Eu amo meu marido.
Ele disse que eu fiquei linda com um corte de cabelo horroroso. Incorporei um monte de roupas do chatinho no meu guarda-roupa, o negão dele deixou, disse que se confunde quando me vê de costas com aquelas roupas, mas que era uma dor boa de sentir, ia levar muito tempo pra passar, melhor viver o luto com confusão e um pouco de bom humor.
Eu usava as roupas mais comuns dele, camisetas e calças de moletom, camisas de linho e calças xadrez, calções em casa e eu usava isso com chinelos e topless.
Passei naquelas provas me arrastando em algumas, mas sem notas baixas, o negão (chamo assim porque ele pedia para ser chamado assim, o chatinho chamava e ele ficava puto, hoje ouve isso e gosta e pede para ser chamado assim...) Acabou que meu irmão teve de se desfazer do compromisso de última hora, uma netinha nascendo, mas os dois dias antes da viagem foram suficientes para nós nos acalmarmos, o francês ficou, não queria retornar àquela cidade. Fomos ao escritório da funerária e pegamos uma caixa de papelão muito semelhante àquelas dos correios, com um adesivo lacrando e um número identificando que ali era tudo o que restou de meu cunhado, um saco plástico lacrado dentro de uma caixa. O negão passou na casa deles e não houve como o retirar de lá, o francês pegou o carro de meu marido e veio se juntar a ele, trouxe as coisas de ambos, acabou retornando àquela cidade antes do que qualquer pessoa pudesse supor, ninguém perguntou como funcionava a dinâmica entre os dois. O oftalmologista disse que sabia que a resposta seria não, queria ficar com o chatinho em pó, a resposta foi que ele gostariam muito de fazer assim, mas nem meu marido e nem seu irmão poderiam abrir mão disso, ainda que quisessem, e o negão entendeu. Nos despedimos com abraços, perguntei ao francês se ele ia ficar bem, ele me chamou em um canto, me agradeceu por tudo o que eu havia feito por ele, disse que eu tinha ganhado mais que um irmão, um aliado.
Eu chorei, calma, bem calma, ele disse que eu estava precisando parar de usar as roupas de um homem morto, eu precisava decidir voltar a ser mulher. A gente tinha de ir e eu tinha convicção que ele havia esperado esse momento para falar, para eu amadurecer meus argumentos antes de responder a ele.
Eu nem tinha o que responder, eu sei o que ele estava insinuando, só não disse com todas as letras. Eu fiquei estranha no banco de trás e os outros três atribuíram isso ao rapaz em pó que transportávamos no porta-luvas. Paramos em um posto de gasolina, desses enormes que caminhões são estacionados e motoristas descansam depois de foder alguma prostituta ou outro caminhoneiro. Jantamos com cerveja, porque íamos dormir lá, porque havia cansaço, mau-humor e vontade de brigar em cada pedacinho da gente.
Então eu disse que estava sendo confundida com um rapazinho, um moleque que queria ser adulto, só quando eu falava sobre a coisa que estava se formando dentro de minha cabeça e eu não fazia ideia até outra pessoa jogar luz sobre o que desconheço de mim.
Meu marido fez uma pergunta muito difícil de ser respondida, ele disse que foi muito complicado e doloroso se aceitar bissexual, não houve ameaça, violência ou nada que ele tivesse de abrir mão, mas foi um preço alto. Algo como rasgar a pele sem saber que havia outra por baixo, mais forte e mais bonita, mais adequada a quem ele acabou se tornando. Ele sobra o café que estava pegando fogo e toma um gole, fazia isso para eu receber as informações aos poucos, diz que só resistiu porque eu estava do outro lado chamando o nome dele, ele atravessou, não um inferno, mas um purgatório a nado e chegou até o momento de se sentar em uma mesa com outras três pessoas e dizer que ama cada um de nós na mesma intensidade por motivos diferentes, sabe que a gente se ama e que não vamos nos separar por nada. E ele me pergunta o que é necessário fazer para que eu me veja feliz com a imagem que eu quero ter no espelho, ele me olha e pergunta qual nome deve chamar em meu ouvido quando estiver enchendo meu cuzinho de porra, porque era isso que ele ia fazer, não importa, passar de hétero para bi havia sido difícil, mas de bi para pansexual parecia só mais um degrau e não uma montanha imensa. Ele me beija e pergunta o que eu quero fazer.
Eu o beijo, um beijo angustiante, breve, cheio de lágrimas que me derrubam. Me desculpo por essa crise vir numa hora tão ruim. O doutor sorri e diz que seu irmão acharia o máximo a dor ser diluída em outro problema, a palavra problema fica mal na mesa, ele diz que é um problema, como as questões de matemática são um problema até a chegada da solução, e minha solução estava no não quero, ou no sim, e como seria o sim.
O portuga diz que precisamos comprar salgadinhos, água, biscoitos, suco, de madrugada não teremos o que beber ou comer, começa a ficar frio, nem eram oito ainda, foi depois de comprar as coisas, deixar nos dois quartos é que resolvemos descer. Novamente o portuga diz que não queria que o doutor arrumasse ninguém, éramos mais que suficiente, ninguém parecia querer se ficar na cama dele e propõe um rodízio para suportar a difícil tarefa, ele se candidata a ser o primeiro, até porque meu marido e eu estávamos de mãos dadas o tempo inteiro e ia ser estranho eu dormir com outro cara, era um ambiente tanto facilitador quanto retrógrado para isso. Ok.
O doutor diz que ia negar os motivos da sugestão do portuga, mas podíamos tentar ser um quarteto, tanta gente passa e só nós passamos por essa seleção, ninguém parecia ser como nós.
A gente estava falando isso com as bundas coladas na lataria do carro, ele diz que queria ficar bêbado e depois ser comido pelos dois, meu marido diz que ele nem gostava, o doutor diz que gosta, não se sente bem, é diferente, menos conosco, conosco ele se sente bem fazendo qualquer coisa, por isso tinha certeza que independente da escolha que eu fizesse eu ia ficar bem, eu sou parte disso, um beijo no pescoço dele e eu me senti segura em dar. Eu disse que estava consumindo muita pornografia, o portuga diz que todo mundo lá de casa, eu falava sério, eu meio que estudando possibilidades, eu pensava em manter minha boceta, gosto dela, talvez eu estivesse me tornando um homem gay, ou um veado que gosta de mulheres de vez em quando, mas mulheres me deixam inseguro e eu não sei o que fazer, o doutor nota que falei sobre mim mesma no masculino, eu fico paralisada, o portuga diz que o cara gostoso que nos mostrou os quartos se chamava Jorge, era um cara de vinte e poucos, meio moleque ainda, mas fortinho, pouco mais escuro que eu, o portuga diz que podíamos brincar de quatro homens gays que estão num hotel fuleiro na beira da estrada e meu nome é Jorge, porque sou um veadinho inexperiente e assustado.
Os outros dois concordam imediatamente, eu fico realmente assustada, meu marido diz que era fácil saber onde a brincadeira ia acabar: dois comendo o cu do doutor e três comendo o meu. Eu não queria me chamar Jorge, o portuga me diz que meu nome é Jorge aquela noite, exceto se eu tivesse um nome melhor, e diz que preciso de roupas novas, ou mandar aquelas para doação, tirar o repicado do cabelo, eu parecia um paneleiro de uso publico, e eu era um veado tímido, porque sou uma pessoa tímida.
Me pareceu uma verdade, arrumei o cabelo, falaram que eu provavelmente ia ficar com um grelo ainda maior que o que tenho agora, ia ficar uma coisa gigante, ia ficar com um bocetão por fora, talvez calvo, barba imprevisível, perguntei se eles estavam estudando sobre isso, desconversaram, nenhum dos três me encarando, exigi respostas, disse que eu ainda era a única mulher, portanto mandava nos três e exigia uma resposta.
Eles me ignoraram indo para o bar, eu podia ouvir os resmungos, idiotas. Eu estava de luto, cansada, acumulando tarefas da faculdade, mentindo sobre um romance clandestino, triste, ansiosa, me sentindo culpada, pesava em meus ombros uma ocultação, com medo, com vergonha, vestida com roupas enormes de um defunto, com um péssimo corte de cabelo e indo encher a cara para em seguida tomar no cu. Mas achando que tudo ia ficar bem.
Bebemos, em certo momento meu marido manda uma mensagem no nosso grupo de Whatsapp, sempre tivemos um só de nós quatro, sei lá... não quero tentar entender. Meu marido dizendo que mamaria muita piroca no banheiro, a conversa segue por mensagens, o ursinho diz que pegaria o barrigudinho porque sabe que nenhum de nós pegaria, não era uma barriguinha, aposto que ele não conseguia ver mais parte alguma do pau, o cara era feio, respondo que não sou milionário pra fazer filantropia, eu não fazia caridade, fazia boquete, rimos. Porra, era completamente diferente, o jeito de estar com eles era outro. Eu estava decidindo mudar, acho que quando o portuga disse que eu não podia sair de casa sem camisinha ou sem caralho, a chave girou, eu disse que não ia...
Meu marido disse que eu ia... Se eu fosse deixar de ser uma puta pra ser um filho da puta eu ia enfiar rola em quem deixasse eu enfiar, se eu quisesse dar meia hora de cu com o relógio parado era um problema meu, era coisa de homem, isso ia me liberar e liberar eles também.
Eu perguntei se ele já havia me traído, ele disse que nunca. Nosso acordo de levar pra casa a marmita da rua tava valendo, mas ele sempre comeu fora, se a marmita se recusava a ir pra nossa casa, não era culpa dele, ele não podia e nem ia se sentir culpado. O doutor diz que comeu umas quatro enquanto estava casado com a manicure, o portuga diz que não saia muito, só enrabou dois caras no banheiro do atacarejo e a menina da portaria, eu disse que isso era traição. Ele disse que era filantropia, um coroa velho que nunca havia dado o rabo e nem chupado uma pica, chegar até a aposentadoria sem fazer o que se quer... o segundo era um cara cuja esposa queria marcar um date com ele na frente do marido, ainda pediu para o marido procurar o celular dela na bolsa para ela pegar o número do meu ursinho, ele disse que não ia meter o pau na boca dela nunca, virou para o cara e pergunta se ele já havia engolido um bilau, um bilauzão, o cara disse não, mas completou que nem queria, mas queria para poder mostrar que isso também podia fazer melhor que a mulher, pegou o celular da esposa para filmar a mamada de estreia, a menina da portaria dava o rabo quando apanhava do marido, era para manter a autoestima. Bando de filhos da puta. Meu marido pergunta se já aconteceu comigo de querer dar uma escapadinha, eu disse que estava puto, não sabia como foder uma vaca, ela ia me enlouquecer. Os três me aplaudem.
Porra, eu amo meu(s) marido(s).