorriso: - Para mim, não dará problema algum…
- Ué? Mas por quê?
- Estou saindo de casa…
- Como é que é!? Poxa, cara, vocês não se acertaram mesmo?
- Pois é... Acredita que o bebê nasceu bem escurinho? Parece nada comigo, mas lembra bastante um certo hóspede que ficou aqui em casa há uns tempos atrás, sabia?
Ele se calou, compreendendo de vez que o problema que afligia a minha família iria transcender limites territoriais, atingindo em cheio a dele agora:
- Que história é essa, Arnaldo?
- Pois é… Vem aqui conhecer o bebê e você irá entender muito bem o que estou falando. Ah, e não esqueça de trazer a Juliana! Aposto que ela irá adorar conhecer o novo enteado…
Ele notou que não havia mais brecha para conversas amenas, mas, como todo bom covarde, se despediu. Voltei a arrumar as minhas coisas e após aproximadamente meia hora, recebo outra ligação, esta da Sophie, que ignorei novamente. Uma hora após, o Celão volta a me ligar:
- Arnaldo, é… será que a gente pode conversar?
- Não! Não tenho mais nada para conversar com você. Além do mais, estou ocupado com a minha mudança e tudo o que não tenho é tempo para conversa fiada.
- Olha só… Eu sei o que parece, mas não é nada do que você está pensando. Eu juro! Eu e ela sempre usamos preservativo. Não tem como ele ser meu. Já estou começando a achar que a Sofi andou pulando a cerca por fora aí…
- Bom, meu é que não é! E desculpa, Celão, mas entre a sua palavra e um cachorro cagando, dou mais valor à merda do cachorro que pode sujar o meu sapato. Então, vê se me esquece.
Encerrei a chamada e bloqueei o seu número. Quando começava a carregar as minhas malas e algumas tralhas para o meu carro, o meu sogro chegou em casa. Eu sabia que eles estavam vindo para acompanhar o parto, mas a distância e um engarrafamento fizeram eles se atrasarem. Cumprimentamo-nos e soube que a dona Maria havia ficado no hospital, junto da Sophie e da Dete. Naturalmente, o recebi e ele, ao ver o que eu fazia, quis conversar comigo:
- A Sofi me “falô” que não sabe como “conteceu” isso…
- Isso o quê? O bebê ter a cara do Celão!? Eu sei como aconteceu… - Fui sarcástico, cansado de tanta gentileza ao meu redor enquanto eu me ferrava todo.
- Ela disse que sempre “usô” camisinha com ele e não parece mentir…
- O senhor viu o bebê, não viu, seu João? Com quem ele se parece?
Ele suspirou profundamente, constrangido pela obviedade da resposta:
- Eu até imaginei que ela tivesse se protegido, seu João, mas… fica difícil negar, né? - Dei uma risada nervosa e balançando negativamente a cabeça, completei: - Agora sei que o meu incômodo não era coisa da minha cabeça: era os chifres que tentavam me alertar…
- Ô, “fio”, sei nem o que “falá” “procê”. Ela disse que te ama e que o “contecido” não mudou “nadica de nada” do que ela sente por “ocê”. “Inté” disse que “ocês” “tavam” curtindo a gravidez…
- Não sei se ela me ama ou não, seu João, isso é com ela. E claro que eu estava curtindo a gravidez, era um filho, o meu filho, pelo menos eu pensei que fosse. - Minha voz embargou pela dor da verdade recentemente descoberta, mas logo me recompus: - Enfim, a minha parte eu fiz: cuidei dela e do bebê. Agora, é com vocês. Ah, e não se preocupe, no que depender de mim, ela vai receber tudo o que for de direito dela, mas pensão eu não dou! Ela não terá nenhum centavo meu para ela ou para o filho do outro. Que ela vá cobrar pensão lá daquele filho da puta, talarico, fura olho do caralho!...
- Nardo, ela me pediu para vir aqui porque não está conseguindo “falá” “cocê”. Acho que ela quer “conversá”, “explicá”, “tentá” “intendê”. Sei lá… pedir perdão…
- Hoje não dá, seu João! Como o senhor pode ver, estou de saída. Se o senhor puder, avise que vou deixar dois meses de aluguel já pagos. Depois, ela dá um jeito.
Ele se foi e coisa de meia hora depois, passei a receber várias ligações dela, além de mensagens. Cansado de tudo aquilo, mandei uma única mensagem, dizendo que estava terminando a minha mudança e que se ela continuasse me importunando, eu iria bloqueá-la e fazer um BO contra ela. Só então tive algum sossego.
Mudei-me para uma casinha simples, somente dois quartos, sala, cozinha e banheiro, mas era bem bonitinha com uma varanda ao redor, parte dela utilizada como garagem. No quintal, havia um bom espaço e um ranchinho nos fundos onde ficava, um quartinho de despejo, um banheiro e uma churrasqueira. Estava semi-mobiliada, pois o antigo morador havia se mudado para o nordeste, deixando como parte do pagamento de aluguel, o que foi providencial para mim, pois precisei apenas comprar alguns eletrodomésticos, um fogão e uma geladeira.
Já estava há 3 dias morando na minha casinha quando recebo uma chamada de um telefone que não conhecia. Pensando tratar-se de algum novo cliente, atendi e a voz era bastante conhecida, mas nada desejada: Celão. Se eu o bloqueasse, ele iria tentar novamente. Então decidi ouvir o que tinha para dizer:
- Eu sei que você não quer conversar comigo e não quero te desrespeitar, mas eu acho que a gente devia se encontrar e colocar o preto no branco. - Ele falou.
Caprichei na risada mais sarcástica possível e falei:
- Você já fez isso, cara! Já colocou o seu pretão na branquinha da Sophie. Assunto encerrado! Só espero que você seja homem agora e assuma a responsabilidade pelo que fez, tanto com o bebê, como com a Juliana. Aliás, você já contou para ela que é pai? Eu adoraria ver a cara dela…
- O que é isso, Arnaldo!? Não mete a Jú no meio dessa história, cara! Ela não tem nada a ver com isso.
- A sua esposa… não tem nada… a ver… com isso, Celão? Sério!? Então, deixa eu ser mais claro: se você não contar tudo para ela até amanhã, eu ligarei para ela e contarei, entendido? Mando até foto do bebê que está aqui no meu celular. Aposto que ela, como dizemos no direito, irá reconhecer a autoria e materialidade de imediato.
- Você não faria isso!
- Duvida de mim!? - Frisei e dei uma nova risada sarcástica: - Faço agora, se for o caso…
- Não, não, não! Eu… - Suspirou pesadamente e disse: - Eu vou contar, mas não quero fazer isso por telefone. Eu estou aqui na capital e queria conversar com você, pessoalmente, cara a cara.
- Passo a vez!
- Caramba, Arnaldo, quando é que você vai entender que nada aconteceu de má-fé? Só aconteceu, foi uma sucessão de eventos que nós acabamos antecipando, mas sempre pensamos em incluir você. Ok, nós erramos por ter adiantado tudo, sem antes saber se era a sua vontade também, mas teve todo um contexto, nós explicamos isso para você naquele dia na sua casa.
- Ah é, me lembro… Naquele dia em que você quase me matou…
- Você não me deu escolha! Foi você que partiu como um louco para cima de mim.
Ele ainda seguiu tentando me convencer a encontrá-lo, mas recusei. Só ali, quando ameacei novamente mandar a foto do bebê para a esposa dele, é que me toquei que as fotos do parto ainda estavam comigo. Assim que desligamos a chamada, mandei as fotos de imediato para a Sophie, com algumas simples mensagens:
Eu - “Havia me esquecido de te mandar as fotos do parto.”
Eu - “Mandei todas as que foram tiradas, com exceção da que eu posei como se fosse o pai.”
Eu - “Acho que essa não teria o porquê.”
Ela estava online e as recebeu de imediato, visualizando-a, mas não me respondeu. Instantes depois, ouvi um bip de mensagem recebida e vi que era a Sophie, respondendo e mandando uma imagem também:
Ela - “Obrigada, amor.”
Ela - “Posso te ligar?”
Refleti um pouco e sabia que se falasse com ela, aquela avalanche de sentimentos viriam novamente à tona e como um covarde, respondi:
Eu - “Melhor não.”
Ela recebeu a mensagem, visualizou e pouco depois enviou outra:
Ela - “Essa é a do Julinho, de agora há pouco.”
Ela - “Saudades de você.”
No anexo, uma foto do Juninho todo esticado sobre a cama, vestindo apenas fralda, curtindo o sono dos justos enquanto tomava um solzinho. Não sei se era a iluminação, mas a pele dele não parecia mais tão escura quanto no dia do nascimento, mas ainda assim era bem mais escura do que a minha. “Esse vai ser um mulatão bem bonito no futuro, ou morenão, sei lá...”, pensei, enquanto sorria para mim, mesmo sem saber o porquê. De repente, algo me incomodou e teclei instintivamente:
Eu - “Julinho!?”
Eu - “Mas não era Juninho?”
A Sophie respondeu praticamente de imediato:
Ela - “Não achei correto colocar o seu nome nele e também não achei justo mudá-lo totalmente, já que nós o chamávamos de Juninho durante a gravidez.”
Ela - “Daí o mais próximo que eu consegui imaginar foi Júlio e acabou ficando Julinho.”
“É! Errada ela não está.”, pensei. Como eu já dava por encerrada a conversa, não teclei mais, mas ela ainda me mandou outras, certamente por ter visto que eu lera a sua resposta:
Ela - “Mas eu ainda não o registrei com a esperança de que você pudesse, sei lá, entender.”
Ela - “Se tiver espaço para perdão no seu coração, podemos, nós dois, juntos, voltar a chamá-lo de Juninho.”
Ela - “Só depende de você…”
Eu não precisava dar seguimento a essa conversa, mesmo porque se eu dissesse que aquilo era praticamente impossível pelo trauma da traição dentro da minha própria casa, justamente pela pessoa em que eu mais confiava na vida, ela certamente ficaria triste, mais do que já deveria estar com a nossa recente separação.
Durante a gravidez, eu senti que o filho poderia ser um novo elo mais forte naquela corrente quase quebrada da nossa relação. Claro que ter sido traído fora muito ruim, mas ainda assim eu já começava a pensar na possibilidade de tentarmos novamente. Entretanto, ao ver que o filho certamente não era meu, a dor da traição foi potencializada de uma forma que eu mesmo não imaginava, simplesmente decidi que não dava mais.
Pedi que o meu patrão cuidasse do meu divórcio, afinal, não seria prudente eu próprio fazer, por ser uma das partes envolvidas.
Passados quase 30 dias da minha saída de casa, recebi a ligação de um número conhecido, mas que me surpreendeu bastante. Assim que atendi, a pessoa foi bastante objetiva:
- É verdade o que estão falando!? O filho da Sophie é do Celo? - Disse uma voz feminina.
No visor do meu celular havia surgido o nome do Celão, mas a voz não era. Curioso, por prudência, perguntei o óbvio:
- Juliana!?
- Claro que sou eu, Arnaldo! Não está reconhecendo a minha voz?
Realmente eu não estava, afinal, conversei poucas vezes com ela. Embora, eu não tivesse motivo para negar, omitir ou mentir, achei prudente não meter o dedo na ferida dela que parecia bastante recente:
- Desculpa, Jú, realmente eu não te reconheci.
- Tá! Tudo bem. E então? É dele?
- Jú, eu não quero mais entrar nessa história. É melhor você se resolver com ele. Me deixa fora disso, por favor.
Foi quase uma hora de insistência da parte dela e de justificativa, divagações, fugas covardes da minha parte, mas no final, ela desistiu, desligando, após me “elogiar” com várias palavras de baixo calão.
A vida seguia e o meu patrão logo me avisou que teríamos uma reunião com a Sophie para a próxima semana, para resolvermos alguns poucos últimos detalhes para partimos para o processo:
- Ela… não reclamou? Aceitou tudo?
- Não vou negar que ela ficou bem triste quando tive a primeira reunião com ela, mas acho que ela tem consciência do que fez e não quer delongar ainda mais a situação de vocês.
- Mas o que falta resolver? Não tínhamos casa, terreno... O carro sugeri ficar para mim e compensar a parte dela na nossa aplicação financeira. Então, eu não entendo…
- Ela não me disse exatamente o que é, mas não deve ser nada sério. Vamos ouvi-la. Analisamos o pedido e decidimos na hora, tudo bem?
Nesse meio tempo, recebi uma visita inesperada em meu trabalho:
- Quem, Jussara? - Perguntei à secretaria.
- Senhora Juliana. Ela disse que é sua… tia? Não, não! É tia-avó da Sophie.
- Aqui no escritório?
- Sim. Posso deixá-la entrar?
Concordei e a recebi. Juliana estava bem vestida, mas com um semblante meio abatido, muito diferente das vezes em que a encontrei. Assim que nos sentamos à minha mesa de atendimento, ela foi bastante direta em suas pretensões:
- Quero meter um chifre no Celão! Aquele safado merece receber a mesma moeda.
- Juliana, eu…
- E quero que seja com você! Nada mais justo que seja com você. Eu sei que você também quer se vingar. Não é possível que você não queira!
Realmente, eu já havia pensado tanto em tantas formas diferentes de me vingar do Celão que o tema já havia ficado batido para mim mesmo. Quando falei para ela que havia desistido disso, ela começou a chorar, praticamente implorando por uma pica, a minha. Mesmo que eu ainda quisesse me vingar do Celão, não seria usando a sua esposa traída que eu faria justiça a ninguém, especialmente à ela. Peguei um copo de água e esperei que ela se acalmasse. Ela então me perguntou como tudo aconteceu, talvez para tentar entender o ininteligível.
Expliquei o que eu já sabia, das minhas suspeitas que de infundadas se tornaram fundadas e depois comprovadas pela confissão de ambos. Ela se surpreendia a cada passagem e no final disse não entender como eu não consegui ver isso bem debaixo do meu nariz. Não posso criticar a Juliana por pensar assim, talvez por eu amar e confiar demais na Sophie, eu realmente tenha negligenciado a minha própria proteção, e acabou dando o que deu.
Ficamos mais de 1 hora no escritório. Depois, a levei para almoçar e, por fim, a deixei em seu hotel. Tentei muito fazê-la desistir da ideia de vingança e sinceramente, acho que não consegui. Mas dali por diante, ela teria que decidir e arcar com as consequências de seus próprios atos sozinha. Eu não participaria de mais nada desde que o Celão se mantivesse bem longe de mim.
No dia marcado, uma quarta-feira, pouco antes das 10:00, a Sophie chegou e fui avisado em minha sala. Fui até a sala de reuniões e quando entrei, ela já conversava com o meu patrão, balançando um carrinho de bebê. Ela estava linda para uma mulher que ainda estava de resguardo. Fui até eles e ela se levantou, me encarando. Fiquei sem reação. O meu patrão passou a balançar o carrinho enquanto a gente decidia como se cumprimentar. Timidamente, estiquei a minha mão em sua direção. Ela a olhou, mas não a segurou, optando por alisar a minha gravata e me criticar:
- Desse tamanho e ainda não sabe dar um nó decente…
Sorri para o comentário, porque ela não sabia dar qualquer tipo de nó. Vendo que eu não recusei o contato, ela se aproximou e me deu um beijo na bochecha. O contato dos seus lábios com a minha pele me arrepiou de imediato. Pior foi quando o seu cheiro, misturado ao seu perfume levemente adocicado e muito sensual, inundou as minhas narinas: senti o meu corpo todo formigar, tremer mesmo. Ela me olhava no fundo dos olhos e eu comecei a suar frio. Decidi que precisava retomar as rédeas da situação. Olhei então para o carrinho e vi que o Julinho encarava o meu patrão com uma cara invocada, mas que, mesmo assim, seguia tentando interagir com o pequeno. Abaixei-me, sentando numa cadeira próxima e o olhei, falando:
- Então, este é o Julinho, não é?
Imediatamente ele virou a face na minha direção, abrindo os olhos ainda mais, e sorriu. Aquilo me surpreendeu e doeu forte no meu coração:
- Ele deve ter reconhecido a sua voz… - Falou Sophie, também surpresa, mas com um sorriso emocionado nos lábios: - Fala de novo.
- Mas… Falar o quê?
- Qualquer coisa! Só fala.
Eu não sabia o que falar. Até sabia, mas não queria dizer “cadê o bebezão do papai”´, dito tantas vezes para a barriga da Sophie. Decidi então cantar uma simples canção infantil, um “atirei o pau no gato”, e não é que ele continuou me encarando e sorrindo, agora ainda balançando os bracinhos. Confesso: fiquei encantado e ao mesmo tempo triste! Meus olhos marejaram rapidamente, mas consegui controlar a emoção. O meu patrão, coincidência ou não, foi chamado na porta da sala e pediu licença, dizendo que se ausentaria por minutos. Preferi não desviar os olhos do bebê:
- Você é o pai… - Disse a Sophie.
- Não, não sou.
- Talvez não de sangue, mas ele te reconheceu de imediato. Não viu como ele se animou com você?
Era verdade, ele reconheceu a minha voz. Mas a outra verdade, a da sua origem, era um obstáculo que eu não conseguia transpor:
- Não é justo tirar de você o direito de ser pai, amor. Eu vejo nos seus olhos o quanto você quer isso. - Sophie se ajoelhou ao nosso lado e apertou o meu braço, chamando a minha atenção: - Se você me conhecesse hoje e se apaixonasse por mim, e soubesse que já sou mãe, não iria tratá-lo como se fosse o seu filho?
- A situação seria outra, Sofi. Não haveria traição, quebra de confiança, de cumplicidade…
- Verdade! Não nego o que fiz e vou me culpar por todos os dias da minha vida, por ter te magoado, mas não é justo condenar você e ele pelos meus erros, não vocês dois!
O bebê seguia a toda, atento, curioso, parecendo querer fazer parte daquela conversa, mas ela não era indicada para menores de idade. Sophie continuou:
- Durante a gravidez a gente estava se dando tão bem que eu acredito que seria questão de dias voltarmos a ser um casal. No meu coração, eu sentia que você já havia me perdoado…
- Perdoado!? - A interrompi, surpreso e concordei: - Talvez sim, mas esquecer o que aconteceu a ponto de voltarmos a ser um casal, isso já é outra história.
- Se você consegue ver a possibilidade de me perdoar pelo que te fiz, eu já fico muito grata. - Ela suspirou nesse momento, certamente tentando conter a sua própria emoção, pois sabia que era um momento decisivo: - Eu só te peço uma chance para corrigir todo o mal que te fiz e evitar que o Julinho sofra por isso também.
Olhei para o bebê novamente que seguia querendo interação, olhando com uma curiosidade que me fazia tremer de vontade de pegá-lo no meu colo. Não consegui conter uma lágrima e novamente a minha língua grande me traiu:
- Eu não consigo entender como você pode fazer isso comigo…
- Pelo amor de Deus, me deixa consertar. Eu sei que eu posso. Só me dá uma chance.
Suspirei profundamente enquanto enxugava a lágrima desgarrada e me sentei mais ereto, tentando não olhar para o bebê, nem mesmo para ela. Tentei me convencer de que um quadro branco ao fundo da sala parecia estar mais branco naquele dia, igual a convicção que eu tinha agora na minha cabeça. A Sophie ficou em silêncio enquanto eu pensava em como agir, mas seu silêncio não durou muito:
- Tudo bem. Eu te machuquei demais. Eu sei, eu entendo… - Houve um breve silêncio antes dela novamente continuar: - Será que eu posso te pedir só uma coisa antes de assinarmos o divórcio?
Eu a encarei, aguardando, e ela pediu:
- Será que você aceitaria só fazer um exame de DNA? Assim tiramos qualquer dúvida quanto à paternidade. Olha só para ele! Ele… já está bem mais branquinho do que no dia do parto. Eu… Só para não haver nenhum mal entendido.
Olhei novamente para o bebê e realmente ele estava mais clarinho, mas não o suficiente para me convencer da paternidade, pois os seus traços eram próprios e bem diversos dos meus e dos dela, além de outras características que realmente não eram próprias das nossas famílias:
- Você também acha que é dele, não é? - Falei.
Ela simplesmente balançou a cabeça, afirmativamente:
- Como você pode transar sem camisinha, Sofi? É muita irresponsabilidade… - Falei e como ela não retrucou continuou: - E se ele tivesse alguma doença? Poxa!
- Você não vai acreditar nunca e… tudo bem, eu te entendo, mas eu e ele nunca transamos sem preservativo. Eu te juro! Também não consigo compreender como isso pode ter acontecido.
- Nem um pouco? Nem um pouquinho sem, tipo como fazíamos nos tempos de namoro, dando umas esfregadas, umas enfiadas e só colocando quando a gente partia para finalizar o jogo?
- Juro que não! Sempre foi com preservativo. Só oral e anal que… - Ela se calou, envergonhada: - Umas vezes, sem...
Olhei para ela, inconformado, e realmente eu não acreditava nas palavras dela, afinal, a prova viva estava bem ali na nossa frente:
- Está bem, eu faço o DNA, mas eu já sei o resultado.
- Por favor. Só tira essa dúvida do coração. Depois, você decide o que quer fazer.
Concordei e fui atrás do meu patrão que não retornava. Quase demos uma “topada” ao abrir a porta da sala. Explicamos a nossa decisão e ele concordou em esperar. Aliás, ele próprio entrou em contato com o laboratório de um conhecido e fizemos rapidamente todo o procedimento. O resultado ficaria pronto em, no máximo, um mês.
Nesse meio tempo, tive que retornar a minha antiga casa para buscar o meu passaporte, pois talvez teria que fazer uma viagem internacional a trabalho para participar de uma convenção em Portugal. A Sophie me recebeu muitíssimo bem e, pela primeira vez, peguei o bebê no colo. Se ela investia pesado para me reconquistar, ele não deixava por menos, pois sorria sem parar para mim. Acabamos comendo uma pizza e tive o prazer (ou desprazer) de, pela primeira vez, ajudar a trocar a sua fralda, imensamente carregada com um baita cocozão, bem proporcional ao seu tamanho.
Ainda me encontrei com eles algumas outras vezes em diversos locais e oportunidades antes de recebermos o resultado do exame. No dia em que ficou pronto, fomos chamados até o laboratório e ela me perguntou se queria abri-lo na presença do advogado, o meu patrão. Disse que não seria necessário, que poderíamos fazer ali mesmo. Aberto, o óbvio ficou constatado, o Julinho era o meu filho:
- Como é que é!? - Perguntamos nós dois, ao mesmo tempo, praticamente juntos.
- Exato! O índice de combinação genética entre o pai e a mãe é de 99,99% de exatidão.
- Mas como pode, ele… ele é meio mulato. Eu sou branco como um copo de leite! - Falei, sem levar em conta o racismo estrutural em minha criação.
Vendo a nossa confusão, um médico responsável foi chamado para nos explicar melhor os resultados. Pedi que fosse feito um novo exame, mas ele foi taxativo, dizendo que o exame havia sido feito em regime de prova e contraprova, como praxe do laboratório e não havia nenhuma dúvida. No final, explicou:
- Talvez um de vocês tenha algum antepassado.
Vendo que eu partiria para a “ignorância jurídica”, ele se dispôs, a um preço módico, fazer um mapeamento genético meu e da Sophie, a fim de encontrar a origem de tal coincidência. Fizemos a colheita do material genético e saímos dali, atordoados pela novidade. A surpresa estava estampada no rosto da Sophie. A improbabilidade operou a seu favor, trazendo um novo sopro de esperança para o que parecia perdido. Ela foi direta:
- Você ainda quer assinar os papéis?
- Sophie, eu não estou entendendo mais nada! Ele é escurinho, você sabe que é.
- Arnaldo, eu não sei o que dizer, mas o exame fala que você é o pai. Então, até prova em contrário, você é o pai dele, amor. Comemora, homem!
Despedimo-nos com um abraço, o primeiro que eu me propunha a dar na Sophie em tempos. Também despedi-me rapidamente do Julinho, ganhando um baita sorriso de volta e acabei não aguentando, pegando-o no colo para me despedir com um pouco mais de vontade.
Já no escritório, o meu patrão veio até a minha sala quando soube que eu havia retornado e sem papas na línguas perguntou o resultado do exame:
- É meu. - Falei bastante confuso.
- Como é que é!? - Ele fez uma cara absurdamente surpresa, corrigindo-se na sequência: - Digo… Então, por que essa cara, Arnaldo?
- Ele é mulato, quase negro…
Expliquei então toda a situação ocorrida e o exame de mapeamento genético que o médico do laboratório nos sugeriu. Ele entendeu, acenando positivamente com a cabeça. Entretanto, meu patrão, um homem sagaz e mais do que isso, um grande ser humano, sacou de imediato que eu estava em dúvida e foi praticamente um pai para mim naquele momento:
- Arnaldo, não é melhor você pensar um pouco antes de prosseguirmos? Antes você tinha certeza porque tinha raiva; agora você tem dúvida porque pode estar amando…
- Que história é essa, Vicentão!? - Perguntei, interrompendo-o.
- Sou mais velho do que você, cara. Já vivi um bom tanto para saber que você está balançado. Eu só não sei se pela Sophie, pelo bebê ou por ambos. - Ele falou enquanto olhava no fundo dos meus olhos: - Mas agora, com essa história de que o bebê é realmente o seu filho… Posso te fazer uma pergunta meio íntima?
Anui com um movimento de cabeça e ele perguntou:
- Você ainda ama a Sophie, não ama?
Envergonhado, confirmei com um movimento de cabeça. Ele prosseguiu:
- Já conseguiu perdoá-la da traição?
- Olha… Diacho de pergunta complicada… - Suspirei profundamente e me abri: - Não nego que eu pensei em dar uma nova chance para a gente, afinal, com um filho, as coisas poderiam se ajeitar. Mas aquela conversa que eu tive com ela, tentando justificar o que ela fez bem debaixo do meu nariz… Aquilo me quebrou.
- Tá… - Ele coçou o queixo, desviando o olhar para acima do seu lado direito, depois voltando a me encarar: - Olha só, ela fez uma escolha equivocada, errada mesmo e te feriu com isso. Também foi imprudente em transar sem preservativo…
- Ela me disse que nunca transou sem preservativo, Vicente, e eu duvidei, mas agora já estou acreditando. - O interrompi, novamente.
Ele pensou em silêncio por alguns instantes e prosseguiu:
- Certo! Vamos seguir essa linha de que a Sophie tenha falado a verdade, como realmente parece… O único erro que ela cometeu foi ter te traído, concorda? Afinal, a gravidez foi de um filho seu.
Concordei com um meneio de cabeça:
- Mas se esse foi o único erro e você já a tinha perdoado, o que te impede de recomeçarem juntos?
- Eu posso tê-la perdoado, mas como continuar vivendo com uma mulher que não mede as consequências dos próprios atos? Ela ter vontade de transar com outro não me ofende. Vamos dizer que eu tenho um lado mais liberal e acho que se ela tivesse me proposto isso, eu acabaria até aceitando. O problema foi justamente ela não ter confiado em mim e ter sido cúmplice de outro, entende?
- É! Vendo por esse lado…
- Não sei. Eu… realmente não sei. Acho que vou esperar esse exame e ver o que decido depois.
O exame, por ser uma novidade no próprio laboratório e por toda a história envolvida, demoraria um pouco mais para ficar pronto. Nesse meio tempo, tive a oportunidade de me reunir com três tios no aniversário de um deles, irmãos do meu falecido pai. Eu precisava entender melhor a minha própria família e perguntei se, por acaso, tínhamos algum ascendente negro na família. Quando perguntaram o porquê, expliquei a situação, cuja traição já não era mais novidade para ninguém, uma vez que a Juliana acabou fazendo o que havia ameaçado: traiu o Celão com um amigo íntimo dele, parça de futebol, filmando a foda e lhe dando em um pendrive como presente de seu aniversário, além de ainda ter colocado a boca no trombone sobre a traição que ele e a Sophie fizeram para mim. Notei, nesse momento, que ambos os meus tios ficaram tensos e se entreolharam, mas dois deles negaram, afinal, éramos todos descendentes de italianos, mas o tio Roberto não se segurou:
- Sim, todos nós somos, mas o Arnaldo pode não ser…
- Betão, qual é, cara!? - Interrompeu-o o meu tio Vanderlei.
Meu outro tio, Maurício, apenas balançou negativamente a cabeça e suspirou fundo, certamente por saber a bomba que estava por vir:
- Como assim? - Perguntei.
- Arnaldo, essa era uma coisa que os seus pais deveriam ter te contato, mas já que eles não estão mais aqui, acho que vai sobrar para mim. - Meu tio Roberto suspirou fundo, olhando-me constrangido e então disse: - Você é adotado.
- Como é que é!? Mas que porra é essa, tio?
Ele passou então a me contar toda a situação que envolveu a minha chegada na família, deixando-me aturdido. Contou que minha mãe realmente esteve grávida, mas que perdeu o bebê no parto, além de ter ficado muito mal, a um passo da morte. Naquele mesmo dia, uma outra gestante, uma moradora de rua, havia falecido no parto e o meu pai, desesperado, subornou uma enfermeira para trocar os bebês, além de que, como a moradora de rua não tinha ninguém por ela ali, a enfermeira achou que seria uma solução justa. Assim foi a minha entrada na família: a minha mãe me recebeu, sem saber de nada, e teve a oportunidade de ser mãe por 3 dias, falecendo depois de uma complicação que ninguém nunca soube explicar direito. Ao final da conversa, o constrangimento de todos era evidente:
- Mas seu pai, nem ninguém da família, nunca te tratou como estranho ou alguém de fora. Você é da família e será sempre. - Disse o meu tio Maurício.
- Poxa! Ele não precisava ter escondido isso de mim.
- Talvez, ele tenha tido medo da sua reação, Arnaldo. Quem sabe… - Disse agora o meu tio Vanderlei.
Agora a hipótese do Julinho poder ser Juninho, o meu Juninho, começava a ser bastante plausível. Restava apenas aguardar o exame genético para confirmar de vez a situação. De qualquer forma, achei prudente não comentar sobre isso com a Sophie ainda, afinal a nossa situação ainda continuava bastante incerta.
Dediquei-me a ser mais presente na vida do Julinho enquanto isso. Ia uma vez por semana, às vezes, até mais à casa da Sophie, visitá-lo. Ela sempre fazia questão de me receber muito bem, além de proporcionar momentos e jantares muito agradáveis “em família”, como ela dizia.
Após quase 90 dias, o resultado do exame ficou pronto e o meu mapeamento genético comprovou que eu era um afrodescendente, embora fosse mais branco que um palmito. Por uma questão de zelo, o laboratório ainda localizou e fez uma correspondência entre os genes da minha matriz africana com os do Julinho, retirando qualquer dúvida quanto à paternidade.
No dia seguinte, fiz questão de registrá-lo com o nome que já havíamos antecipado: Arnaldo Diamante Prados Júnior. A Sophie vibrou quando viu a certidão do bebê, agora Juninho para sempre. Ela me convidou para comemorarmos num jantar a três em sua casa, aceitei. Eu sabia a sua intenção e eu já tinha a minha decisão.
Nesse mesmo dia, por volta das 20:00, cheguei em sua casa, mas os cumprimentos tiveram que ser rápidos e curtos, por causa de um cheirinho intenso. Eu olhei para ela que sorriu e disse:
- Ter um bebê é estar pronto para essas surpresas. Ele deve ter enchido a fralda.
Os acompanhei até o quarto do Juninho e ela foi bastante rápida, afinal, o cheiro era de morrer. O Julinho parecia alheio a tudo, olhando para todos os lados. Assim que ela terminou e eu despachei a fralda numa sacola lacrada no quintal, fomos até a cozinha, onde ela terminava de preparar a comida. Ela me ofereceu vinho e cerveja, mas quando disse que a acompanharia:
- Não posso beber, Naldo!
- Nem a cerveja preta!? Ouvi dizer que é bom para aumentar o leite…
- Mais!? Eu já me sinto uma vaca holandesa! Se fico sem dar de mamar de três em três horas, começo a vazar. - Ela então olhou para baixo e já viu uma manchinha surgir: - Olha aí o que eu falei.
Ela pegou desabotoou a sua blusa e o sutiã, e, naturalmente, fiquei embasbacado com aqueles lindos seios, agora ainda mais grandes, com aréolas mais escuras e úmidas do leite que já brotava. Ela sorriu, levemente constrangida, mas feliz por saber que ainda permeava meus pensamentos e pegou o Juninho. Eita bebê de sorte! Como mamou gostoso... Chegou a dar água na minha boca.
Servi então um suco para ela e uma cerveja para mim enquanto ela amamentava. Assim que terminou, perguntei se eu poderia fazê-lo arrotar. Ela ficou surpresa, mas com um sorriso nos lábios, concordou. Forrei o meu ombro e peguei o bebê. Como da primeira vez no hospital, ele logo arrotou, mas sem regurgitar dessa vez. Após isso, sentei-me e fiquei com ele no meu colo, encarando-o que seguia fazendo o mesmo comigo. Ousei trocar algumas palavras com ele que simplesmente reagia e sorria a cada palavra dita. Claro que eu estava feliz, afinal, quem não sorriria numa situação daquelas. Só então olhei para a Sophie que tinha um cotovelo apoiado na mesa, sorrindo com um dedo na boca, enquanto nos olhava:
- O que foi!? - Perguntei.
- Eu ia perguntar justamente isso, o que está acontecendo com a gente, Naldo?
- Eu queria conversar…
- Táááá… Sobre o que? - Perguntou com um sorriso no rosto.
Olhei novamente para o bebê que agora bocejava e depois voltei a encará-la:
- Sabe… Uma coisa que nunca entendi foi… por que logo o Celão? Foi tudo pelo pauzão dele?
Ela se calou, olhando-me com serenidade e após um breve instante, falou:
- Ele já te falei que ele foi o meu primeiro homem. Acho que ficou uma coisa guardada na minha memória e quando o reencontrei, acabou me despertando alguma coisa e aconteceu novamente.
Eu já imaginava e o rumo daquela conversa não ia terminar bem para nenhum dos dois. Tentei desconversar e o fiz da pior maneira possível:
- Você se arrepende de alguma coisa na sua vida, Sofi?
Ela abriu levemente os seus olhos e após alguns segundos em silêncio, olhando para uma parede vazia, falou:
- Você sabe que sim, Naldo! Não tem um dia que eu não lamente ter feito o que fiz com você.
- Me traído!? - Insisti, obviamente interessado na resposta.
- Claro, né! Eu errei. Eu… Eu… Poxa! Eu interpretei errado, agi errado, da forma errada, na hora errada. Eu devia ter sentado com você, conversado direito sobre aquela sua proposta e se ainda tivesse espaço, a partir daí, deveria ter combinado com você e tentando encaixar o tio na nossa vida. Eu fui um cretina…
Senti força e sinceridade em suas palavras, pois em nenhum momento ela desviou o olhar de mim, mas eu ainda queria mais:
- Eu já te perdoei, você sabe, né?
- Sei, e sou muito grata, mas é o suficiente para a gente se entender?
Levei o Julinho, que já ensaiava um soninho gostoso em meus braços, até o carrinho. Ela se levantou e foi tirar um assado do forno, colocando-o sobre a bancada da pia. Eu sabia o que queria da minha vida e era o momento de ser sincero:
- Eu sei o que você quer de mim, Sofi, mas… - Calei-me enquanto ela me olhava pálida: - Hoje, infelizmente, eu não consigo.
Ela suspirou profundamente, em silêncio. Seus olhos marejaram rapidamente, mas ela não chorou. Foi forte, muito mais do que eu imaginava que seria. Ao final de bons segundos ou minutos de um silêncio constrangedor, ela falou:
- Eu entendo… Eu estraguei tudo.
- Nem tudo. Prova disso é o nosso bebezão aí.
- Mas não foi suficiente para a gente ficar juntos…
- Nunca seria! Para um casamento dar certo, duas pessoas tem que se querer, se respeitar, e, desculpa a franqueza, você não me respeitou naquele momento.
- Eu sei! Mas eu já te perdi perdão…
- E eu te perdoei. Mas como posso confiar novamente?
Nós ainda jantamos juntos nesse dia, em silêncio, constrangidos e tristes, mas conseguimos estabelecer um objetivo comum: a criação do nosso filho.
Na semana seguinte, assinamos os papéis do divórcio e nos divorciamos efetivamente. A divisão do patrimônio foi fácil, fiquei com o carro, ela com os móveis e eletrodomésticos que guarneciam a casa, e a compensei da diferença numa aplicação que tínhamos, dividindo o restante. Ela seguiu morando em nossa antiga casa e eu na minha nova. A guarda do bebê não foi compartilhada, afinal, ele depende muito mais dela nessa fase inicial da vida do que de mim. Ainda assim sou presente e sempre que posso vou visitá-lo.
Soube por ela, num dia em que visitava o Juninho, que o Celão andava mansinho ultimamente, tentando reconquistar a Juliana, ainda mais agora que podia dizer que o filho não era dele, mas parecia não estar sendo bem sucedido, uma vez que ela já estava se envolvendo com um médico da cidade.
Eu tenho investido mais em mim, trabalhando bastante, malhando bastante e estudando para um concurso público. Com filho, agora tenho um motivo para me empenhar ainda mais, afinal, preciso garantir o futuro do miúdo que de miúdo não tem nada. Já a minha vida amorosa, deixei estacionada por um tempo: se acontecer, ótimo; se não, bom também. Naturalmente, tenho meus casinhos, mas nada que justifique uma nova relação.
A Sophie também parece estar se virando muito bem. Tem trabalhado bastante e começou uma pós graduação. Soube também por amigos em comum que um conhecido nosso está tentando conquistá-la, mas que ela tem feito jogo duro com o rapaz. Parece que eles chegaram a sair uma ou duas vezes. De qualquer forma, torço para que ela seja feliz, mas acho que não será com ele, pois também sei que ela vem frequentando bastante algumas baladas, dias em que fico com o Juninho, mas, enfim, ela é divorciada e agora pode fazer o que quiser, com quem quisesse, sem prestar contas à ninguém.
O tempo passou. Exatamente quase 1 ano após o nascimento do Juninho, a Sophie me convidou para resolvermos algumas questões sobre o aniversário que se aproximava. Cheguei a sua casa, a nossa antiga casa, por volta das 18:30 para visitar o meu filho e resolver tais questões. Assim que apertei a campainha, um homem que eu conhecia de vista, dono de um supermercado local, atendeu à porta. Cumprimentou-me e educadamente pediu que eu entrasse. Então, chamou a Sophie. Ela estava linda, simplesmente deslumbrante, vestida com um vestido floral de tons azuis claros, justo no corpo e mais esvoaçante na saia, com um simples mas belo decote, enfim, o tecido apenas serviu para deixá-la insinuante.
Sentamo-nos todos à mesa da cozinha. Sophie nos serviu um café e bolo. Eu fiquei com o Juninho no colo enquanto resolvemos as questões do aniversário. Fábio, o outro, ficou sentado ao lado dela, participando educadamente da conversa. No mesmo momento, entendi que ela estava reconstruindo a sua vida e talvez fosse melhor assim. Assim que decidimos todos os detalhes da festa e do buffet, todos nós nos levantamos e ele se despediu, saindo. Olhei para a Sophie sem entender e ela explicou:
- Ele é só um amigo, namorado de uma colega minha da academia. Ele é o dono do salão onde faremos o aniversário e queria saber os detalhes do que planejamos. Só isso!
- Ah… Pensei que ele fosse o seu…
- Namorado!? - Ela sorriu e começou a enrolar uma mecha do cabelo, olhando diretamente para mim: - Não… Mas eu… estou me envolvendo com outro.
- Bom. Já faz tempo, né? Você é uma moça muito bonita, deve conseguir alguém em breve.
- É!? - Olhou profundamente em meus olhos.
- Eu!?
- E quem mais?
- Você deveria virar essa página, Sophie. - Falei certa vez para ela, com o Juninho no colo.
- O livro quando é bom, a gente lê novamente. - Disse e me piscou o olho.
- E correr o risco de repetir os mesmos capítulos, até os ruins?
- Não mesmo, mas toda história de amor boa, merece uma continuação muito melhor e sem os erros gráficos do primeiro volume.
- Você é incorrigível, Sofi!
- Será!? Por que não paga para ver?
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO TOTALMENTE FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
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