Eu amo meu marido.
A história era arrumar um namoro antigo para o francês, mas ele tinha menos de um ano para apresentar um relacionamento de uns dois anos, ele mesmo teve a ideia de fingir um relacionamento gay, a ausência de provas do relacionamento deveria ser o tempo que ele se precisou pra se aceitar e sair do armário.
A ideia de meu marido era de dizer sim, cobrar uma grana (que depois foi devolvida) para disfarçar o esquema que estávamos montando: Um veado para o doutor.
Ele tinha duas razões para isso, uma, dar uma companhia pública para meu portuga, para ele não ficar como candelabro segurando vela, a outra razão era meramente sexual, a gente estava excitado com essa história de pessoas vindo pra nossa cama, casais ou meninas, essa era a primeira vez de um homem e de um homem hétero e confessadamente homofóbico. Seria um prazer enorme torturar ele. A razão real é que eu fiquei comovida, comovida talvez não seja a palavra, eu fiquei interessada em ajudar, para minha defesa esse parece ser o interesse inicial do doutor, do irmão dele e do cunhado. Meu marido disse chega, sem pessoas novas, e eu achei correto, mas eu não tinha interesse algum no francês, não no início.
O interesse do francês era não voltar para a França nunca mais, havia perdido quatro parentes e isso era tudo o que ele menos queria, sair do Brasil onde nenhum de seus amigos e conhecidos havia adoecido gravemente, entretanto foi aqui um dos lugares em que mais houve mortes evitáveis.
A vida seguia uma rotina muito próxima à normal, a gente andava obrigatoriamente vestido em casa, o terceiro quarto não era o da tevê, era o do hóspede, vivíamos interrogados sobre as nossas escolhas, gostos, rotinas, ele falava muito de si, preparado para todo tipo de questão que pudesse ser suscitada no seu interrogatório, de repente ele chega com uma data para casar no cartório com o portuga, nesse momento devo confessar que havia duas de mim, uma que desejava que ele ficasse e outra (bem pequena) que queria voltar ao começo e sermos quatro novamente, dois e dois. Sobre isso falei apenas com meu marido, ele falou que quase dois anos depois do portuga, levaria anos até o espaço deixado em nossa cama desaparecer.
O francês falou que sua imagem de homofóbico devia ser plantada pra convencer do drama que o impediu de ter uma relação mais íntima com o portuga a mais tempo, minha namorada disse que deveria ter beijos entre os dois, rotineiros a ponto de transparecer que havia intimidade e sentimentos. A desenvoltura e o charme do francês caíram por terra, estávamos pondo a mesa para o jantar,
Muito embora de uns tempos pra cá tudo esteja misturado, a gente é meio como um ímã, nossos olhos se procuram, quando estamos num sexo a cinco, quando uma notícia na tevê nós deprime, quando ele chega com um café fresquinho durante uma aula longa e cansativa, é sempre motivo para ajoelhar orar e agradecer, ele responde quando falo assim que se eu ajoelhar que seja para o boquete, não para agradecer, palhaço.
Estamos fazendo caminhadas pela manhã ao redor da praça, os cinco, acordamos cedo, hábito novo, antes das cinco, às cinco descemos depois de um suco de qualquer coisa, garrafinhas de água e disposição, sempre é frio, voltamos suados, dispostos, uns na cozinha outros no banheiro, revezamos e sentamos limpinhos para o café da manhã, o portuga fica na cozinha, limpando tudo e preparando um lanchinho para depois e o almoço, rapaz prendado, vivemos de repetir que esperamos que as fronteiras nunca mais abram, mas a mãe dele é uma senhora idosa na casa de uma irmã também idosa, não tem quem cuide delas, talvez dê pra ir a nado; eu penso em minha mãe, minha conexão com ele vem de ele ser esse filho incrível que telefona e passa horas falando com ela, ele cheio de dedos falou que estava namorando, me conheceu, disse que eu era casada, ela ficou em choque, quase infartou a velhinha, depois disse que o meu marido sabia e apoiava o nosso namoro, mais tarde apresentou meu marido e por fim disse que meu marido o pediu em namoro também e ele disse sim, a velha disse que se o vírus não a matasse sem pulmão, o filho sem juízo lhe arrancaria o coração do peito, apresentou o “cunhado” e a esposa. Mostrou o apartamento aos poucos, eu disse que gostaria que ela morasse perto para ele nunca sair de perto de nós, entre nós e a mãe ele preferia a mamãezinha, ela ficou bruta, disse que seu filho era bastante independente, daria conta de mim e de meu marido, eu ri, perguntei se ela era um apoio à nossa história, ela disse que não era apoio, mas uma aceitação.
Foi em junho e chovia aqui, lá num sol terrível, dizia ela, ela estava com um vestido florido e tossia. Quatro dias sem notícias e liga do hospital, logo sairia, ele quase morre, ela também, mas saiu. Em agosto ela não acreditou na seriedade do mal e foi internada novamente, dessa vez morreu. Fiquei noventa e nove por cento arrasada com o sofrimento daquele homem, ele mal levantava da cama, só chorava e ficava sem ação, sem comer, quase não bebia, foi um transtorno trocar os lençóis. Época de prova, um carnaval, ele melhorou quando começou a contar da infância pobre em Portugal, periferia de Lisboa, vindo do interior molecote, cresceu sem as três refeições, mas queria vencer, todos falavam da sua boa aparência, sua mãe havia sido prostituta e da metade para o fim da vida, cartomante. Chegou apenas ele no Brasil, foi tantas coisas, faxineiro, zelador, camelô, radialista (não durou uma semana) e por fim corretor de imóveis, mandava dinheiro para a mãe, menos nos últimos tempos, estava numa maré ruim. Desistiu do Brasil meses sem uma venda, e nós surgimos.
Eu o vejo sair do banheiro depois de meu marido, estou com um caderno nas mãos, repassando os rascunhos para um resumo, acho que vou ter de usar óculos como o doutor. O portuga se senta de costas pra mim e eu demoro um pouco para me desfazer de minha colcha de papéis de estudo em cima de minhas pernas, meu marido o abraça põe o braço sobre seu ombros, fico sem saber se os posso tocar. Meu marido e eu estamos passando por uma crise, ele está irado comigo, muito raivoso, guardando um grande rancor, me culpa por ter ampliado sua sexualidade, ele diz que eu o transformei em um homem menos macho, duvido, mais macho que ele só os crocodilos e os tubarões, na raça humana ele é o mais... O que lhe metia medo era que ele estava desenvolvendo sentimentos pelo portuga, e esse era o medo dele que eu não o visse mais como um homem viril, macho, o que eu não conseguia ver era ele ou eu como pessoas hétero, ele odiava que a conversa que tivemos foi feita por palavras que arranquei dele, por opiniões minhas que ele confirmava ou negava, ele não estava completamente no controle da situação e isso matava ele de insegurança e raiva, da situação, dele mesmo e de mim.
O portuga diz que recebeu uma proposta de emprego como corretor, e que estava enviando um milhão de currículos, que estava com uma entrevista para porteiro em uma escola, era pouco mas era algo, era o suficiente para se despedir de nós em breve, isso foi como se ele estivesse apontando uma arma para nós dois, meu marido queria dizer algo mas o portuga, disse que precisava desabafar, disse que ele também era homofóbico, que também estava surpreso, frustrado, com raiva e com medo em relação a tudo, mas estava apaixonado por meu marido e eu, que não teria se apaixonado por nós se nós dois não fôssemos tão um do outro, tão perdidos de amor. Meu marido tentou beijar o pescoço dele e o portuga se levantou, disse que eu ao menos não me excluo, ponho meus pensamentos, sentimentos e meu corpo no jogo, meu marido não.
Fala que ia passar a noite na cama com o francês, vai que eles se toquem, vai que o francês até para simular proximidade quisesse tocar sua pica como se não estivesse com um fungo letal, como se pudesse fazer sexo sem ser penetrado, mas que não fizesse do corpo do portuga uma coisa com buracos convenientes. Se desculpou e saiu.
Eu nunca vi tanta vulnerabilidade em uma pessoa, e quem estava assim tão frágil e indefeso era o homem que mais amo no mundo, era meu marido, e...
Porra, eu amo meu marido.